Duarte Galvão,
feições poéticas de um “heterônimo guerrilheiro”1

 

Luciana Brandão Leal*

Para Roland Barthes, o texto configura-se com “um espaço de múltiplas dimensões” (1984, p. 51). Essa afirmação, sem dúvidas, pode ser confirmada pela leitura dos livros e poemas assinados pelo heterônimo Duarte Galvão. Em muitas análises, a feição nacionalista da poesia moçambicana, em meados da década de 1950, é atribuída exclusivamente a Noémia de Sousa e a José Craveirinha, e a produção com viés mais ideológico de Virgílio de Lemos, ortônimo, e de seu heterônimo Duarte Galvão é, de certa forma, negligenciada. Portanto, cumpre-se, aqui, desfazer certos equívocos, salientando a importância dos poemas de Duarte Galvão neste contexto da “moçambicanidade”.

Pela voz de Duarte Galvão1, nota-se um compromisso indiscutível com a poesia, com a matéria poética que é a palavra. Seus poemas verticais evidenciam maior compromisso social e sócio-político, fato que suscitou alguns problemas com a censura portuguesa. O livro Poemas do tempo presente, por exemplo, foi apreendido e censurado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado - PIDE, três dias após a sua publicação, em 1960. Quando opta por falar sobre “o tempo presente”, Duarte Galvão já demonstra um compromisso com as temáticas sociais e políticas do território moçambicano em meados da década de 1950. Ana Mafalda Leite define o caráter social da produção poética desse heterônimo nestes termos:

Os poemas de temática social de Duarte Galvão nunca se ausentaram de uma voz, simultaneamente pessoal e lírica, a sua enunciação reclama uma dicção original, por vezes quase escandalosa para a época, impossível de ser limitada por qualquer ideologia. (LEITE in LEMOS, 2009, p. 18)

Ler os poemas de desespero de Duarte Galvão, escritos em papeis amarelos, como os de Noémia de Sousa, lança nosso olhar ao tempo e ao espaço colonial de Moçambique e, como diz Ana Mafalda Leite (2009), nos faz compartilhar olhares “de uma geração de artistas em movimento de contestação, revisitando-se ambientes marginais da cidade, um quadro de ‘personagens’ e acontecimentos que tiveram lugar nas décadas de 50 e 60 e que a poesia, de forma destruidora-renovadora, traz ao leitor” (LEITE in LEMOS, 2009, p. 09)

Duarte Galvão apresenta, em seus versos, múltiplos personagens denunciando cenas de brutalidade e exclusão: negros colonizados, prostitutas, trabalhadores dos portos, rostos advindos de diversos lugares periféricos. São essas figuras que se integram à voz performática do eu lírico em um esforço coletivo de luta pelo fim das imposições colonialistas. Vozes de outros poetas moçambicanos cadenciam em coro a voz de Duarte Galvão, como Noémia de Sousa, com quem esse heterônimo estabelece tantos diálogos poéticos, tratando, sobretudo, dos flagrantes de violência no cenário moçambicano, construídos e legitimados pela violência colonial. Ambos se empenham em construir uma nova história e atribuir novas feições aos registros da brutalidade colonialista na medida em que “pintam a história da angústia / de um povo cuja história / se vai forjando em sofrimento” (GALVÃO, in LEMOS, 2009, p. 270). Os homens e mulheres marginalizados que transitam em muitas cenas enunciativas de Duarte Galvão são, essencialmente:

[...]

Os que fazem blocos de cimento

Os que vivem nas construções

Os que cantam no cais

Os que perfuram as minas do Rand

Os que vendem peixe no bazar

Os que batem chapas nas oficinas

Os que são diligentes serventes

(GALVÃO in LEMOS, 2009, p. 270).

O olhar do poeta se volta aos “guetos periféricos da cidade”, em um movimento que acompanha o trânsito de pessoas comuns e a forma como elas se integram ao espaço, modificando-o ou sendo modificadas por ele. Há um movimento duplo que constitui a paisagem: “Zapunganas e zapatas desceram / dos ghetos da periferia às cidades / e desapareceram volatilizados” (GALVÃO in LEMOS, 2009, p. 201). Vê-se processos de despersonalização das personagens que transitam nesses espaços. Homens dos guetos “desaparecem volatilizados” nos cenários de Moçambique evocados pelo poema; isso acontece, como veremos adiante, em paisagens como as dos cais, temática recorrente em poemas do livro Poemas do tempo presente (1950-1961).

A descrição das relações que compõem a “paisagem” se assemelha ao que propõe Michel Collot, quando diz que a paisagem “é configurada, ao mesmo tempo, por agentes naturais e por atores humanos em interação constante: é, portanto, uma coprodução da natureza e da cultura em todas as suas manifestações” (COLLOT, 2013, p. 43). Segundo Collot (2013), para se definir a paisagem, é preciso considerar estes três componentes, unidos de forma complexa: “um local, um olhar e uma imagem” (COLLOT, 2013, p. 17).

Encenando o processo de dinamização do espaço territorial, social e poético, Duarte Galvão apresenta o poema “Paisagem”, “dilacerante”, na concepção de Américo Nunes, cujos versos são contundentes e representam uma análise das relações sociais predominantes nos cais de Moçambique e em todo o espaço colonial. A análise desse poema evidencia a visão crítica para expor a paisagem marcada por desigualdades e conflitos, através da estrutura colonialmente cindida desse território. A voz poética delineia a geopoética de Lourenço Marques para mostrar o “encontro entre o mundo e um ponto de vista” (COLLOT, 2013, p. 18):

Paisagem

 

Negro gigante teu músculo forte

está a perder a modelação antiga e bela;

no cais medonho as tuas mãos de aço

já se habituaram a não ter descanso;

teu peito largo tornou-se porto de salvação

de todas as poeiras de minérios estrangeiros;

teus sentidos perderam mesmo a vibração

ao escutar o silvo agudo dos comboios chegando;

do outro lado da baía calma cantando,

a tua gente trabalha nas salinas

e é mais feliz

que os homens das minas

ou a gente da cidade.

Negro gigante teu músculo forte

vai-se corroendo lentamente e inexoravelmente

com a música cadenciada das grandes pás de ferro

lançando minério nos porões dos cargueiros;

teu corpo forte vai mirrando

perdendo a modelação antiga e bela;

abandona o cais e vai trabalhar nas terras da gente

que é tua e vive esperando por ti;

diz a teus irmãos

de febre que a todos domina e consome

da insatisfeita fome

dos navios de todas as bandeiras

e das gentes que andam descalças e nuas.

Não lhes fale das minas do Rand

e nos homens que regressam das minas.

Fala-lhes deste cais

do que passa nas fábricas e nas ruas

e não voltes mais.

Deste lado da baía calma

morreu a esperança de uma fusão fraterna

morreu mesmo o brilho das estrelas.

Aqui os homens não se entendem.

Estão cerradas todas as janelas.

(GALVÃO in LEMOS, 2009, p. 267)

No poema “Paisagem”, o eu lírico apresenta cenografias do cais moçambicano, revelando a rotina do trabalho exaustivo realizado pelos homens negros neste espaço de “chegadas e partidas”. O título do poema já revela, explicitamente, que a temática percorrerá a paisagem moçambicana: “no cais medonho as tuas mãos de aço / já se habituaram a não ter descanso” (LEMOS, 2009, p. 267). Nos versos citados há um movimento interessante: a personificação do cais, “cais medonho”, contrasta-se ao movimento de despersonificação do trabalhador, “as tuas mãos de aço / já se habituaram a não ter descanso”.

Ao descrever situações vividas nos diversos cais e ilhas moçambicanas, Duarte Galvão reproduz uma paisagem de agonia e exploração, encenando relações estabelecidas entre colonos e colonizados. Homens negros que trabalham incessantemente em portos moçambicanos, carregando e descarregando navios estrangeiros, de todas as bandeiras, “com a música cadenciada das grandes pás de ferro / lançando minério nos porões dos cargueiros”. Esses homens têm seus corpos dilacerados pelo trabalho exaustivo e pela “insatisfeita fome”. Há várias cidades portuárias em Moçambique; destacando-se, dentre elas: Maputo, Beira, Nacala e Pemba. A paisagem descrita pode se referir a qualquer um desses espaços e mesmo a outros marcados pela exploração do trabalho escravo, tornando a cena ao mesmo tempo particular e universal, uma vez que, no espaço marginal, as cenas de exploração se repetem.

Os trânsitos reiterados dos navios chegando, “o silvo agudo dos comboios chegando”, reiteram a música triste que cadencia a deterioração do homem moçambicano que vive no cais e do cais: “teu corpo forte vai mirrando / perdendo a modelação antiga e bela”. As cenas de degradação compõem a paisagem, denunciando o contraste entre a chegada dos grandes navios estrangeiros em busca do minério ali despejado.

A paisagem tem os contornos mais hostis não apenas pelo cenário que é sujo, empoeirado, incômodo ou “medonho”, como descrito. A violência da paisagem está na degradação dos homens que ali trabalham e, inexoravelmente, a compõem:

Da febre que a todos domina e consome

Da insatisfeita fome

Dos navios de todas as bandeiras

E das gentes que andam descalças e nuas.

(LEMOS, 2009, p. 267-268)

As antíteses ampliam e intensificam a oposição entre os imponentes “navios de todas as bandeiras” e as “gentes que andam descalças e nuas”. Essas “gentes” circulam no cais e compõem a paisagem real e poética: trabalhadores, prostitutas, homens e mulheres à margem social. O cenário de exclusão que se delineia nos versos é intensificado pela imponência das embarcações que nada deixam no cais, ao contrário, levam as riquezas do território, oferecidas com muito suor e trabalho, deixando apenas “a poeira do minério”. Esgotam, também, a força física do trabalhador, que antes era “imponente”, “forte” e “belo”. Esses homens vão se corroendo “lentamente”, “inexoravelmente” pela exaustão a que são expostos no cotidiano de exploração.

O eu lírico menciona, também, as “minas do Rand”, referindo-se à África do Sul. Na época da colonização, os “moçambicanos” eram enviados para as minas do Rand como determinação do sistema de contrato. Eram os magaíças que retornavam corroídos pelas doenças e pela dureza do trabalho. Trabalhadores explorados, como os que ficaram “deste lado da baía calma”, onde a esperança já não persiste e as possibilidades de entendimento entre os homens também se esgotaram. Como se vê, o poema “Paisagem” de Duarte Galvão, cuja voz lírica é tão contundente e marcante, se vincula a paisagens múltiplas de exploração, partindo do cais moçambicano para evocar outros espaços.

O drama encenado em “Paisagem” e as cenas de exploração do povo africano se repetem em “Cais de angústia”:

Quem sabe, Baby, quem saberá

Da beleza em nossas horas de mistério

Com um olhar cheio de carvoeiras e minérios,

De canções monótonas e mágicas

E um peito salgado de maresias?

 

Quem sabe, Baby, quem saberá que dentro do ruído das pás de ferro

Dos baldes, do minério, dos porões

Se escondem fundas angústias

E anseios de partida para um cais distante

Que seja realmente o prometido cais?

 

Quem sabe, Baby, quem saberá

Dos negros que vivem neste cais

E fazem andar comboios de minério

Com a força de canções de desalento?

 

Quem sabe, Baby, quem saberá

Das canções de desespero, da marrabenta

Dos lamentos da Zixaxa e das Lagoas

Onde vivem os negros da cidade?

Quem poderá, Baby, saber

Ou sentir esse mundo de dor,

Sem procurar entender

O drama da vossa cor?

 

Quem sabe, Baby, dos minérios

Das almas dos que sonham outro cais

Outros navios, porões, minérios

Sem homens feito animais

Num porto de abrigo mais humano?

(GALVÃO in LEMOS, 2009, p. 272)

Em “Cais de angústia”, outro poema assinado por Duarte Galvão, o próprio título denuncia a temática de sofrimento. A expressão "de angústia" modifica o substantivo "cais", incide nele, qualificando-o. As cenas de exploração do trabalho negro se repetem nesse poema, vindas “do ruído das pás de ferro”. Permanece, também, a marcante despersonalização já anunciada no poema “Paisagem”, são “homens feito animais”, que sonham e anseiam as experiências de um cais mais humano. Aqui, a cena deixa explícito que o trabalhador do cais é o negro marginalizado, colonizado, relembrando os dizeres de Fanon (2005) sobre a exclusão pela “raça”. O trabalhador negro é o interlocutor do eu lírico tanto em “Paisagem” quanto em “Cais de angústia” a quem enuncia uma pergunta que está no próprio fundamento da poesia: a problematização social, a encenação dos dramas e da violência colonial:

Quem poderá, Baby, saber

Ou sentir esse mundo de dor,

Sem procurar entender

O drama da vossa cor?

(GALVÃO, in LEMOS, 2009, p. 273)

Mostrando-nos uma outra face, que mais se aproxima da escrita ortônima de Virgílio de Lemos, Duarte Galvão assina textos que revelam diálogos múltiplos com importantes movimentos culturais e autores da Literatura universal. Estabelecem-se intertextualidades variadas e os textos evocados integram, de forma mais ou menos direta, os poemas desse heterônimo virgiliano. Como analisa Américo Nunes, no prefácio de Negra Azul, “lírico e dramático, masculino e feminino, clássico ou neobarroco, a sua heteronímia traz-nos a voz de todos os poetas que o habitaram e habitam: Camões, Pessoa, Cesário Verde, Withman e Ezra Pound...” (NUNES in LEMOS, 1999, p. 7).

Com o objetivo de emancipar a literatura moçambicana, como produto estético autônomo e independente, Virgílio de Lemos, pela voz de Duarte Galvão, se empenhou em estabelecer diálogos com os movimentos artísticos das vanguardas europeias e brasileiras, assim como com o Dadaísmo, o Surrealismo, o Movimento Pau-Brasil e, sobretudo, com diversas correntes da Negritude. Propôs, por conseguinte, “o mergulho abissal na própria poesia e uma antropofagia cultural, capaz de libertar a literatura moçambicana dos parâmetros coloniais que a cerceavam” (LEMOS, 1999, p. 149).

Em “Insólito, um espanto espantado de si mesmo”, escrito em 1951, dedicado a André Breton, Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto e à mãe, Ilda, o eu poético, ávido por liberdade, conclama várias vozes e tendências artísticas surgidas nas primeiras décadas do século XX. O discurso poético é enriquecido com referências a obras de outros artistas, tanto clássicos quanto contemporâneos, brasileiros e europeus, que fortalecem a intertextualidade.

Assinado por Duarte Galvão e publicado, inicialmente, em Negra Azul, o poema possui versões mais recentes, como a que foi publicada na antologia Jogos de Prazer, com pequenas alterações sobre a mesma temática. Os versos, marcados por deslocamentos vários, demonstram a inquietude da voz poética ao conclamar diferentes movimentos artísticos, literários e acontecimentos que, figurativamente, saudaram o nascimento do escritor Virgílio de Lemos:

Insólito, um espanto espantado de si mesmo

 

Quando eu nasci a vinte e nove, espanto meu

Breton inquiria sobre o Amor no mundo.

À minha mãe pedi que lhe mandasse recado

que não perdesse tempo com desencantos,

que fizesse amor sem gramáticas nem sutras.

[...]

Quando eu nasci em vinte e nove, grito de revolta

a meio do mar, eu vela eu balão isoboiando saudei o mundo

o dadaísmo Kafka Dostoiévski Tchekov Camões e Eça, Assis

[Graciliano e Pau-Brasil de Andrade.

Os velhos me falaram do Rio capital de Moçambique,

pimenta ouro e escravatura início dos Oitocentos.

Quando eu nasci surpresa rebentei a Bolsa a minha mãe

olhos azuis e loura que tangava e sabia nadar

e o craque fez valsar Chicago Londres Frankfurt

e libra-ouro rainha fez rir meus tios José e Cisco

fez tremer os cofres do tesouro. Ibo não mais foi capital.

Salvo no meu coração.

[...]

Quando eu nasci em vinte e nove temporalidade sem tempo

sem antes nem depois kimwane-persa Salomé meio cega

falava na Babilónia Constantinopla Sevilha, barrocos, sedas

e talvez por isso guarde em mim este ar de espanto

espantado de si mesmo, borgiano como se adivinhasse as coisas

ávido de liberdade, corpo interior solto, sereno face à morte

seio, exuberância, gozo em mim dos deslimites.

(DUARTE GALVÃO in LEMOS, 2009, p. 37-38)

Virgílio de Lemos nasceu em 1929, em plena eclosão dos movimentos de vanguarda. O “eu” que se enuncia declara-se “espantado” com as novidades e com a pulsão vanguardista da Arte que se anuncia concomitantemente ao seu nascimento. No discurso poético, cita André Breton e outros expoentes da Arte/Literatura universal, reafirmando sua multiplicidade de influências, leituras e filiações. Conclamando a liberdade de pensamento e criação, o eu lírico se declara independente de “gramáticas e sutras”, já que o “Amor é a espiritualidade que irriga o corpo e a arte” (GALVÃO, in LEMOS, 2009, p. 24). Em “Insólito, um espanto espantado de si mesmo”, o eu lírico revisita os acontecimentos e personagens que marcaram a história mundial no ano em que ele nasceu. Traz para a composição do discurso, por exemplo, o crack da Bolsa de Valores, em Nova Iorque, de 1929, relacionando-o com a situação concreta do seu nascimento: “Quando eu nasci surpresa rebentei a Bolsa”, que fez “valsar Chicago Londres Frankfurt / e libra-ouro rainha”. Virgílio de Lemos, sob o heterônimo Duarte Galvão, adota uma escrita de inspiração surrealista, automática e sem pausas, marcas que sugerem a manifestação do inconsciente, bem ao gosto dos surrealistas, além de incorporar a velocidade do seu tempo. O eu poético, espantado de si mesmo, nasceu “ávido de liberdade, corpo interior solto, sereno face à morte” (GALVÃO, in LEMOS, 2009, p. 26), postura emancipatória que se confirma em toda a produção estética de Virgílio de Lemos. O texto autobiográfico, assinado por um heterônimo, corresponde à escrita da própria vida como uma autoficção, o que confirma os dizeres de Souza (2009): “Os mundos paralelos se explicam pela conversão da letra em experiência copiada da letra de outrem’ (SOUZA, 2009, p. 409).

É também o heterônimo Duarte Galvão que escreve poemas dedicados a Lourenço Marques, reunidos no livro Negra Azul e republicados em antologias posteriores. Nesses poemas, o eu lírico evoca metáforas eróticas que corporificam a ilha e a cidade, aproximando-as do corpo feminino. Nos versos de “Os teus retratos, L.M.”, a cidade é erotizada e suas imagens são evocadas pelas recordações do poeta. Estabelece-se um diálogo entre o eu lírico e essa cidade, diálogo que se evidencia pela interlocução e evocação da Lourenço Marques reinventada pela memória:

Os teus retratos, L.M

 

Com a avidez que em mim desperta

A sedução, olho-te e desejo-te

Como se fosses sonhada, inacessível, Afrodite.

Mas finalmente gritando com o mar

Estas em mim como a vertigem

E o fogo do tempo, a sua cólera

A sua fluidez, a sua matriz

O outro eu da memória que respira

No meu corpo, inquieto, exilado

Mas não extinto, destino

De quem vive e morre

Na transparência do poema,

Cidade, na alucinada posse

Que supera o irreal,

E é vida, nos murmúrios do silêncio,

O coito invisível e secreto

Entre o meu olhar

E o teu.

(GALVÃO, in LEMOS, 2009, p. 41)

O mesmo diálogo entre o eu lírico e a cidade permanece no poema “Lourenço Marques”, também publicado em Negra Azul:

[...]

Tu és morena e loura

Laurentina,

Devaneios e astros

Tudo que a história dos sentidos

Guardou na memória

Amor e fantasia, o lado

Mais inventivo da beleza,

O despertar do fogo e da orgia.

E no descampado terreno de golfo,

Zodíaco é na tua gruta imperial

Toda a violência

Da carne e das estrelas,

Toda a magia de teus seios

Gritando a Primavera

Todo o sal da tentação

Na tua boca.

(DUARTE GALVÃO in LEMOS, 2009, p. 45)

O eu lírico estabelece uma relação corpórea com a cidade, destacada em seus ritmos próprios e em especial dinâmica entre os espaços e as personagens que circulam por esses lugares. A cidade de Lourenço Marques, multifacetada, morena e loura, lugar de diásporas e hibridações, é também o lugar da passagem do tempo, carregada de memórias, “de uma intimidade quente, quase uterina, onde o presente decorre e onde sobretudo o passado permanece” (JORGE, 1995, p. 36). Quando toma forma de corpo feminino, personificada, essa cidade se faz metáfora e metonímia na escrita e na memória do poeta. Nota-se a importância do fluir temporal, a vivência do tempo, tudo o que a percepção pelos sentidos guardou na memória, o que marca a fala do presente sempre afetivamente habitada pelo passado.

Tanto os poemas dedicados a Lourenço Marques quanto os que anunciam o empreendimento revolucionário da revista Msaho2 foram publicados, inicialmente, no livro Negra Azul, que reúne a poesia virgiliana produzida entre 1944 e 1963. Muitos desses poemas, assinados por Duarte Galvão, foram republicados posteriormente, em importantes antologias, como Eroticus Moçambicanus (1999a) e Jogos de Prazer (2009).

Assim como ocorrera no Brasil do século XIX – especialmente com escritores como Machado de Assis e José de Alencar –, nos países africanos colonizados por Portugal a imprensa e a literatura estiveram muito próximas. Os escritores moçambicanos buscaram no jornalismo, além de uma atividade profissional, um meio de divulgação da literatura produzida nesses espaços. Maria Nazareth Soares Fonseca e Terezinha Taborda Moreira (2007), a propósito, explicam que o jornalismo se tornou o meio de difusão de textos e manifestos, além de veículo de expressão e contestação no qual intelectuais e escritores protestavam veementemente contra a máquina colonial. Nesse contexto de proximidade entre a imprensa e a literatura, nasce a revista Msaho considerada, por historiadores e críticos literários, como “movimento” significativo de contestação dos códigos culturais estabelecidos.

Msaho era “movimento, ritmo, canto, dança, poesia, um hino à cultura chopi do Sul de Moçambique” (LEMOS, 1999, p. 151). Essa revista se insere na trajetória de resistência já marcada pelos jornais O Brado Africano e Itinerário. Msaho foi um hino à negritude e propôs a ruptura com a literatura colonial. Nessa perspectiva, segundo Lemos, “Msaho pretendia uma visão aberta, liberta de preconceitos e militâncias estigmatizadas” (LEMOS, 1999, p. 153).

O primeiro e único número da revista, que consta nos anexos da tese “Virgílio de Lemos: poesia em trânsito”, de Luciana Leal (LEAL, 2018), foi impresso em papel amarelo, escolha que evidencia a modernidade e a transgressão desse empreendimento literário. Considerando-se a carga simbólica dessa cor, a opção pelo tom amarelo exacerba o desespero. Como os já citados poemas verticais de Noémia de Sousa, também escritos em papel amarelo, os poemas da revista Msaho (1952) demonstram desespero e, ao mesmo tempo, revolta.

Nessa edição de Msaho, os poemas escritos por Virgílio de Lemos são atribuídos ao heterônimo Duarte Galvão, que também escreveu vários outros poemas com o mesmo título, com o objetivo de evocar as propostas de Msaho, cujo teor revolucionário já se anuncia em “Msaho 1”. Nesse poema-manifesto, os versos vêm entre parênteses, como se fossem descrições, explicações acerca dos ideais que motivaram o projeto político-literário:

Msaho 1

 

(msaho, ritmo, estética

sobretudo ética

de um movimento,

novas sobrevivências

contra o sobreviver,

o tédio a concentração

dentro e fora

do espaço colonial

caleidoscópico cultural

antropofágico

à maneira dos paulistas

modernistas

lúdicos arcos,

enfunadas velas

na busca d’espaços

não visitados do corpo

e da alma,

incoerência e lucidez

na vertigem, msaho)

(DUARTE GALVÃO in LEMOS, 2009, p. 202)

Inspirados pela proposta cultural antropofágica, à moda dos modernistas brasileiros, Virgílio de Lemos, Augusto Santos Abranches e Reinaldo Ferreira conceberam e publicaram o primeiro número dessa revista que guarda, ainda hoje, sua feição modernista. Os versos do poema “O tempo de Msaho”, assinado por Duarte Galvão, reiteram a busca por uma visão independente, liberta de preconceitos e padrões pré-estabelecidos: “A última revolução / sou eu destino / nómada que busca a ficção / de teus gritos corpo / contra corpo / no desgarre da ideia / Liberdade” (GALVÃO in LEMOS, 2009, p. 66). Ao explicar as intenções e as propostas da revista, Virgílio de Lemos destaca:

Msaho seria a grande ruptura, fundando, com avidez devoradora, uma antropofagia cultural, à maneira dos modernistas de São Paulo, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e também outros poetas das vanguardas europeias da América Latina, da África, da Rússia, da Ásia, da China, do Japão, do mundo todo. Ora, Msaho seria, como seu nome indica, movimento, ritmo, canto, dança, poesia, um hino à cultura chopi do sul de Moçambique. Conhecíamos os marimbeiros de Zavala, seus cânticos e sinfonias. Era preciso começar a valorizar os chopis, sempre criticados e vilipendiados pelos shanganes, os quais também não poupavam os rongas. Tínhamos que afastar o poder colonialista. Em suma, Msaho era um hino à negritude. (LEMOS, 1999, p. 151).

Articulando tendências estéticas variadas, essa revista reuniu poemas de Noémia de Souza, Alberto de Lacerda, Duarte Galvão, Ruy Guerra, Augusto dos Santos Abranches, Reinaldo Ferreira, Cordeiro de Brito e Domingos Azevedo, intelectuais contrários à opressão e à discriminação dos negros. “Msaho começou com um número que foi ruptura, mas, ao mesmo tempo, ‘um teste’. Queríamos saber como o governo de Moçambique e a censura, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado - PIDE, iriam reagir” (LEMOS, 1999, p. 152).

Embora os poemas de Virgílio de Lemos publicados em (e sobre) Msaho sejam atribuídos ao seu heterônimo Duarte Galvão, o poeta esclarece: “publiquei poemas de Duarte Galvão, mas quem assinou o editorial e refletiu acerca dos objetivos da revista fui eu, Virgílio de Lemos. A ideia de Msaho foi minha” (LEMOS, 1999, p. 152). Nesse momento, Virgílio conclama para si a atitude política empenhada perante a sociedade e a cultura moçambicana, reiterando que o homem Virgílio compartilha os ideais propostos pela revista Msaho e defende a abertura da literatura moçambicana à literatura universal. Com essa declaração, ele também comprova que o objetivo da revista não era apenas propor novos parâmetros estéticos. Como toda grande poesia moderna, a sua intenção era criar um discurso contra-ideológico, “uma forma de resistência simbólica aos discursos dominantes” (BOSI, 1977, p. 144). Pretendia-se, então, intervir socialmente e politicamente, lutando pela liberdade e pela expressão do homem colonizado, além de inaugurar novos ares para a poesia moçambicana, cosmopolitizando-a.

O poema “Negro” integra a primeira edição de Msaho e é assinado por Duarte Galvão. Seus versos contundentes, transcritos abaixo, apresentam a postura reflexiva sobre cenas cotidianas do homem/trabalhador negro em terras moçambicanas. O discurso encenado no poema pode ser dividido em três seções: (1) a menina branca que dorme e sonha; (2) o negro, que vela o sono da “dona menina”; e (3) o cotidiano de outros homens negros, que exercem trabalho forçado, massacrados pelas agruras da escravidão. Dividido entre o sonho e a realidade, o negro “espreita a vida”, sente atadas as suas mãos e a sua alma. Vejamos os versos desse poema:

Negro

 

Ao Rui Gouveia

 

Dorme a menina

enquanto o escravo vela

e enquanto ela sonha,

ele espreita a vida

no limiar da janela.

Como seus irmãos

que cruzam a estrada

e arrastam grilhetas

ele sente esmagadas

suas mãos e sua alma

Como seus irmãos

aprendeu a esconder

a dor da sua dor.

Aprendeu a sofrer

e a sorrir sem rancor

Seus olhos vão postos

na dona menina

que sonha e sorri

e pensam na cor

que Deus deu a pele

da dona menina

e é causa da dor

da dor infinita

dos negros escravos

que são seus irmãos

e arrastam na estrada

pesadas nas mãos

mil saudades loucas

feitas na tragédia.

Dorme a menina

enquanto o escravo vela

e enquanto ela sonha

ele espreita a vida

no limiar da janela.

(DUARTE GALVÃO in MSAHO, 1952, p. 02)

O poema suscita a problemática do homem negro que é, segundo Hamilton, “o elemento essencial em qualquer consideração honesta da realidade do Moçambique colonial” (HAMILTON, 1984, p. 19). Tem-se a denúncia da subordinação do povo moçambicano, que é privado de sua liberdade e subjetividade. Como um animal acorrentado, “ele espreita a vida”, enquanto “a menina sonha (e sorri)”. Em um movimento duplo de prisão / liberdade, negro / branco, colonizado / colonizador. A janela pela qual o negro espreita o tempo e o espaço é metáfora da possibilidade de se vislumbrar outras formas de vida; mas, através dela, o escravo vê o cotidiano de seus irmãos negros explorados, humilhados, arrastando as grilhetas que lhes são impostas. Mesmo parecendo desfrutar de uma condição privilegiada em relação aos outros, esse negro é metonímia da exploração e da violência colonial, encontra-se em posição semelhante à de seus “irmãos” negros, porque também está privado de sua subjetividade e de seus sonhos. Apesar de os outros negros / escravos estarem sujeitos a provações ainda piores do que as dele, tendo seus corpos mutilados pelo trabalho forçado, o negro/escravo do poema não se liberta de sua condição de prisioneiro/colonizado em relação à menina branca. Como seus irmãos, o negro aprende a suportar as dores cotidianas, as dores do corpo e da alma; resignado, ele se acostuma a esconder “a dor da sua dor”. Ironicamente, o eu lírico conclui: “aprendeu a sofrer / e a sorrir sem rancor”. A interpretação do poema faz lembrar o que diz Fanon (2005), quando o estudioso afirma que a questão étnica está no cerne de toda violência e exploração da ótica colonial. Enquanto vela o sono da menina branca, o negro sente o peso e a dor em sua pele negra, a “dor infinita” compartilhada por seus irmãos. Naquele contexto, a cor da pele legitima a exploração e a prisão. A retomada dos mesmos versos da primeira estrofe, no final do poema, transmite a ideia cíclica, de continuidade e de perpetuação da violência colonialista.

A conduta política e transgressora de Virgílio de Lemos, sob a voz incisiva de Duarte Galvão, fez com que ele fosse detido pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), de outubro de 1961 a dezembro de 1962, preso e acusado de atividades subversivas, além de integrar o grupo de intelectuais que lutava pela independência do país, que o poeta, em entrevista a Laban, define como “Homens de ação e reflexão crítica” (LEMOS in LABAN, 1998, p. 356).

Uma das acusações que o levaram à prisão foi a de ter insultado a bandeira portuguesa, chamando-a de “capulana verde e vermelha”, o que, na ocasião, fora considerado um crime contra o país colonizador. Vejamos alguns versos do poema:

[...] Ah! Tantos desconhecidos mortos

os que nasceram mais tarde

não hão-de-gritar humilhados

bayete-bayete-bayete

à kapulana vermelha e verde

se substituírem no tempo

kapulanas de várias cores [...]

(Poema à Cidade, in: LEMOS, 1999, p. 38).

Segundo explicações do próprio autor, quando o presidente de Portugal Francisco Higino Craveiro Lopes, em 1958, esteve em Moçambique, foram distribuídas às mulheres de Napula e do Norte do país capulanas com as cores da bandeira portuguesa. De certo, o tom desse poema de Duarte Galvão é extremamente irônico, mesmo que a ideia inicial não seja desonrar a bandeira portuguesa. Duarte Galvão reproduz, em seu discurso, o olhar de pessoas iletradas direcionado ao símbolo de distinção do país colonizador, demonstrando que elas não sabem que ali está a representação de imposição do poder.

Duarte Galvão também se reafirma como a face mais contemporânea de Virgílio de Lemos, quando assina os ideogramas concretistas publicados em Jogos de Prazer. Vários desses ideogramas se referem às propostas da revista Msaho, exaltando suas particularidades: Msaho – som, movimento, amor, música, palavras em papel amarelo. “Msaho contra o ‘status quo’”, “Msaho contra impérios” são frases dispostas visualmente em outro ideograma. O gosto pela articulação da imagem e da palavra aguça no leitor a compreensão por meio dos diversos sentidos; assim “a denúncia sobre a violência da sociedade colonial acaba por ser uma espécie de ‘texto trincheira’” (LEITE, 2009, p. 27 – grifos no original).

A antologia Jogos de Prazer Virgílio de Lemos & heterônimos: Bruno dos Reis, Duarte Galvão e Lee-Li Yang traz poemas com dupla autoria, assinados por Virgílio de Lemos e Duarte Galvão, datados de 1952 a 1958, que permaneceram inéditos até o ano da publicação desse livro. Segundo depoimento da professora Ana Mafalda Leite, enquanto organizava essa antologia, ela perguntou a Virgílio de Lemos se os poemas deveriam mesmo ser apresentados como sendo resultado de dupla autoria. Segundo essa estudiosa, ele confirmou essa dupla autoria, mas não explicou o motivo da opção por assinar como VL & DG. Mais uma vez, fica proposto o enigma aos seus leitores. Vejamos dois poemas que exemplificam tanto essa dupla autoria quanto o diálogo estabelecido entre a voz poética do ortônimo e a do seu heterônimo:

TU MEU DADA GALA-GALA AZUL

 

Tu meu Dada Gala-Gala azul-violeta

E Eu tão frágil quanto uma ave marinha

Vamos buscar asilo nas ilhas índicas

É pra nossa fuga que elas existem

(cintos de salvação que deus fez

Pra nossas almas e pra geografia)

[...]

(VL & DG, in: LEMOS, 2009, p. 235)

 

 

NA CABRITÍSSIMA AVENTURA DAS ILHAS

 

Tu meu Dada Gala-Gala azul-violeta

De cabelos crespos e barbatana lisa

Tu, terror de todas as aves de capoeira

E não iniciados pássaros do mato,

Da ponta vermelha à malafala

Dos umbeluzis aos zambezes e rovumas

Abandona os ghettos e vem pràs ilhas

(xefina, inhaca, quissanga, ibo, palma)

Reinventar palavras exóticas, sons

E gestos que fertilizam a emoção

E a memória tão precisada está da alma

[...]

(VL & DG in LEMOS, 2009, p. 236-237)

Nesses dois fragmentos dos poemas – “Tu meu dada gala-gala azul” e “Na cabritíssima aventura das ilhas” –, estabelece-se o diálogo entre o “eu” (a voz poética do ortônimo) e o “tu” (Duarte Galvão, heterônimo, identificado como o Dada Gala-Gala azul-violeta). Essa identificação também está presente em poema assinado por Lee-Li Yang, em que a voz lírica também se refere ao seu amado, Duarte Galvão, como “Gala-Gala azul”. O gala-gala é uma variedade de pequenos lagartos de cabeças azuis, comuns em Moçambique, que se alimentam de insetos e habitam as savanas africanas. Eram comuns também na cidade Lourenço Marques. Nos dois trechos de poemas transcritos, o poeta convoca seu heterônimo, que canta a cidade de Lourenço Marques, para viver a aventura das ilhas: “é lá que se vive sem rei nem roque / d’ilha em ilha cálice em cálice boca em boca: haverá só céu e cada um é livre” (VL & DG in LEMOS, 2009, p. 135). Versos de “Na cabritíssima aventura das ilhas” confirmam essa hipótese: “fora das ilhas e do sonho / as emboscadas multiplicam-se / nas cidades e ghettos da periferia” (VL & DG in LEMOS, 2009, p. 236).

Virgílio de Lemos, pela voz de seu heterônimo Duarte Galvão, mais uma vez evidencia a sua adesão à proposta negritudinista em “Cantemos com os poetas do Haiti”, escrito em 1960, no qual se lê:

Cruzo os braços, Baby, e deixo-me ficar

apreensivo e triste meditando:

tu Baby e os poetas nossos irmãos

que escrevem cânticos no Haiti

sabem da vida incerta e vazia

dos negros ilhas e Américas

dos que sofrem em África e Oceania.

 

Lembras-te daquele poema universal

que falava de desumanidade?

Lembras-te dos segredos nas entrelinhas

dos poemas verticais de Noémia de Sousa

sempre em papel amarelo?

 

Ah se tudo fosse como nos sonhos belos

cheio de romance e fantasia doce

não haveria Baby o desespero

nos cânticos dos poetas do Haiti

nem segredos havia fundos de angústia

nos poemas verticais de desespero!

 

Ah nem tu Baby nem mesmo eu

faríamos da poesia um cântico triste

e só falaríamos de paz e amor

e numa sede constante do azul do céu!

Mas se é dor o mundo que nos cerca

cantemos com os poetas do Haiti

uma canção amarga que se não perca

cantemos em uníssono porque lá ou aqui

os segredos são iguais fundos de angústia

e os poemas verticais também de desespero.

(GALVÃO, in LEMOS, 2009, p. 266)

Em “Cantemos com os poetas do Haiti”, a voz poética se constitui pela multiplicidade, almejando se colocar em lugares outros, tornando-se “um tipo múltiplo capaz de captar a negritude, de ser branco, chinês, crioulo, índio, maia ou amazônico, indiano” (GOMES, 2009, p. 35). Nesses versos, o eu lírico convoca outros artistas contemporâneos, para juntos se empenharem na escrita de “poemas verticais, de desespero”: “Cantemos com os poetas do Haiti / Uma canção amarga que se não perca”. A angústia é causada pela desumanidade; caso contrário, “se tudo fosse como nos sonhos belos”, os cânticos não seriam tristes.

Duarte Galvão opta pela expressão de um posicionamento político e humanitário – “Cantemos com uníssono, porque lá ou aqui / os segredos são iguais, fundos de angústia” (LEMOS, 2009, p. 266). A sua proposta poética manifesta, assim, uma das funções essenciais da literatura: a de encenar os sentimentos e a sociedade. Como afirma Antonio Cândido: “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade, na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CÂNDIDO, 2004, p. 180).

Inspirado por Noémia de Sousa – com seus poemas verticais e de combate –, a persona Duarte Galvão busca adesão de outros escritores ao projeto literário negritudinista, não apenas em Moçambique, mas em espaços outros, tornando o seu canto amargo um canto universal. A questão aqui defendida é universal, porque se situa em tantos tempos e lugares quantos são aqueles nos quais se encontra o ser humano.

Notas

1 Texto publicado originalmente em: Aletria, Belo Horizonte, v. 31, n. 4, p. 139-161, 2021. eISSN: 2317-2096 DOI: 10.35699/2317-2096.2021.33058

2 Carmen Lucia Tindó Secco denomina Duarte Galvão como o “heterônimo guerrilheiro” de Virgílio de Lemos, em prefácio escrito para o livro de Luciana Brandão Leal, Descolonizar a palavra: poesia moçambicana do século XX (2021), que está em fase de editoração.

3 Um exemplar digitalizado da revista Msaho (1952) foi anexado à tese Virgílio de Lemos: poesia em trânsito, de Luciana Brandão Leal, disponível online no catálogo da biblioteca da PUC Minas. Ter acesso a esse exemplar foi uma conquista importante do período de pesquisas em Lisboa, pois, com a sua digitalização, pude apresentar ao público leitor essa revista em cópia fidedigna, conforme a sua concepção inicial e única, feita a partir do original, em papel amarelo, como os papéis dos primeiros registros dos poemas verticais de Noémia de Sousa. Esse empenho me possibilitou divulgar, a público amplo, a revista Msaho no Brasil, em versão fidedigna, a modernidade gráfica e a proposta vanguardista que esse empreendimento literário representou (e representa) no cenário da Literatura moçambicana do século XX.

Referências

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Luciana Brandão Leal é Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas. Atuou como investigadora visitante na Universidade de Lisboa, com bolsa CAPES de doutorado-sanduíche. Professora Adjunto II da Universidade Federal de Viçosa (atuando no campus Florestal). Coordena projetos de pesquisas “Poesia moçambicana do século XX” e “Corpo e territorialidade em Maureen Bisiliat e Marcel Gautherot”, ambos registrados na Universidade Federal de Viçosa (2020-2022). Membro do grupo de pesquisas GEED – Grupo de pesquisas em estéticas diaspóricas, coordenado pela profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca. Integra a comissão editorial do literÁfricas. Possui diversos artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. Autora dos livros Descolonizar a palavra: poesia moçambicana do século XX e Virgílio de Lemos: poesia em trânsito, em fase de editoração.

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