O que é ser uma escritora negra hoje de acordo comigo-ensaios, de Djaimilia Pereira de Almeida
Lílian Paula Serra e Deus*
Não vivo de escrever, mas escrever é quem sou. Morreria, caso não pudesse escrever. E viveria uma vida de tortura, caso fosse impedida de o fazer, ou se não lograsse encontrar quem me lesse.
(Djaimilia Pereira de Almeida)
Djaimilia Pereira de Almeira nasceu em Luanda, Angola, em 1982. É romancista, ensaista. Com o romance Esse cabelo, recebeu o Prêmio Novos na categoria Literatura; com Luanda, Lisboa, Paraíso, venceu o Prêmio literário Fundação Inês de Castro. O romance A Visão das Plantas foi o vencedor do Prêmio Oceanos, 2020. Em 2023, publica o livro de ensaios O que é ser uma escritora negra de acordo comigo- ensaios.
Se hoje Djaimilia Pereira de Almeida é uma escritora negra reconhecida e premiada, o mesmo não se pode dizer de outras mulheres negras em outros tempos, que não o século XXI. Essa é uma das problematizações trazidas pela autora no livro de ensaios, publicado no Brasil pela Editora Todavia.
A obra é composta por, como pontuado na abertura, “dois ensaios e uma conversa”. O primeiro ensaio, que nomeia o livro, traz a perspectiva acerca do processo de escrita/publicação da própria autora no qual está implicada, sobretudo, uma discussão sobre o momento histórico no qual a escritora está inserida. Como sublinha Djaimilia Pereira de Almeida:
O meu maior privilégio imerecido é ter nascido em 1982. Não é ter tido uma educação, ter sido amada e protegida pela minha família. Não é habitação ou sequer acesso à saúde. A data do meu nascimento é o meu maior privilégio [...] Houvesse eu nascido setenta, oitenta anos antes, talvez até apenas cinquenta, tivesse eu a mesma inclinação, e o meu destino seria, com sorte, a cozinha, a vassoura, a roça. O meu maior privilégio é este tempo, o meu (p. 10)
A partir dessa premissa, a autora interpela às heranças coloniais que sonegaram das mulheres negras o espaço para ser uma escritora negra: “Apenas nesse tempo me posso dizer” (p. 11), é o que evidencia Almeida. Ao longo do ensaio, a escritora convoca o leitor a refletir sobre essa e outras questões, como, por exemplo, a sua condição de migrante, sua experiência diaspórica, atravessadas pela relação tensa com o pai que “sempre tratou o facto de eu ser negra como um segredo que ele escondia de mim” (p. 13). Todas essas situações foram determinantes para estruturar sua subjetividade: “Fui para Portugal com meu pai em menina. Este facto, arrancar brutal da flor pela raiz molda e explica o que sou, mesmo aquilo que não sei que sou.” (p. 12)
Almeida tece, a partir da importância do processo de escrita em sua vida, essas e outras proposições que aprofundam reflexões acerca do (não) lugar ocupado por mulheres negras que a antecederam.
O texto intitulado “A minha imaginação não se distingue da minha identidade” advém da ocasião do lançamento da revista serrote#41, em que Almeida dialoga em entrevista com a poeta e tradutora brasileira Stephanie Borges, informações que são enfatizadas na abertura no texto:
Para marcar o lançamento da serrote #41, Djaimilia Pereira de Almeida conversou com Stephanie Borges a propósito de “O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo”, ensaio que a escritora publicou originalmente naquela edição da revista. O diálogo entre a autora e a poeta e tradutora brasileira expandiu ideias do texto original e desenvolveu questões complexas num ensaio a duas vozes [...] (p. 31)
No terceiro ensaio, “A restituição da interioridade”, partindo de uma reflexão sobre a restituição de bens culturais por antigos impérios coloniais, Almeida interpela o leitor: “Mas aonde ir e a quem solicitar se aquilo que queremos recuperar é a interioridade negra?” (p. 61). A questão vai ganhando corpo a partir das perspectivas apontadas pela autora que se direcionam para o que ela enfatiza que também deve ser tomado como crime contra a humanidade: “Pode-se muito bem definir como crime contra a humanidade o apagamento da interioridade negra por meio da opressão colonial e a maneira como ela se perpetua na desconsideração pela experiência diaspórica.” (p. 62). A partir dessas reflexões, a autora questiona a literatura hegemônica que corroborou, por séculos, com essa opressão, através da criação de personagens negros/as estereotipados; de mulheres negras, sexualizadas, “seres exóticos” (p. 62). No ensaio, Almeida propõe possibilidades de restituição da interioridade negra, sobretudo, a partir das artes e da ficção e acentua a importância de artistas negros luso-afro-brasileiros que já caminham nessa direção.
O ensaio também propõe uma reflexão acerca de escritores e artistas da diáspora, como é o caso de Almeida, que vê a si como “compartilhando de uma identidade instável, sem pertencer a lugar nenhum, nem ao Ocidente, nem a África” (p. 67). Nesse sentido, a ensaísta se propõe a escrever contra o apagamento da interioridade negra, reflexo da violência colonial, o que faz deste livro de ensaios leitura fundamental para se pensar a escrita de mulheres negras, a partir do viés de questionamento de tempos passados, em que a publicação se fez voltada para autoria de homens brancos. É trazida, a partir também da ótica da comparação entre tempos históricos, a constatação e o vislumbre de possibilidades de um tempo presente em que a diferença possa ser abarcada. Para além disso, um debate pungente e necessário acerca das subjetividades negras se faz presente em diálogo com as experiências, sobretudo, de uma escritora negra diaspórica que questiona os espaços (des)ocupados por escritoras negras, interseccionando, principalmente, questões de raça e gênero para se pensar o seu lugar no mundo. Isso, de certa forma, aciona uma reflexão sobre o lugar de muitas outras mulheres negras no mundo ao longo dos séculos.
Dessa maneira, Djaimilia Pereira de Almeida se impõe como um nome importante a ser lido não somente pela sua rica produção ficcional, mas também a partir da perspectiva de suas produções teóricas, como os ensaios em questão.
Salvador, agosto de 2024.
Referências
ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo-Ensaios. Editora Todavia: São Paulo, 2023.
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* Lílian Paula Serra e Deus, professora adjunta Unilab/BA e escritora.