A propósito da narrativa contemporânea em Angola: notas sobre a noção de espaço em Luandino Vieira e Ruy Duarte de Carvalho[1]

Rita Chaves[i]

Nascida sob o signo da reivindicação, no contexto do desenvolvimento da imprensa na colônia, a atividade literária em Angola mesclou seu itinerário ao processo de formação do sentimento nacional, requerendo para si um papel fundamental na tarefa de "descobrir" a terra e fundar o país, como se explicita na proposta do movimento dos Novos Intelectuais de Angola.2 O compromisso de refletir sobre a realidade, compreendido como um ato de conhecimento, determinava a consecução do projeto literário, intervindo na organização de elementos condicionadores da estrutura dos textos. Ao longo das décadas, reforçando essa tendência, a literatura confirma-se como um exercício crítico, empenhada na desmontagem da mitologia da sociedade colonial e na constituição do projeto que se abriu com a perspectiva da libertação.

A efervescência desse período tem funcionado como uma das forças motivadoras dos estudos literários, especialmente no Brasil. De modo geral, nós, pesquisadores da área, temos alguma dificuldade em resistir à energia sedutora desses escritores, que associam o trabalho literário aos itinerários de uma utopia formadora que alicerçou o sentimento nacional e esteve na base da resistência - tão necessária nos duros anos da guerra que, como sabemos, prolongaram-se para além de 11 de novembro de 1975, data da independência. Durante muito tempo, fixamos nossa atenção num recorte que, dos becos de Luuanda às trilhas do Mayombe, ia projetando uma perspectiva de nação. Entre as ruas percorridas pelo cão que observava os caluandas3 e a varanda que abrigava o Carnaval da Vitória, os leitores colhiam as marcas de um desenho que não escondia a preocupação com os desvios que o sonho ia incorporando.

Ao mesmo tempo, a elevação de uma nova mitologia, capaz de fazer frente aos deuses eleitos pela gesta colonial, indicava a necessidade de uma apropriação da história. Principalmente no terreno da narrativa, articularam-se a vontade de documentar e o desejo de refazer a memória, fazendo aflorar outros pontos de vista, atitudes que se converteriam quase num destino da literatura nesses tempos conturbados, tornando-se muito tênues as fronteiras entre a ficção e a história. Obras como Yaka, de Pepetela (1985), Nzinga Mbandi, de Manuel Pedro Pacavira (1979), A conjura, de José Eduardo Agualusa (1989) e A casa velha das margens, de Arnaldo Santos (1999), revelam a tendência que se prolonga até o presente.

Em todas essas narrativas, materializa-se o gesto de encarar o passado como local em que se fundam os condicionamentos do presente, à boa maneira dos exercícios memorialísticos, observando-se, sem dúvida, um tipo de memorialismo que supera o plano do pessoal e converte-se numa forma de autobiografia coletiva. Nessa aliança com a história, o esforço de rever o que podemos identificar como trajetória nacional inclui o passado recente. É assim que podemos considerar os romances Maio, mês de Maria, de Boaventura Cardoso (1997), e A geração da utopia, de Pepetela (1992), ambos incursionando por terrenos ainda não pacificados na memória social de um país onde as mudanças são vividas em clima de convulsão.

Estabelecendo um pacto com a história, a literatura empenhava-se em dar corpo a esse projeto de reinventar um passado mais condizente com a ideia de futuro que era preciso cultivar. A complexidade da realidade sociocultural do país, entretanto, indicaria outros caminhos, sobretudo ao romance, que, sem dúvida, representa um gênero de prestígio na cena literária em causa. Para tratar desses outros rumos, e querendo discutir a contemporaneidade dessa literatura - que, como já dissemos, confere um charme irresistível ao seu passado -, escolhi dois autores que, vindos de outros tempos, isto é, daqueles gloriosos anos 1970, continuam a produzir e, o que é melhor, renovam-se em projetos que se desdobram e deságuam em textos belíssimos que não deixam de confirmar o peso da tradição acumulada.

Trata-se de dois autores que, sem a preocupação de documentar ou de recuperar a memória de tempos anteriores, enraízam o sentido de ruptura historicamente construído. Refiro-me a José Luandino Vieira e a Ruy Duarte de Carvalho, e centro minha atenção em seus dois mais recentes trabalhos: O livro dos rios (Vieira, 2006) e Desmedida (Carvalho, 2006), projetos que, em suas diferenças, apresentam aspectos comuns.

Trabalhando situações bastante diversas, essas duas narrativas a pontos convergentes, entre os quais podemos assinalar a relevância do espaço e o foco sobre a mobilidade como elementos de força na estruturação do ponto de vista. O sentido do deslocamento eleva-se como uma condição determinante na montagem do narrador que - com a competência já demonstrada em outros textos - esses autores constroem, orientados pela perspectiva de balanço da realidade a que nenhum dos dois renuncia. E o espaço, dado fundamental

Vale observar, todavia, que, em O livro dos rios Desmedida, ambos os autores se afastam da escolha anteriormente essencial em sua obra: Luandino deixa as terras de Luanda e mergulha nos rios e braços da mata, retomando no tempo a temática da resistência; e Ruy Duarte de Carvalho vai associar os sertões brasileiros ao seu sul assinalado pelo deserto - uma espécie de obsessão, e não apenas literária. Não há dúvida de que o espaço mantém a prevalência, confirmando o seu papel central no projeto narrativo cujos índices podemos localizar, por exemplo, em Luuanda (Vieira, 1981) e Nós, os do Makulusu (Vieira, 1985 , no caso de Luandino; e em Como se o mundo não tivesse leste (Carvalho, 1977) e As paisagens propícias (Carvalho, 2005), no caso de Ruy Duarte. Este autor, na própria produção poética, assegura dimensão significativa a esse elemento: Chão de oferta (1972), Lavra paralela (1987), Lavra reiterada (2000) e Ondula, savana branca (1982) são apenas alguns de seus livros de poemas, os quais, já no título, trazem pistas para a percepção desse fato, que a leitura atenta não irá desmentir.no exercício literário dos dois autores, também aqui se revela como produtor de sentido.

Em qualquer das modalidades cultivadas por esses autores, o trabalho de representação da realidade, compromisso constante da literatura, implica a mobilização de um sofisticado repertório de procedimentos que transforma o espaço em matriz de significados múltiplos, instituindo-se ainda como local de articulações importantes, como aquelas que se podem estabelecer entre o passado e o presente, entre a natureza e a cultura, entre as referências da tradição e os signos da modernidade. Se, em Luuanda (Vieira, 1981), Luandino institui, segundo suas próprias palavras, uma espécie de contramapa da mitologia colonial - colocando em cena os habitantes identificados com a exclusão sociocultural, eleitos pelo autor como protagonistas de suas histórias -, em Vou visitar pastores (Carvalho, 1999), obra com que Ruy Duarte volta ao universo da narrativa, assistimos à elevação da transumância como condição identitária que particulariza também o seu trabalho, como tão bem observa Osvaldo Manuel Silvestre acerca da questão:

A obsessão com o espaço resiste contudo - e esta é uma das suas mais fortes dimensões políticas - às figuras da fixação ou da radicação. Não por acaso, os espaços privilegiados na obra de RDC [Ruy Duarte de Carvalho) são habitados"de passagem" por povoações nómadas, o que torna ainda mais denso o nó que articula espaço, temporalidade e sujeito. A transumância arrasta, na obra de RDC, uma temporalidade do espaço e dramatiza interminamente o papel epistemológico do sujeito, que tenta conhecer, em trânsito, o espaço. (Silvestre, 2006, p. 26)

Nesses novos textos, percebemos que o senso da mobilidade projeta-se radicalizando a noção de movimento, atitude que faz pensar na ideia do deslocamento como estratégia para um melhor ponto de observação: no tempo e no espaço. Tanto em Vieira quanto em Carvalho, guardadas as diferenças, o objetivo é melhor ver o país, enxergando Angola não só para além de Luanda, mas também para além das fronteiras físicas que a história conturbada do continente demarcou.

Em O livro dos rios (Vieira, 2006), a mata substitui subúrbios e musseques4 como lugar onde se constroem e circulam os dados de uma identidade em processo. Deslocando-se pelo leito dos rios, cujas águas parecem guardar em seus surpreendentes movimentos as marcas de uma história que se revela sedenta de mudança, o narrador confronta-se com a vertigem da transformação, da qual a guerrilha é uma etapa e o nome, apenas um signo. Tema fundamental na literatura angolana entre os anos 1960 e 1970, a guerrilha é retomada como uma experiência filtrada pela memória e redimensionada por uma escrita apoiada em um jogo de imagens que traz para a prosa o ritmo da poesia - como, aliás, não é raro na escrita de Luandino Vieira -, adensando-se nas alusões aos topônimos, cujos significados parecem intensificados pela força de cada significante, como se fosse possível restaurar a perdida ligação entre os sons e os sentidos:

Mais tarde eu vi as águas largas, lentas, nas cataratas de Kalandula, nome que eu sinto com seus ventos remoinhando nas quedas, minha pronúncia também vira lenta, larga e renascem de novo, rio óbito da noite, neblinas e nevoeiros, os cacimbos5 de mil cores, espuma de diamantes, bafijado o vento reverdescendo a verde terra, quilómetros e léguas e luas pela terra angolana, esse vento que se aquece todo no soprar de seu nome - Kalandula! O que eu quis um dia gritar nas matas do Kialelu, naquele silêncio de capim seco que tem um corpo pendurado sem a música de um rio lhe acompanhando. (Vieira, 2006, p. 16)

É essa dimensão que Paula Tavares destaca no texto com que apresentou o livro na sessão de lançamento em Lisboa:

Por isso o escritor combina as fontes, recupera para a escrita a cartografia de um rio que arranca de sul para norte e projecta nas suas múltiplas margens os fantasmas de um tempo sedimentado entre a memória e o esquecimento. Para contar a história do Kwanza, o escritor constrói um texto como um artesão kuba6 constrói um tecido: ordena o caos, para ter o prazer de o desordenar de novo, numa escrita tensa e medida na dimensão poética da linguagem.

Na construção dessa cartografia, a música do rio levanta-se como algo a ser perseguido em toda a narrativa, remetendo, sem dúvida, à ideia de mudança de que o curso e o volume indomado das águas funcionam como índices. Reitera­da incessantemente, a imagem do rio multiplica-se em várias direções, como a recordar que o movimento da transformação é irreversível. Nada parece fixo e o processo de representação procura refletir essa crença, jogando inclusive com a apreensão do rio principal, o emblemático Kwanza. O chamado rio número um, um dos signos da unidade nacional, surpreende ao ser visto também na sua feminina condição:

[...] mas ouvi cantar nossa mãe Kwanza de boca aberta m'adormeceu em seu xuaxo7 de folhas de água dia que Agostinho Neto foi em Massangano - relâmpago dos óculos; palavra d'ordem caté o Kunene; e estrela na bandeira rubinegra [...) . (Vieira, 2006, p. 21)

Se, ao assumir o rio como metonímia fundamental, Luandino amplia sua área de ação, incorporando-o vivamente nas formas de representação de que sua linguagem se faz poderoso instrumento, Ruy Duarte, em sua mais recente narrativa, radicaliza a ampliação do espaço que sua obra propõe desde o início. Não podemos esquecer que o primeiro poema, publicado em seu primeiro livro, Chão de oferta (1972), chama-se "Sul"; e que sua primeira coletânea de contos intitula-se Como se o mundo não tivesse leste (1977). Depois de Vou lá visitar pastores (1999), Os papéis do inglês (2000) e As paisagens propícias (2005) confirmarem a direção de sua caminhada, ele acolhe a desmedida como parâ­ metro e focaliza esse estranho país que é o Brasil. Em Desmedida - Luanda-São Paulo-São Francisco e volta. Crônicas do Brasil (2006), Ruy Duarte de Carvalho persiste no diálogo com o espaço, daí extraindo elementos para uma reflexão que ultrapassa condicionamentos e modismos os quais, não raro, reduzem a força que a literatura pode alimentar.

O título é longo, prenunciando os percursos trilhados pelo autor, seja nas viagens que dão corpo à narrativa, seja no processo da escrita, que é também marcado pela travessia. São muitos os lugares que despertam a atenção e abrigam o pensamento, sempre atado ao desejo de refletir sobre as experiências e as projeções que esses lugares fermentaram no plano do imaginário. Nesse compasso misturado de lembranças, projetos e sensações, os nomes se vão sucedendo: Januária, Pirapora, a serra dos Tropeiros, Lençóis, Três Marias, Recife, Salvador, São Paulo e Luanda. Além dos lugares, alguns identificados como locais da escrita, há a força das referências colhidas nas leituras, reforçando a ideia de que a viagem de que o livro dá testemunho começou muito antes. Já no primeiro capítulo, o narrador indica:

 ...a estória então, ou a viagem que tenho para contar, começaria assim:

... tem um lugar, dizia eu, tem um ponto no mapa do Brasil, tem um vértice que é onde os estados de Goiás, de Minas Gerais e da Bahia se encontram, e o Distrito Federal é mesmo ao lado. Aí sim, gostaria de ir... (Carvalho, 2006, p. 15)

Antes mesmo que nos deixemos embalar pela ideia de que se trata de um local cuja atração seria determinada pela mística da localização geográfica, um ponto no centro de vários outros, a pista é dada:

Aí sim gostaria de ir... é lá que se passa muita da ação do Grande sertão: veredas... e depois descer para o alto São Francisco, que é o resto das paisagens de Guimarães Rosa... e ao baixo São Francisco, podendo, ia também... porque encosta aos Sertões euclidianos... sou estrangeiro aqui e nada me impede de incorrer no anacronismo de querer ir ver, de perto, Guimarães Rosa e Euclides da Cunha... (Carvalho, 2006, p. 15)

Fica o leitor prevenido de que há algo que precede os acontecimentos que serão a base da narrativa, ou seja, passamos a saber que a viagem, mais uma vez no exercício literário de Ruy Duarte de Carvalho, mescla-se à escrita, misturando­ se aos refinados processos que integram as suas estratégias de representação. No plano temático e/ou no nível da estrutura de suas obras, os deslocamentos inscrevem-se como presença determinante, como pudemos já verificar em títulos diversos como Vou lá visitar pastores, Os papéis do inglês, Actas da Maianga (2003) e As paisagens propícias. A novidade aqui é, então, o alcance do movimento: a narrativa sai de Angola, ultrapassa as fronteiras físicas do continente, que o escritor já pôs em causa em As paisagens propícias, e chega ao Brasil, fazendo do nosso território o seu campo de observação, não só para ver a nós, os brasileiros - que ele começou a conhecer muito antes do primeiro contato direto com o país -, mas também para se ver como angolano, subvertendo uma ação que se vem disseminando há décadas: o gesto de olhar a África para se compreender o Brasil.

Embora não possamos ignorar que, dos anos 1940 e 1950 até o presente, o Brasil vem sendo visto como uma fonte de sentidos de grande repercussão nas literaturas africanas de língua portuguesa - como atestam, por exemplo, os romances A geração da utopia (1992) e A gloriosa família - o tempo dos flamengos (1997), ambos de Pepetela, para citarmos somente duas importantes obras dos anos 1990 -, é a primeira vez que essa presença é trabalhada de maneira sistemática e explicitamente colocada na perspectiva da contemporaneidade. Isso significa que o escritor precisou ultrapassar os laços historicamente construídos pelos séculos de tráfico escravista, nos quais muitas vezes nós brasileiros temos parado o nosso roteiro de busca de similaridades, para tentar compreender mais a fundo, procurando decifrar sua complexidade, um quadro que, na sua visão, situa o Brasil numa condição muito especial e que tem sido objeto de sua atenção, ou seja, "percepções, expressões, entendimentos e impasses revelados pelo curso da expansão geográfica e cultural europeia, e da modernidade civilizacional, ao longo dos séculos" (Carvalho, 2006, p. 314).

Nessa incursão demorada, minuciosa, a aventura pelo concreto se faz sempre a par com a leitura de obras significativas, que vão sendo referidas ao longo da narrativa: Blaise Cendrars, Guimarães Rosa, Teodoro Sampaio, Euclides da Cunha, Richard Burton, Paulo Prado, Saint-Hilaire, Gilberto Freyre, Glauber Rocha e Antonio Candido são alguns dos nomes de que o autor se faz acompanhar nesse roteiro de travessias que se iniciam e terminam em Angola, uma vez que é ali que estaria o próprio sentido da viagem. E da escrita que se faz com ela, e por ela.

Essa mesclagem deliberada do espaço físico com o universo literário é também um ponto de aproximação entre as narrativas de Luandino e Ruy Duarte. Em ambas, percebe-se um adensamento cultural, projetado na aliança e no confronto de referências postas em circulação pela literatura e por outras formas discursivas. Emergindo como inspiração ou como citação - as duas formas de ressonância indicadas por Antonio Candido (2004, p. 43) -, textos, autores e personagens históricos transitam pelas obras num movimento que, em alguns momentos, abre-se à autorreferência. Em O livro dos rios (Vieira, 2006), temos não só a referência a Agostinho Neto, como também a presença de Langston Hughes, explicitada na epígrafe, e de António Cadornega, figura seminal na história de Angola. E ainda a lembrança de Kibiaka, um dos quatro cavaleiros com que o autor monta a sua particular mitologia em Nós, os do Makulusu (Vieira, 1985). Em Desmedida, além das nítidas remissões a autores que aparecem enumerados nas páginas finais, nomes como Lampião, padre Cícero, Agassiz e Carlos Drummond de Andrade, entre tantos outros, inserem-se num conjunto caracterizado pela heterogeneidade. E também naquelas páginas po­ demos reencontrar Paulino Kia Samba, o ganguela8 companheiro de outras viagens e personagem em textos como Os papéis do inglês (Carvalho, 2000).

Constituídas, assim, também de outros textos que ecoam nos registros da experiência que se pretende representar, tais narrativas se alimentam de heranças culturais já incorporadas ao patrimônio de seus autores e com o qual eles articulam maneiras de ver o mundo. Dessa estratégia não está alheia a sua capacidade de agenciar as vozes da tradição oral - melhor dizendo, das tradições orais presentes na base das matrizes culturais de seu país. E, desse modo,   os dois escritores, na sua capacidade criativa, apostam na possibilidade de, a partir de seu exercício, configurar outros padrões estéticos, ao mesmo tempo que fermentam a discussão a respeito da obra de arte e de seu lugar no mundo de que somos parte.

Esse parece ser, afinal, um dos sentidos de seu trabalho: ao investirem noutras noções de espaço, eles mobilizam a potencialidade da escrita como uma atividade apta a representar e a fundar mundos com que se pode repensar a vida em contextos tão conturbados. Na busca de novas geografias - perse­guindo o movimento sinuoso dos rios em direção ao interior do território ou atravessando os mares na procura de outros interiores -, José Luandino Vieira e Ruy Duarte de Carvalho, cultivando a força da linguagem que distingue suas obras, recolocam-nos diante do itinerário da literatura angolana e do processo de constituição da identidade angolana, que não deixa de ser uma de suas angústias, alertando-nos para o fato de que esse fenômeno, como objeto constante de nossa preocupação enquanto críticos literários, não pode deixar de ser visto sob ângulos que nos são abertos pela nossa contemporaneidade.

NOTAS

1 Originalmente publicado em África, escritas literárias: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, organizado por Carmen Tindó Secco, Maria Teresa Salgado e Sílvio Renato Jorge (Editora UFRJ / União dos Escritores Angolanos (2010).
2  Movimento cultural, orientado por ideias nacionalistas, que surge no final dos anos 1940, integrado por escritores como Agostinho Neto, António Jacinto, Mário António e Viriato da Cruz, entre outros. Ao seu aparecimento associa-se o surgimento da moderna poesia angolana. [N.da E.]
3 Caluanda: termo usado para designar os nascidos em Luanda; em alguns casos, é utilizado para referir os habitantes da capital, donos de um modo especial de viver. [N.da E.]
Musseques: bairro urbano ou suburbano, de ruas de areia, habitado por segmentos pobres da população de Luanda. Foram espaços importantes nas lutas nacionalistas. [N. da E.]
Cacimbo: espécie de névoa comum nos meses de inverno; a palavra é usada muitas vezes para designar o tempo frio. [N. da E.]
Kuba: grupo étnico que habita o centro do continente africano. [N. da E.]
7 Xuaxo: onomatopeia referente ao movimento dos galhos e folhas. [N. da E.]
8 Ganguela ou ngangela: etnia que habita a zona oriental de Angola, ao norte do rio Cubango, região que faz fronteira com a Namíbia. [N. da E.]

Referências

AGUALUSA, José Eduardo. A conjura. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1989.
CANDIDO, Antonio. O albatroz e o chinês. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.
CARDOSO, Boaventura. Maio, mês de Maria. Porto: Campo das Letras, 1997.
CARVALHO, Ruy Duarte de. Actas da Maianga. Lisboa: Cotovia, 2003.
                       . As paisagens propícias. Lisboa: Cotovia, 2005.
                       . Chão de oferta. Luanda: Culturang, 1972.
                       . Como se o mundo não tivesse leste. Lisboa: Cotovia, 1977.
       ______     .  Desmedida - Luanda-São Paulo-São Francisco e volta. Crónicas do Brasil.Lisboa: Cotovia, 2006
            . Lavra paralela. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1987.
            . Lavra reiterada. Luanda: Nzila, 2000.
            . Ondula, savana branca. Lisboa: da Costa, 1982.
            . Os papéis do inglês. Lisboa: Cotovia, 2000.
            . Vou visitar pastores. Lisboa: Cotovia, 1999.

PACAVIRA, Manuel Pedro. Nzinga Mbandi. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1979. PEPETELA, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos. A geração da utopia. Lisboa:Dom Quixote, 1992.
            . A gloriosa família - o tempo dos flamengos. Lisboa: Dom Quixote, 1997.
            . Yaka. São Paulo: Ática, 1984.
SANTOS, Arnaldo. A casa velha das margens. Luanda: Chá de Caxinde, 1999. SILVESTRE, Osvaldo Manuel. Notas sobre paisagem e tempo em Ruy Duarte de Carvalho. Setepalcos, Coimbra, n. 5, 2006.
VIEIRA, José Luandino. Luuanda. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1981.
                       . Nós, os do Makulusu. 4. ed. Lisboa: Edições 70, 1985.
                       . O livro dos rios. Lisboa: Caminho, 2006.


[i] Doutora em Letras pela USP, é professora associada de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na mesma instituição. Foi professora visitante na Yale University, em 1996/1997, e na Universidade Eduardo Mondlane, entre 1998 e 2004. Tem dois estágios de pós-doutoramento na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique. Integra o conselho curatorial do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e o conselho editorial das revistas Via Atlântica e Mulemba. É autora de A formação do romance angolano e Angola/Moçambique: experiência colonial e territórios literários.
Texto para download