Ética e poética em João Melo[1]

Mário César Lugarinho[i]

A história das literaturas dos países africanos de língua oficial portuguesa no século XX é a história do trânsito entre dois vetores: o da nacionalidade, que fundava a nação e a consciência nacional; e o de uma nova subjetividade imposta desde a formação de um sujeito negro-africano, ou simplesmente africano, consciente de sua herança tradicional e de seu lugar num mundo hostil, o que faz da memória - individual e coletiva - a sua permanente mediadora com esse mundo. Talvez esse seja o desafio mais premente para a geração de poetas angolanos que começam a ser publicados ao longo dos anos 1980. O primeiro vetor dominou a produção literária, ficcional e/ou poética desde as décadas anteriores à independência até 1975, quando o trânsito entre os dois vetores torna-se mais evidente. Entre os procedimentos nacionalistas, os quais já se convertiam em autêntica tradição literária, e o refluxo para a subjetividade, encontra-se aquela geração que Luandino Vieira, citado por Francisco Soares (2001, p. 250), denominou "geração das incertezas".

A obra de João Melo, que começa a ser publicada em 1985, é certamente uma das mais representativas desse período de transição: compromete-se radicalmente, rasurando os limites entre a literatura e a história, por submissão ao vetor da nacionalidade e por tomar, muitas vezes, o lugar do cronista e do historiador, como ocorre na geração de Agostinho Neto. No entanto, é com a experiência de sua lírica amorosa e com a sua mais recente produção que lança questões que impedem uma fácil revisão de seu projeto estético e político.

Em Angola, a literatura assumiu características singulares que subvertem a ordem na qual o Ocidente inseriu o poeta e sua obra. A dupla função delegada ao poeta, e ao escritor, preconiza questões já institucionalmente resolvidas pelos ocidentais - ao historiador cabe investigar o passado e reescrevê-lo para a compreensão de seu presente, ao passo que, em Angola, o poeta, convertido em cronista da história, recompõe o passado para justificar o presente e planejar seu futuro. A ausência de um discurso historiográfico capaz de oferecer, durante o período colonial, o manancial de memória nacional justifica o lugar singular que a literatura ocupou para a compreensão da cultura angolana nos anos anteriores à independência. A persistência nessa via só pode ser compreendida porque tal procedimento se conservou como inerente à literatura de Angola. Mesmo tentativas anteriores de construção de uma literatura fundada numa subjetividade individualizada não conseguiram gerar força paradigmática, pelo menos até o aparecimento da poesia de Ana Paula Tavares, com Ritos de passagem, em 1985, ou mesmo até a publicação de Tanto amor, de João Melo (1989).

No entanto, se Melo não tivesse retornado à cena literária angolana no fim dos anos 1990, com a publicação de Imitação de Sartre & Simone de Beauvoir (1999), poderíamos dar como encerrada a sua obra, uma vez que sua poesia, quase toda publicada entre 1989 e 1993, pouco se desviou de seus vetores iniciais. Se, por um lado, investia na revisão e na releitura de seu presente, com uma forte dimensão utópica, por outro, manteve um questionamento fértil acerca do discurso amoroso, do qual nasce a sua investida no conto.

A publicação dos contos de Imitação de Sartre & Simone de Beauvoir significa um aprofundamento de sua obra, uma vez que recupera os ecos que Tanto amor (1989) deixara - e que a crítica saudara como a mais original poesia daqueles anos pós-independência. Nesse conjunto de narrativas breves, Melo investe nas tensões cotidianas da vida amorosa, apresentando um sujeito amoroso mais amadurecido do que aquele dos tempos da poesia. Se antes o amor resumia-se ao jogo da sedução, agora o duro dia a dia das relações conjugais é a tônica do seu projeto narrativo, no qual o desencanto é o solo onde se assen­ta a ação narrada - desencanto que, aliás, será a marca fundamental do livro seguinte, Filhos da pátria (2001), sobre o qual nos deteremos.

Vale recordar que, no mesmo ano de publicação de Imitação, José Eduardo Agualusa publica o seu Fronteiras perdidas (1999), no qual coloca em severa discussão o comprometimento do cânone nacional angolano com o Estado. É curioso notar que, para Agualusa, a utopia, centro gerador da produção literária dos anos 1960 e 1970, esgotara sua capacidade de ofertar sentidos ao presente histórico. De igual maneira, Melo, em seu Filhos da pátria, deixa de lado a coincidência entre Estado e nação e promove um redimensionamento dessa relação, retomando em outra direção o primeiro vetor de sua obra: o nacionalista. Vale assinalar que, tendo sido um dos jovens poetas que mais saudaram a independência e assinalaram o período de construção histórica do Estado e da nação, Melo entra em um processo de autoavaliação, pondo em questão grande parte de sua produção poética anterior. Não que encontremos um processo de negação do poeta por parte do narrador, mas é flagrante o fato de que aquele que compôs versos como A cidade é nossa não pode ser aquele que compõe um conto como "Tio, mi dá só cem" :

A cidade é nossa. Na verdade
sempre conhecemos as linhas viciadas
da sua quadratura. Enfim
destruímos os fios invisíveis e dramáticos
que nos mantinham acorrentados
ao cosmos suburbano da miséria. (Melo, 1989, p. 66)

Já em "Tio, me dá só cem", a voz narrativa é o relato em tom confessional num momento de extrema tensão de um menor em situação de marginalidade social: "Tio, mi dá só cem, só cem pra comprar um pão, tô então com fome, inda não comi nada desde antesdontem..." (Melo, 2001, p. 31)

Ou mesmo, como que para reafirmar o contraste entre o poeta e o narra- dor, verifiquemos os seguintes versos:

Dizem: demos novos mundos
ao mundo. Con-
cluem:
Deus autorizou-nos a:
que vos chupemos até
ao osso. (Melo, 1989, p. 42)

E encontremos num conto como "O elevador" a seguinte reflexão a respeito de um alto executivo, ex-burocrata do Estado:

Como é que este gajo ficou assim? O tipo sempre foi o mais radical de nosso grupo, defendia que na Angola do futuro as classes deveriam ser abolidas e a exploração do homem pelo homem extinta para todo o sempre - como é que se transformou assim num novo-rico nojento? (Melo, 2001, p. 21)

É inevitável observarmos os ecos da fala do soldado ao abordar o narrador do conto "O Evangelho, segundo a serpente", de José Eduardo Agualusa, publicado em Fronteiras perdidas:

Também dizem que nós destruímos esse país. Destruir? Estamos simplesmente a reajustá-lo à África, aos nossos hábitos culturais. Luanda, por exemplo, era uma cidade europeia, um corpo estranho relativamente ao resto do país. Foi preciso corrompê-la para a libertar. [ ...] A desigualdade social favorece o desenvolvimento: os pobres invejam os ricos e por isso trabalham. Os muito pobres trabalham para não morrerem de fome. (Agualusa, 1999, p. 83)

No que consiste, então, a mudança flagrante de direção nos vetores da produção literária de Melo? Alguns críticos podem chamar a atenção para o fato de haver uma nítida linha de amadurecimento em sua obra, com a utopia da juventude sendo substituída por um realismo radical, próprio da maturidade. No entanto, podemos sublinhar que, ao contrário do que aparentemente se observa, Melo aprofunda seus vetores fundamentais, mesmo que em direção oposta. Há de se observar que sua poética estava assentada sobre uma ética indiscutível, a qual, se não punha a tradição do povo angolano como fundamento, trazia valores que seriam radicalmente abolidos pelas razões de Estado - nem sempre as mesmas razões da nação. Fiel à sua poética dos primeiros anos de literatura, Melo mantém vivos os seguintes versos como um programa literário:

O regulamento
do poeta
é este
juramento:
ser do povo
o instrumento
aguçado
e atento
às exigências
do momento
incansável [ ...] (Melo, 1989, p. 14)

Outro aspecto que deve ser assinalado nesta produção é a problematização da questão do gênero, na medida em que, desde Tanto amor (1989), Melo é o poeta angolano que mais traduz a crise do masculino. Certamente, em Imitação de Sartre & Simone de Beauvoir é que observamos o que queria dizer quando publicou, em 1989, o poema "O jogador":

Mandei-te mil sinais codificados:
panos encomendados
de terras distantes
os melhores despojos
de minhas caçadas
olhares oblíquos
lançados de longe
Pacientemente tecia
a minha armadilha
como um solitário caçador
Sou especialista
em jogos secretos
Contudo os meus
arrojados lances
de nada valeram
O amor não é um jogo
de cartas marcadas. (Melo, 1989, p. 27)

Melo aprendera que de nada valia a substituição da lógica do caçador pela do sedutor; a resposta à fatal pergunta feita por Freud, "o que quer uma mulher?': permanece reticente. Utilizando a mesma lógica do guerrilheiro e do soldado, não consegue atender às novas exigências do feminino, isto porque a crise do masculino expressa por Melo nasceu diante do comportamento feminino que não mais se assentava sobre a tradição. Dessa maneira, é preciso verificar que estamos diante de uma crise de subjetividade profunda - por um lado, na relação com o Estado; por outro, naquilo que "naturalmente" era dado pela cultura: o lugar do homem, ou melhor, o lugar do masculino. Melo expressa a sua crise, não a resolve, mas deixa vãos por onde se pode vislumbrar a ascensão de um sujeito mais adequado, porque inadequado às incertezas do novo tempo de paz. Talvez por isso prefira investir na resolução de sua relação com o Estado.

É flagrante que Filhos da pátria (2001) representa o resultado do processo de falência do projeto de Estado-nação, que foi substituído pelo Estado cartorial, quiçá empresarial, constituído a partir do abandono, em nome da inclusão no processo de globalização econômica, do programa político de cunho marxista instituído na independência. A fidelidade de Melo à sua ética poética torna-se fator de resistência na medida em que mantém firme o compromisso assumido desde o surgimento do Estado. Não é demais afirmar que, ao tomar como matéria literária os espaços e personagens marginalizados, Melo faz uma crítica mordaz à sociedade e ao Estado angolano, transitando da posição confortável de poeta institucionalizado para a de autor identificado com as massas, que não foram convidadas para o banquete da globalização, ação que será aprofundada em The serial killer e outros contos risíveis ou talvez não (2004).

Neste ponto, não há como não notar que a obra narrativa mais recente de João Melo está em consonância com a série cultural brasileira que vem se destacando desde o advento da chamada "cultura de periferia" nos anos 1990. Nessa década, a cultura dos grupos socialmente marginalizados, oriundos da periferia das grandes cidades brasileiras, gradativamente foi ganhando espaço na mídia e recebendo a atenção de nossa crítica literária, da qual são exemplos flagrantes Estação Carandiru, de Dráuzio Varella, Cidade de Deus, de Paulo Lins, ou as letras de rap dos Racionais MC ou de MV Bill. Além disso, não há como não esquecer que tal conjunção já fora observada por José Eduardo Agualusa em seu O ano em que Zumbi tomou o Rio (2002). A crítica profunda ao estado de coisas ao qual a globalização levou as nações de periferia, bem como as populações periféricas das nações centrais, é a resposta possível que a cultura popular pode dar ao movimento de globalização - ao lado das ações mais radicais dos movimentos populares em busca de justiça social e de uma globalização mais solidária.

Tal movimento, que pode ser acertadamente apontado no estatuto do pós­ colonialismo, numa autêntica atitude de reação às ações políticas e econômicas advindas do que Antonio Negri e Michael Hardt (2001) denominaram "Império': certamente são a melhor resposta, no nível discursivo, à falência do Estado-nação como realização da utopia. Observemos as falas consonantes da periferia, da marginalidade. Talvez nunca as fronteiras nacionais das literaturas tenham sido tão abolidas como agora, na medida em que, apossando-se de sua própria discursividade e, principalmente, instituindo-se como subjetividade, estão ganhando voz para além das instâncias nacionais e políticas tradicionais. O longo discurso do personagem-narrador do conto "Tio, mi dá só cem" é exemplo imediato, já que o personagem, apesar de desconhecer seu próprio nome, consegue enunciar o discurso de sua origem em meio à violência de uma guerra civil e dos desastres de uma migração forçada. Não é mais apenas o sujeito negro que emergia nos anos da literatura de resistência ao colonizador; é a requisição de uma subjetividade sobre quem sempre se falou mas que não ganhou voz efetiva no plano político e social, apesar de ter sido voz privilegiada nos anos de emergência das literaturas das nações africanas. Mesmo se requisitarmos a fala canônica de Agostinho Neto em sua Sagrada esperança, verificaremos que o futuro cada vez mais se atrasa, ou, se já chegou, não é de forma alguma o lugar da utopia.

NOTAS

1 Originalmente publicado em África, escritas literárias: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, organizado por Carmen Tindó Secco, Maria Teresa Salgado e Sílvio Renato Jorge (Editora UFRJ / União dos Escritores Angolanos (2010)).

Referências

AGUALUSA,José Eduardo. Fronteiras perdidas. Lisboa: Dom Quixote,1999.
                    ______    . O ano em que Zumbi tomou o Rio. Lisboa: Dom Quixote,2002.
MELO,João. Poemas angolanos. Porto: ASA,1989.
            . Tanto amor. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1989.
            Imitação de Sartre & Simone de Beauvoir. Lisboa: Caminho,1999.
            . Filhos da pátria. Luanda: Nzila,2001.
            . The serial killer e outros contos risíveis ou talvez não. Lisboa: Caminho, 2004. NEGRI, Antonio; HARDT,Michael. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.
SOARES, Francisco. Notícias da literatura angolana. Lisboa: IN/CM, 2001.
TAVARES, Ana Paula. Ritos de passagem. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1985.


 [i] Doutor pela PUC Rio (1997). Livre-docente (USP, 2012), é professor associado de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo. É autor de Manuel Alegre: mito, história e utopia (Lisboa: Colibri, 2005) e Uma nau que me carrega: rotas da literariedade em língua portuguesa (Manaus: UEA Edições, 2013)

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