Mayombe: útero da revolução1

Gustavo Henrique Rückert*

 

Resumo

Este artigo pretende revisitar o romance Mayombe, clássico literário angolano escrito por Pepetela no início dos anos 1970 e publicado em 1980. Desde então, boa parte da crítica literária se debruçou sobre o romance para a análise de temas como a relação entre literatura e história; os aspectos autobiográficos do texto; a estrutura fragmentada e polifônica da narrativa; o tribalismo como obstáculo à revolução; o protagonista Sem Medo como “novo homem angolano”; a crítica ao autoritarismo nas estruturas internas do MPLA. Propomos, no entanto, uma abordagem alternativa da obra: uma análise tendo como foco a Floresta do Mayombe. Para tanto, utilizamos os pressupostos teóricos do realismo animista – corrente estética africana defendida pelo próprio Pepetela e por Henrique Abranches, também escritor angolano. A partir dessa perspectiva de leitura, pode-se compreender a floresta como personagem da narrativa, sendo agente responsável pelos principais acontecimentos do enredo.

Palavras-chave: Mayombe, Pepetela, realismo animista.

O realismo animista como descentramento epistêmico da crítica literária

Um dos lugares comuns da crítica literária, sobretudo brasileira e portuguesa, a respeito das literaturas africanas, está nos conceitos de fantástico, mágico ou maravilhoso. Assim, a visão de mundo europeia enquadra a produção literária dos países africanos em visões culturais marcadas pelo estranhamento. Muitas vezes acabam se reproduzindo estereótipos coloniais a respeito dessa produção literária, expressos em categorias como o místico, o exótico, o absurdo, o ininteligível, entre outros. Nesse sentido, a crítica literária santomense Inocência Mata alerta para os perigos de um pós-colonialismo centrado na episteme europeia, que tende a buscar a reprodução dos modelos ocidentais na cultura dos “orientes” – reduzida à condição de simulacro. Para a pesquisadora (2014, p. 31),   

Hoje cada vez mais as críticas à crítica pós-colonial, sobretudo aquelas que vêm dos ex-impérios, convergem para a consideração de que, não obstante a consciência da necessidade de dialogar com as “epistemologias do sul” na construção do saber, os atuais estudos culturais têm-se reorganizado em outros alicerces, diferentes dos tradicionais, de antagonismos lineares e duais, que continuam a perpetuar a supremacia de uma estrutura ideológica e histórica espaço-temporal.

Dessa forma, a celebração da diversidade nos atuais estudos culturais, e em particular caso, pós-coloniais, encobre muitas vezes uma “tendência hierarquizante da diferença”. Se o intuito inicial dessa teoria é a análise crítica das relações de colonialidade, é imprescindível à sua renovação um descentramento epistêmico (para isso, Mata refere-se ao conceito de “epistemologias do sul”, de Boaventura de Sousa Santos – 2010).  É por meio da crítica política ao próprio saber, buscando geografias outras do conhecimento (para valorizarmos, de fato, a diferença) que podemos almejar esse descentramento:

Uma geocrítica do eurocentrismo pressupõe a instituição de um desvio em direção a uma gramática alternativa com categorias e perspectivas que neutralizem – ou, pelo menos, façam desvanecer – o peso das mediações metropolitanas da crítica das produções culturais dos “países periféricos”, de espaços periferizados, relegados a um lugar subalterno na produção contemporânea de conhecimento, pois o eurocentrismo é uma reconstrução mitológica recente (da época moderna) da história da Europa e do mundo [...]. (MATA, 2014, p. 32)

Na literatura, essa renovação se faz por um olhar que não privilegie os estereótipos referidos anteriormente. Com esse intuito, o próprio Pepetela, juntamente com Henrique Abranches, também escritor angolano, propôs o conceito de realismo animista como uma estética propícia às artes africanas. Inicialmente, a ideia foi exposta por meio da ficção, sendo defendida pelos personagens Lu e Jaime, do romance Lueji: o nascimento de um império, publicado em 1990.

– [...] Eu queria era fustigar os dogmas, un, deux, foueté, un, deux, trois, quatre, plié
– Eu sei, Jaime. Por isso te inscreves na corrente do realismo animista...
– É. O azar é que não crio nada para exemplificar. E ainda não apareceu
nenhum cérebro para teorizar a corrente. Só existe o nome e a realidade
da coisa. Mas este bailado todo é realismo animista, duma ponta à outra.
Esperemos que os críticos o reconheçam. (PEPETELA, 1997, p. 451).

Neste diálogo, os personagens debatem sobre a encenação de um espetáculo que tem por tema a rainha do Império Lunda que dá título ao romance. Entendem que as noções do balé clássico não satisfazem a necessidade que a representação do tema impõe. Daí a necessidade de uma estética amparada nas culturas africanas, o que leva os bailarinos a incorporar elementos locais ao espetáculo. Na sequência, Jaime conclui que “isto que andamos a fazer é sem dúvida alguma [realismo animista]. E se triunfamos é graças ao amuleto que a Lu tem no pescoço.” (PEPETELA, 1997, p. 452).

O destaque ao amuleto no pescoço da personagem protagonista, bailarina que encena Lueji, é fundamental. Este materializa a presença da própria Rainha Lueji na apresentação. Muitas religiões africanas entendem que a vida não é algo individual, restrito no tempo, tampouco privilégio humano. Assim, antepassados, animais, pedras, plantas, também atuam no mundo. A vida, nessa visão, não pode ser reduzida aos limites individuais do corpo humano. Ela perpassa todos. Ao propor uma estética em consonância com as culturas africanas, o realismo animista propõe o entendimento da vida neste aspecto amplo, o que rompe com os dualismos presente/passado, cultura/natureza, mente/corpo, individual/coletivo, eu/outro, os quais constituíram a modernidade europeia.

Para Tzvetan Todorov (1975), o realismo fantástico sustenta-se em uma tensão do explicável e do não explicável, do natural (científico) e do sobrenatural. Se o fantástico é um elemento justificável para o teórico búlgaro, o maravilhoso se caracteriza por não ser justificável: trata-se daquilo que é plenamente sobrenatural. No contexto latino-americano, foi utilizado ainda o termo o realismo mágico, como pode ser observado nas reflexões do escritor argentino Jorge Luis Borges (2015). A magia, nesse sentido, advém da aproximação de termos distantes e inusitados, também não justificáveis a não ser pela “operação mágica” proporcionada pelo escritor no âmbito literário. Embora o mágico afaste-se, de certa forma, da lógica europeia, mantém uma certa tendência à utilizar a razão como parâmetro classificatório entre o que é mágico e o que não é.  

A aplicação dos realismos fantástico, mágico e maravilhoso às artes africanas, portanto, limita essas culturas a uma ideia centrada na ciência moderna europeia que classifica os fenômenos como científicos ou não, explicáveis pela razão ou não. A presença de antepassados e da natureza como personagens atuantes (e não como pano de fundo ou mero cenário) é comum em enredos africanos e não é explicada pela ausência de razão.

Muitas vezes, obras de escritores como Mia Couto, Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa, Boaventura Cardoso, Suleiman Cassamo, entre outros, foram enquadradas como maravilhosas ou mágicas, ou seja, inexplicáveis aos olhos europeus. No entanto, é preciso entender que esses aspectos são plenamente explicáveis na visão de mundo de muitas culturas africanas. Dessa forma, a presença de mortos e uma “natureza humana” não é sobrenatural, mas natural. Por isso, a defesa do realismo animista como uma forma de realismo afeita ao que produzem os artistas africanos. Em entrevista, Henrique Abranches (2019, n.p) define o termo como “[...] um realismo que anima a natureza. [...]. Aquilo está baseado em antepassados e em poderes que existem na natureza.”.       

Mayombe: personagem e protagonista       

O Mayombe, também grafada como Maiombe, é uma região situada entre os países República do Congo, República Democrática do Congo, Gabão e Angola, mais especificamente na província de Cabinda. Trata-se de uma região montanhosa coberta por uma densa floresta tropical, a qual é conhecida como Floresta do Mayombe. Inevitável, portanto, abordar uma leitura de Mayombe centrada na floresta sem chamar atenção para o próprio título atribuído ao romance. Seu grau de protagonismo é tão grande que é ela que intitula o texto, e não algum dos guerrilheiros, como Sem Medo, ou a própria guerra anticolonial.

Outro elemento de imprescindível análise é a epígrafe, que tensiona dois polos principais:

Aos guerrilheiros do Mayombe,
que ousaram desafiar os deuses,
abrindo um caminho na floresta obscura,
Vou contar a história de Ogun,
o Prometeu africano. (PEPETELA, 2009, p. 9)

 Um dos polos é o herói, capaz de se opor às divindades em prol do coletivo. Ele é representado por dois personagens mitológicos que têm em comum a questão da coragem no desafio aos deuses para a inauguração de novos caminhos ao humano: Ogum, orixá da tradição yorubá, comum a diversas regiões da África, entre elas Angola; e Prometeu, titã personagem da tradição grega (RÜCKERT, 2019). O orixá é senhor da guerra, mas também do ferro e do aço. Transmitiu aos homens a sabedoria para, através de instrumentos como arado, enxada, pá, machado e catana, vencer a natureza. Já o titã legou aos mortais o conhecimento do fogo, que teria roubado da deusa Héstia. Os homens então passaram a ter mais poder, visto que só os deuses detinham o controle sobre esse elemento.

O segundo polo dessa epígrafe está no âmbito da natureza, apresentada como desafiadora – um obstáculo ao herói. Para muitas culturas africanas, natureza equivale à divindade, já que nela residem os espíritos dos antepassados. Por isso, é uma natureza animada, humana e divina. O paralelismo entre “deuses” e “floresta escura” reforça essa relação.

Sendo o enredo do romance a narrativa mítica do herói que desafia as divindades da natureza, estes dois polos (herói/humano e divindade/natureza) se manifestam respectivamente em Sem Medo, guerrilheiro que procura unificar as diferentes culturas e etnias em prol da independência de Angola, e a Floresta do Mayombe, na fronteira norte do país, onde se instalaram as principais bases do MPLA. Engana-se, porém, quem entende o desafio entre o guerrilheiro e a floresta como uma relação de oposição binária entre ambos, ou mesmo uma relação de superioridade da divindade em relação ao humano. Trata-se muito mais de uma jornada de aproximação, em que se vai descobrir o humano no divino, e o divino no humano.

Essa mesma relação entre os dois elementos apontados na epígrafe é novamente evidenciada no seguinte trecho: “a mata criou cordas nos pés dos homens, criou cobras à frente dos homens, a mata gerou montanhas intransponíveis, feras, aguaceiros, rios caudalosos, lama, escuridão, Medo (PEPETELA, 2009, p. 70, grifos meus)”. No nível das ações, a mata é sujeito, os homens é que são objetos. Dessa forma, a mata desempenha ações que são obstáculos aos homens que ousam adentrá-la. Destaque ainda para o Medo como personificação gerada pela mata. Há aí uma referência ao personagem Sem Medo, uma vez que este guerrilheiro desenvolve com o seu “oponente” natural uma outra relação, de pertencimento, não de medo – daí o seu nome.

Outra passagem que evidencia a condição de agente assumida pela floresta é o episódio de derrubada de uma grande árvore por uma madeireira portuguesa. Sua derrubada é narrada como o agonizar de uma gigantesca criatura viva.

Os guerrilheiros encavalitaram-se num enorme tronco caído. Deixara de respirar, monstro decepado, e os ramos cortados juncavam o solo. Depois de a serra lhe cortar o fluxo vital, os machados tinham vindo separar as pernas, os braços, os pelos; ali estava, lívido na sua pele branca, o gigante que antes travava o vento e enviava desafios às nuvens. Imóvel mas digno. Na sua agonia, arrastara os rebentos, os arbustos, as lianas, e o seu ronco de morte fizera tremer o Mayombe, fizera calar os gorilas e os leopardos. (PEPETELA, 2009, p. 28, grifos meus).

Neste dramático episódio, mais uma vez um elemento da floresta, neste caso a grande árvore, desempenha verbos de ação: respirar, travar, arrastar, roncar. Suas partes são descritas com a mesma nomenclatura de partes do corpo humano: pernas, braços, pelos, cabeça (subentendida no verbo decepar). Outro fator importante é que a morte desse gigante não é a morte de um ser qualquer. É uma morte que merece uma narrativa digna de sua imponência, uma vez que revela o divino.

A respeito do episódio da morte da árvore, é ainda fundamental observarmos que a concepção de vida animista não é a de uma vida individualizada, tal qual preconizou a modernidade europeia. A vida não se encerra no indivíduo. A vida é comum aos elementos, inclusive os podendo perpassar (GARUBA, 2003; WITTIMANN, 2012; PARADISO, 2015). Um antepassado pode, por exemplo, morrer e seu espírito permanecer em uma árvore. Pode, inclusive, transitar da árvore para outras formas ainda. Por esse motivo, a árvore derrubada não é apenas uma parte individualizada do Mayombe. Ela é em si a própria presença do Mayombe.

Ao observarmos que a floresta desempenha ações ativas na narrativa, sendo tratada pelos narradores da mesma forma que as pessoas (com membros antropomorfizados, desejos, reações, e ocupando sintaticamente a condição de sujeito verbal), entendemos que ela não configura elemento narrativo de cenário, e sim de personagem. É certo que na literatura ocidental há muitos espaços que transcendem a simples ideia de pano de fundo, tornando-se atuantes importantes da obra. É o caso de O cortiço, de Aluízio de Azevedo, de O velho e o mar, de Ernest Hemingway, de As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino, de Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, entre tantos outros exemplos. No entanto, prevalece nesses casos uma visão ocidental sobre o espaço que, por mais que possa condicionar os personagens, levá-los a refletir e/ou agir, é sempre um dado estático em oposição às pessoas. Em Mayombe, essa relação é diferente: a atuação da floresta e dos homens é igualada. Um é tão vivo e atuante quanto o outro. E isso não é visto como um dado do domínio social, geográfico ou antropológico: é parte de uma cosmovisão a qual podemos entender animista.

Mayombe: divindade feminina

Se a mata desempenha na narrativa a função de personagem, inclusive personagem protagonista, dados título e epígrafe, esse protagonista é nomeado explicitamente como uma divindade:

O Mayombe tinha criado o fruto, mas não se dignou mostrá-lo aos homens; encarregou os gorilas de o fazer, que deixaram os caroços partidos perto da Base, misturados com as suas pegadas. E os guerrilheiros perceberam então que o deus-Mayombe lhes indicava assim que ali estava o seu tributo à coragem dos que o desafiavam: [...] Zeus preocupado com a salvaguarda de Prometeu, arrependido de o ter agrilhoado, enviando agora a águia, não para lhe furar o fígado, mas para o socorrer. (PEPETELA, 2009, p. 69-70, grifo meu)

A luta anticolonial encetada pelo MPLA adotou a tática da guerrilha. Não havia exército profissional e capacitado, tampouco armamento, para um enfrentamento aberto das tropas enviadas de Portugal pelo governo fascista de Salazar (TUTIKIAN, 2006). Os guerrilheiros, então, tinham suas bases no interior das matas. De lá, saíam apenas para missões pontuais, como saques a minas e madeireiras, sequestro de trabalhadores para aulas de revolução, diálogos com as comunidades, ataques a partes isoladas de tropas do exército português.

Desse modo, se adentrar e sobreviver na densa, úmida e instransponível Floresta do Mayombe era um obstáculo difícil aos angolanos, aos portugueses era impossível. Por esse motivo, desafiar esse deus é habitá-lo. Assim, a natureza protegeu a revolução angolana, escondendo seus guerrilheiros, dando-lhes o alimento necessário e abatendo os portugueses que ousassem procurá-los. É Zeus que acolhe Prometeu; Mayombe que abraça Ogum.

Ao assumir essa importância central para a libertação de Angola, o personagem Mayombe, além de divindade, revela-se como personagem feminina: trata-se de uma deusa. Após a construção da base no interior da floresta, considera-se que “foi parida pelo Mayombe a base guerrilheira” (PEPETELA, 2009, p. 69, grifo meu). A geração da vida é um tema caro à religiosidade africana. Por isso, em algumas culturas, há a presença de divindades femininas associadas à fertilidade, à colheita e à natureza. Não é diferente com o Mayombe. É no interior úmido, fechado e escuro da mata que vai sendo gestada a independência de Angola. Tal como um útero, é invólucro, casa primeira onde há a segurança para o desenvolvimento. A floresta assim acolhe os seus filhos, os angolanos, protegendo-os em seu desenvolvimento:

Só o fumo podia libertar-se do Mayombe e subir, dispersando-se rapidamente no alto. (p. 13)
Em breve acordariam com a chuva miudinha que primeiro só molharia a copa das árvores e começaria a cair das árvores quando já tivesse parado de chover. (p. 16)
O Mayombe não deixava penetrar a aurora, que, fora, despontava já. (p. 17)
Só às seis horas os primeiros luares conseguiriam infiltrar-se pela copa das árvores, recriando o verde do Mayombe (PEPETELA, 2009, p. 213).

Outro importante elemento para uma leitura de Mayombe centrada na floresta está no épico episódio da morte de Sem Medo. O ambiente da administração do MPLA é descrito no romance como um ambiente de hipocrisia, abusos de poder, corrupção, aproveitamento de cargos para benefício privado, machismo, tribalismo, entre outros problemas. Sem Medo, visto por vezes como um anarquista, era bastante crítico ao próprio movimento e sua estrutura. No entanto, entendia que o colonialismo era o mal maior a ser combatido no contexto. Por esse motivo, buscava sempre a superação das intrigas, entendendo que a luta-anticolonial e a melhoria das condições humanas de todos os angolanos deveriam se sobrepor a qualquer disputa interna.

Em um ataque dos portugueses, Sem Medo acaba sendo atingido. Como todo herói épico, ele entrega sua vida em benefício do coletivo. Seus comandados querem ficar para socorrê-lo. Sua ordem, no entanto, é que partam. Sua morte preserva assim a vida dos comandados (não importado suas diferenças, se são oriundos do Congo, do Ndongo, da Matamba ou do Kassanje, se são negros, brancos ou mestiços – afinal representam a própria heterogeneidade angolana). Assim, sua vida é o grande ensinamento da valorização das diferenças; sua morte é o grande ensinamento de que a vida está no todo, e não no individual.

– Deixem-me aqui. Morrerei no Mayombe. (p. 244)
A vida de Sem Medo esvaía-se para o solo do Mayombe, misturando-se às folhas em decomposição. (p. 245)
– Cavemos com os punhais, com as mãos, com o que quiserem [ordenou o Comissário Político]. Mas ele será enterrado aqui. Ninguém tem o direito de transportar Sem Medo morto. Onde ele morreu é onde ele fica enterrado. É a única homenagem que lhe podemos prestar. (p. 246)
As flores de mafumeira caíam sobre a campa, docemente, misturadas às folhas verdes das árvores. Dentro de dias, o lugar seria irreconhecível. O Mayombe recuperaria o que os homens ousaram tirar-lhe. (PEPETELA, 2009, p. 247, grifo meu)

Mais uma vez, temos um Mayombe como sujeito, o qual produz a queda das flores de mafumeira e a recuperação do espaço. Esses gestos encenam o acolhimento dessa deusa a seu filho. Como em Pietá, de Michelangelo, a mãe abraça seu filho morto. Se é a floresta o solo de nascimento, é também o solo que recebe e protege na hora da morte. Por fim, o episódio da morte de Sem Medo traz ainda a integração plena entre os dois polos destacados na epígrafe. Ao se misturar às folhas em decomposição no colo da floresta, Sem Medo torna-se floresta. Fecha-se assim o ciclo mítico do herói, agora plenamente integrado ao espaço onde se origina sua saga.

Nas culturas africanas, muitas divindades são os antepassados da própria comunidade. Dessa forma, a relação entre deuses e humanos também não é tão dicotômica como na cultura ocidental. Os humanos tornam-se divinos e permanecem presentes, interferindo na vida social. O realismo animista, assim, torna o passado algo presente, dissolvendo os limites do indivíduo (SARAIVA, 2007; ARAÚJO, SILVA, 2018). Sem Medo, homem, guerrilheiro, Ogum-Prometeu que desafiou o Mayombe, tornou-se também o deus-Mayombe.

Tal é o Mayombe, os gigantes só o são em parte, ao nível do tronco, o resto confunde-se na massa. Tal o homem. As impressões visuais são menos nítidas e a mancha verde predominante faz esbater progressivamente a claridade do tronco da amoreira gigante. As manchas verdes são cada vez mais sobrepostas, mas, num sobressalto, o tronco da amoreira ainda se firma, debatendo-se. Tal é a vida. (PEPETELA, 2009, p. 245-246)

Homens, árvores, deuses, vivos, mortos, solo, floresta se sobrepõem em uma massa, com a mancha verde da vida, que perpassa a todos, predominante. Tal é o Mayombe. Tal é Sem Medo, que é todos angolanos. Para Carmen Tindó Secco, “Mayombe, floresta úmida, cheia de lama fecunda, é metáfora do útero de Angola parindo a Revolução” (SECCO, 2003, p.38). Complementamos: como força divina e feminina, Mayombe é útero: acolhe a todos igualmente e protege os africanos. Gesta em si a revolução. A revolução, no entanto, é a própria ideia de existência de Angola. Portanto, Angola é que é – no fim das contas – a filha que Mayombe gera.

 

Referências

ABRANCHES, Henrique. Da mitologia tradicional ao universalismo literário: eu sou um narrador à maneira tradicional. Disponível em: https://www.ueangola.com/ entrevistas/item/379-da-mitologia-tradicional-ao-universalismo-liter%C3%A1rio-eu-sou-um-narrador-%C3%A0-maneira-tradicional. Acesso em 28/06/2019

ARAÚJO, Tamires Maiara Santos; SILVA, Telma Borges da. O realismo animista e a construção das personagens Maria das Dores e Ponciá Vicêncio. Congresso Internacional da ABRALIC 2018: Circulação, tramas & sentidos na Literatura. Uberlândia, 2018.

BORGES, Jorge Luis. El arte narrativo y la magia. Sur: revista trimestral. Año II, verano 1932. p. 172-179. Disponível em: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2015.

GARUBA, Harry. Explorations in animist materialism: notes on reading/writing African literature, culture and society. In: Public Culture 15, n. 2, 2003, p. 261-285.

MATA, Inocência. Estudos pós-coloniais: desconstruindo genealogias eurocêntricas. Civitas. Porto Alegre. v.14. n.1. p.27-42. jan-abr, 2014.

PARADISO, Sílvio Ruiz. Religiosidade na literatura africana: a estética do realismo animista. Estação Literária. Londrina. v 13.  p. 268-281.  jan, 2015.

PEPETELA. Lueji: o nascimento de um império. Lisboa: Dom Quixote, 1997.

______. Mayombe. Lisboa: Dom Quixote, 2009.

RÜCKERT, Gustavo Henrique. As guerras coloniais entre chuvas de gafanhotos e caminhos no deserto. In.: ______. Entre pós-colonialismos: a escritura da história colonial em romances portugueses e angolanos. Curitiba: Brazil Publishing, 2019. p. 85-156.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Epistemologia do Sul. In.: ______. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010. p. 49-178.

SARAIVA, Suely da Silva. O realismo animista e o espaço não nostálgico em narrativas africanas de língua portuguesa. Encontro Regional da ABRALIC 2007: Literaturas, Artes, Saberes. São Paulo, 2007.

SECCO, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro. A magia das letras africanas. Rio de Janeiro: ABE Graph Editora/Barroso Produções Editoriais, 2003.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.

TUTIKIAN, Jane. Velhas identidades novas: o pós-colonialismo e a emergência das nações de língua portuguesa. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2006.

WITTMANN, Tábita. O realismo animista presente nos contos africanos (Angola, Moçambique e Cabo Verde). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2012.

Notas

[1] In: Mulemba. v.12, n.23. Rio de Janeiro. 2020. Também disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/33732

* Gustavo Henrique Rückert é Professor Adjunto de Literaturas em Língua Portuguesa na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), onde atua nos cursos de Graduação em Letras e Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas. É vice-presidente (2019-2022) da Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos (AFROLIC). É vice-coordenador do Grupo de Estudos em Literatura, Arte e Cultura (UFVJM/CNPq).  Seu principal interesse de pesquisa envolve as relações entre literaturas contemporâneas de língua portuguesa e pós-colonialismo.

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