João Véncio: os seus amores, de Luandino Vieira:

a leitura como a solução de um enigma

 Consuelo Dores Silva*

Resumo:

O presente estudo tem como objetivo a análise de João Vêncio: os seus amores, de Luandino Vieira, com o intuito de evidenciar a originalidade de sua escrita e o papel desempenhado por esse autor dentro do panorama literário de Angola.

O texto é um relato, narrado em primeira pessoa, de um preso que se encontra numa quionga, uma cadeia angolana. O protagonista aciona a sua memória e expõe a um interlocutor as frustrações, as fragilidades e as contradições que, segundo a sua opinião, o definem. Portanto, o condenado realiza uma (re)leitura de sua vida e se defende das acusações de um crime, não consumado, através do emprego de uma linguagem intercalada por expressões orais, em quimbundo, uma das línguas nativas angolanas.

Palavras-chave: Literatura africana. Narrador. Enunciação. Luandino Vieira.

 

Introdução

Desde o final do século XX, o interesse de estudantes e pesquisadores(as) brasileiros(as) pelas literaturas africanas de expressão portuguesa tornou-se crescente e, nelas, se encontram as obras de José Luandino Vieira, que se tornaram amplamente conhecidas na atualidade. O escritor, português de nascimento, se mudou com os pais para Angola aos três anos, e lá viveu no musseque Braga. Portanto, a sua escrita é o resultado de um compromisso social que o levou a assumir uma identidade angolana e a participação na luta pela independência do país, ao ingressar no MPLA, o Movimento Popular para a Libertação de Angola.

Em João Véncio: os seus amores, Luandino Vieira marca o lugar da enunciação do protagonista: uma Luanda multicultural, em que os musseques são habitados por negros angolanos, naturais da região do Golungo alto, brancos de baixa condição social e imigrantes de São Tomé e Cabo Verde. Todos se concentram em construções precárias na periferia da capital. O autor define “João Vêncio: os seus amores” como “uma tentativa de ambaquismo literário, a partir do calão, gíria e termos chulos” (VIEIRA, 1987).

Na contação de suas histórias, a personagem protagonista representa a sua vida, metaforicamente, através de uma estrela de três pontas. Um leitor atento perceberá que os amores de João Vêncio ali ocupam lugares definidos, de acordo com a importância que lhes é atribuída pelo narrador.

 

As experiências da personagem protagonista

A obra em estudo se inicia por um travessão:

 – Este muadié1 tem cada pergunta! Por quê eu ando na quionga?... Meus amores, meus azares, miondona[2] (...) E vosoutro? (...) Simpatizo-me com o muadié, sua questão não me ofende. (VIEIRA, 1979, p. 13).

O leitor pressupõe que João Vêncio responde à pergunta de um interlocutor a quem ele se dirige, chamando-o pela palavra nativa muadié, patrão, e pelo pronome vosoutro. A personagem protagonista é um homem colonizado e, por essa razão, assume uma posição subalterna no início da interação. O narrador confessa que é um homem do sertão, da região angolana de Ambaca, que entendeu que o “Outro” é também um prisioneiro. Portanto, a constatação dessa semelhança provoca no narrador uma certa simpatia em relação ao desconhecido, e, consequentemente, deixa transparecer que o motivo do encarceramento do estranho não o incomoda. João Vêncio supõe que o seu interlocutor, provavelmente, seja um intelectual, originário de Luanda, e que foi aprisionado por seu envolvimento com problemas políticos. Devido à facilidade que o desconhecido demonstra em sua comunicação, o narrador conclui que ele poderá lhe ser útil naquela quionga. Por isso, lhe confessa o seu desejo: “eu queria pôr para o senhor as minhas alíneas. Necessito sua água, minha sede é a ignorância”(VIEIRA,1987, p. 13). Portanto, João Vêncio pretende que o seu ouvinte registre as suas “alíneas”, ou seja, que escreva a sua biografia. Sendo assim,

os outros não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação verbal. Logo de início, o locutor espera deles uma resposta, uma compreensão responsiva ativa. Todo enunciado se elabora como que para um encontro dessa resposta. (BAKHTIN, 1997, p. 320).

Uma imagem metafórica surge no texto: João Vêncio solicita a ajuda do desconhecido para a confecção de um colar de missangas, isto é, do registro de suas memórias, e lhe propõe:

dou o fio, o camarada companheiro dá a missanga – adiantamos fazer nosso colar de cores amigadas. Eu acho beleza é em libelo, as alíneas em fila, com número e letra, nada de confusões macas, falar de gentio à toa. (VIEIRA, 1987, p. 13).

O protagonista chama o estranho de “companheiro”, distanciando-se da palavra “muadié”, utilizada no início da narrativa. O uso desse adjetivo indica ao leitor que João Vêncio se tornou mais próximo do “Outro”, quando descobre a sua condição de prisioneiro. Logo, a tessitura do colar constitui um ato simbólico, em que fica evidente o desejo de João Vêncio de construir um pacto com o seu ouvinte: “dou o fio, o camarada companheiro dá a missanga” (VIEIRA, 1987, p. 13). Sendo assim, o protagonista contará os fatos de sua vida ao interlocutor e ele os ordenará. Por outro lado, o narrador alega que, se as suas experiências fossem narradas em outra língua, não haveria confusões, “macas”. Portanto, desqualifica o quimbundo de sua região de origem quando o representa como um “falar de gentio à toa” (VIEIRA, 1987, p.13), enxergando-o, desta maneira, de acordo com o ponto de vista colonial. Segundo essa perspectiva, os africanos, em vários países do Ocidente, são vistos como portadores de culturas primitivas e de línguas ágrafas e, por essas razões, diferenciam-se, negativamente, de seus antigos colonizadores.

Em outra passagem do texto, o narrador confirma as representações sociais que construiu de si mesmo e de sua língua nativa:

Desculp’inda! Ia arrebentando o fio a – missanga espalhava, prejuizão. Que eu não dou mais encontro com um muadié (grifo nosso) como o senhoro para orquestrar as cores. Comigo era a mistura escrava; no senhoro é a beleza forra” (VIEIRA, 1987, p. 81).

Assim, pede desculpas ao interlocutor por interromper a narração. Por outro lado, João Vêncio reconhece a importância do desconhecido no relato de sua biografia: “eu não dou mais encontro com um muadié (grifo nosso) como o senhoro para orquestrar as cores”. Também é consciente de que, se o seu texto deixar transparecer a sua voz africana, será rejeitado, devido ao preconceito racial: “comigo era a mistura escrava” (VIEIRA, 1987, p. 81). Do ponto de vista da personagem narradora, a sua biografia só será legitimada através da alforria, ou seja, se ela for escrita dentro das normas da língua do colonizador: “no senhoro é a beleza forra” (VIEIRA, 1987, p. 81). Portanto, somente sob essa condição, a escrita de sua história poderá adquirir o mesmo status linguístico de um texto ocidental. De acordo com Benveniste (2005, p. 286),

É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ego.
A subjetividade (grifo do autor) de que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se propor como sujeito (...) A consciência de si mesmo só é possível se experimentada por contraste. Eu não emprego eu (grifo do autor) a não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha alocução um tu (grifo do autor) na alocução daquele que por sua vez se designa por eu (grifo do autor). (...)

Como vimos, João Vêncio se expressa em quimbundo. O emprego de uma língua nativa na construção do texto pode ser interpretado como uma estratégia de resistência de Luandino Vieira, que vivia em Luanda, uma cidade ainda com resquícios do poder colonial. Sendo assim, o autor possibilita que uma personagem de baixa condição social se transforme em protagonista de suas histórias. Por outro lado, ao relatar a sua vida, João Vêncio também pode ser identificado com os griôs[3] e, pela função que desempenha no texto, ao contar histórias, ele se aproxima dos narradores anônimos de Walter Benjamim.

Benjamin (2011) considera que certos atributos são necessários para que alguém se torne um narrador nato, tais como domínio da arte da narração e capacidade de propor conselhos práticos a seus ouvintes. Por essas razões, nas zonas rurais, os camponeses aprenderiam como cuidar da terra. O autor propõe que, na leitura de romances, deve-se observar a posição do narrador e pondera que a experiência dos grandes narradores “é a imagem de uma experiência coletiva, para qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem um impedimento”. (BENJAMIN, 2011, p. 215).

Para Walter Benjamin, o ato de narrar constitui “uma arte ameaçada de extinção”, e, segundo o teórico, poucas pessoas sabem contar uma história, porque a narração constitui um relato de experiências: “as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo” (BENJAMIN, 2011, p.198). Entendemos que o escritor se referia ao contexto alemão e, portanto, desconhecia as culturas dos países africanos em que a contação de histórias é um costume ancestral. Para o autor, entre as narrativas escritas, as melhores são aquelas que mais se assemelham às histórias orais contadas por narradores anônimos, porque elas se baseiam nas experiências das pessoas.  Por outro lado, divide também os narradores anônimos em dois grupos: o primeiro seria constituído pelos viajantes e o segundo pelos camponeses sedentários. Benjamin estabelece o lugar do narrador entre os mestres e os sábios e considera que os verdadeiros narradores possuem, como uma de suas características, o senso prático, e que essa informação desnuda a natureza da verdadeira narrativa: a sua dimensão utilitária.

Retornamos ao texto de Luandino Vieira. A prisão de João Vêncio se originou de uma tentativa frustrada do assassinato de uma mulher, a Bailunda. Portanto, esse fato constitui um dos motivos da escrita de sua biografia. Nesse contexto, o narrador se defende da acusação da autoria do crime e recorre a representações construídas de si próprio, que são contraditórias das imagens negativas, elaboradas pelas autoridades que o estão julgando. Por essa razão, vangloria-se de suas características pessoais: “Nasci pessoa de educação, não sou ciumoso, aprendi que o amor cansa, a amizade descansa” (VIEIRA, 1987, p. 15). O narrador se representa como um homem educado e não se vê capaz de um comportamento agressivo. Por outro lado, obsessivamente, se refere a si mesmo através do sujeito oculto: “[eu] nasci pessoa de educação, [eu] não sou ciumoso, [eu] aprendi...”, e revela, desta maneira, a sua necessidade de afirmação, confirmando o ponto de vista de Benveniste (2005, p. 288) de que

a linguagem está de tal forma organizada que permite a cada interlocutor apropriar-se da língua toda designando-se como eu. Os pronomes pessoais são o primeiro ponto de apoio para essa revelação da subjetividade na linguagem.

João Vêncio possui um caráter instável e fugidio, evidenciado durante a narração. Ao contar a sua história, diz ao ouvinte que se envolveu em várias aventuras amorosas, e elas se encontram anunciadas no título da obra. Como já dissemos, uma estrela de três pontas representa a sua vida, que gira em torno de um eixo, o centro, o local onde se encontra Florinha, descrita, como “a meretriz mais rameira do meu musseque” (VIEIRA, 1987, p. 49).  Sendo assim, o narrador propõe a seu ouvinte e aos leitores um jogo: a solução do enigma, que consiste na descoberta dos lugares que, de fato, os seus amores ocupam na estrela. Sendo assim,

os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo. O próprio texto é o resultado de um ato intencional pelo qual um autor se refere e intervém em um mundo existente, mas, conquanto o ato seja intencional, visa a algo que ainda não é acessível à consciência. Assim o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a interpretá-lo. (ISER, 2002, p. 107).

No desvendamento do enigma, a personagem narradora fornece pistas sobre suas aventuras: o seu primeiro amor foi uma órfã, trazida de um asilo por um de seus vizinhos, “o mais cangundo[4] de todos – o doutoro” (VIEIRA, 1987, p. 24), proprietário de uma varanda colonial, destoante das outras construções do musseque. A beleza da jovem desperta o desejo do menino de oito anos. Em sua imaginação infantil, João Vêncio acreditava que os gritos emitidos por Tila durante as relações sexuais com o branco eram sinais da violência praticada por ele contra a órfã. Por isso, o narrador sonhava com a libertação da jovem e arquitetava planos para matar o rival, enquanto “brincava de pé-coxinho e pedrinhas cabebele-tanji” (VIEIRA, 1987, p. 21). Por outro lado, a sua personalidade foi marcada por outro acontecimento traumático: apanhou de Tila, quando decidiu lhe contar os seus planos para assassinar o “doutoro”:

Eu sangrei de nariz e ouvidos e boca (...), Mulher-cadela, eu gostava dela. Ela é a ponta da estrela, a toda ela. (grifo do autor) E quando me pôs na rua da varanda colonial – ela (...) saquelou o meu destino: << Pequeno assassino...>> (VIEIRA, 1987, p. 35).

A personagem narradora conta a seu interlocutor que a jovem saquelou, ou seja, adivinhou o seu destino e, desta maneira, interligou os acontecimentos de sua infância aos fatos que definiriam a sua condenação no futuro. Em outra cena, o condenado revela que sofreu um trauma em decorrência de sua primeira decepção amorosa.

O pé ante pé, fui de capianguista. Sala: o susto grito, quase – era ainda o relógio-da-parede, cuco. Quatro trompetas. (...) Empurrei a porta. Fechada, e as pancadas, porradas de tábuas, cresciam nos meus ouvidos. Lembrei: espreitei buraco da fechadura (...). Ele era o primeiro macacão-rangotango que estragou os meus amores. Espreitei, vi (...) nos transes, o javardo deitado na sombra das minhas palmeiras frodisíacas, turíbulo de meus perfumes. E ela me tinha sorrido, convite, e gozava. Me tinha feito atravessar o deserto e corneava. (VIEIRA, 1987, p. 68-69).

Entendemos que o fragmento descrito se assemelha a uma cena teatral: João Vêncio se imaginou traído por Tila, “uma das pontas da estrela”. A traição lhe foi anunciada, simbolicamente, pelo cuco, o relógio de parede. Nesta passagem do texto, as sentenças “fui de capianguista” (...), “empurrei a porta (...)”, e “espreitei buraco da fechadura (...)” preparam o leitor para o desfecho final da cena: a descoberta do narrador de que Tila e o “doutoro” eram amantes. Por essa razão, o menino, aos 8 anos, sentiu-se enganado, porque a jovem que o “tinha feito atravessar o deserto e [o] corneava” (VIEIRA, 1987, p. 69).

O desejo que corrói o protagonista nos remete às reflexões sobre as paixões edípicas. Na abordagem psicanalítica freudiana, o menino, no período compreendido entre os três e os cinco anos de sua vida, apaixona-se pela figura materna, desejando-a fisicamente. Sendo assim, sonha com a eliminação do pai, que o impede de concretizar a relação incestuosa. Nesse contexto, o pênis é transformado num objeto fálico, adquirindo um valor narcísico em que “ele é o eixo, o centro da atividade sexual da criança, o fulcro de seu orgulho narcísico e de sua afirmação de onipotência e completude” (PELLEGRINO, 1987, p.311). No caso do narrador, ele transfere para a jovem órfã o amor incestuoso sentido por sua mãe desconhecida.

Os ingredientes das paixões edípicas são “ciúme, inveja, ódio parricida, culpa, tremor e temor” (PELLEGRINO, 1987, p. 311). Portanto, a desilusão amorosa de João Vêncio o aproxima de Mimi, um garoto sensível, filho único, apelidado pelas outras crianças, de “lilas, abàcafócanário, mariquinhas” (VIEIRA, 1987, p. 36-37). Como suspeitavam de sua homossexualidade, os colegas rasparam o seu cabelo, em seu primeiro dia de aula. O narrador se vale de uma metáfora para relacioná-lo a uma figura bíblica: Mimi “era o cordeiro e nós judeus”. Devido à sua aparente fragilidade, João Vêncio decidiu protegê-lo contra as agressões dos outros meninos. Mimi era uma das pontas da estrela. Mais tarde, foi assassinado pela professora “carrascuda”, que o avistou aos beijos com João Vêncio.

A personagem narradora dirige o seu olhar para Màristrêla, que, segundo as suas considerações, na infância, era a sua “namorada de verdade”. Por isso, lhe conferiu um lugar em sua vida como “a segunda ponta da estrela-de-três, que é também a primeira” (VIEIRA, 1987, p. 32). Entretanto, já adulto, a representa através de termos negativos. De acordo com a sua percepção, Màristrêla era uma adolescente “feiosa” até os doze anos. João Vêncio apelidava-a de “ranhosa”, “ramelosa”, “cara de puco” e “rata pelada de panela de feijão”. A jovem migrou de sua terra natal, em Cabo Verde, para Luanda, com os pais e irmãos, para fugir da fome. Aos doze anos, Màristrêla prostituiu-se com o branco Katonho. A partir desse acontecimento, a família passou a se alimentar, e o corpo da personagem se transformou. Por isso, “a sua cara [se] encheu de carnes redondas” (VIEIRA, 1987, p. 51). Para o narrador, o seu relacionamento com Màristrêla era puro: “a gente se deitava, dormia de marido e mulher, rainha de Caxemira e grão-vizinho, mas nunca me levantei vestidinhos farrapos dela. Consigo – ela era só pureza” (VIEIRA, 1987, p. 52).

Màristrêla perde o seu lugar na estrela, quando João Vêncio descobriu o seu segredo: era uma prostituta. Sendo assim, saiu de sua ponta da estrela para que uma outra mulher pudesse ocupá-la: a Bailunda.

Florinha, a quarta aventura amorosa da personagem narradora, é descrita como uma preta fula, “meio xalada” (maluca), uma prostituta que mantinha relações sexuais com os meninos do musseque, amigos de seu filho Ninito. Em todos os meses, no dia dez, data da morte do jovem, ela os iniciava nos jogos do amor. Entretanto, João Vêncio não participava desse ritual, porque “era miúdo feijão” (VIEIRA, 1987, p. 78-79). Apesar de sua vida conturbada, o protagonista a vê com bons olhos, e a relaciona à sua mãe desconhecida. Por essa razão, lhe confere um lugar de destaque em sua vida: o centro da estrela.

O narrador assim descreve a quinta e última personagem: “aí vem minha baronesa, sulinha. O riso dela, a vida. Bijú supimpa, minha prata fina...” (VIEIRA, 1987, p.89), e conta com a sua presença nos dias reservados às visitas aos presos da quionga.

Conclusão

Homem colonizado, João Vêncio se expressa com dificuldades em língua portuguesa. Consequentemente, representa os seus amores, através da metáfora de uma estrela. À medida que tenta desvendar o enigma, o leitor se indaga: por que Tila não ocupa o centro da estrela? A órfã foi a primeira decepção amorosa de João Vêncio. Sendo assim, perdeu a posição de destaque em sua vida. Por outro lado, o narrador condena o comércio do sexo pago. Portanto, se o leitor partir da ideia de que Florinha e Màristrêla se prostituíram, terá como uma das opções considerar que as duas personagens representam uma condição feminina marginal no imaginário de João Vêncio. Sendo assim, não ocupariam o centro da estrela. João Vêncio não julgou Florinha por seu comportamento e a colocou no centro. Entretanto, Màristrêla sai de uma das pontas da estrela para que uma outra mulher possa ocupá-la: aquela que é a última aventura de Joâo Vêncio, já adulto, a “Bailunda”.

Entendemos que Màristrêla camuflou a informação sobre si, porque portava um traço diferencial estigmatizante. Sendo assim, para não ser discriminada pela sociedade, omitiu do “Outro” informações sobre a sua verdadeira identidade. Provavelmente, a imigrante de Cabo Verde era consciente de que possuía um estigma que a particularizava e as consequências de possuí-lo. Por isso, tentou ocultá-lo na interação com João Vêncio.

Entendemos que as personagens mencionadas são importantes representações que o narrador constrói do sexo feminino e de um outro segmento social também marginalizado na sociedade angolana: o dos homossexuais, presentes no texto, através da personagem Mimi, a terceira ponta da estrela.

Tila, Màristrêla e Mimi foram os amores de infância de João Vêncio. O amor por Florinha, a prostituta, possuía componentes edípicos.

João Vêncio, ao relatar a sua história a um desconhecido, está à procura de sua própria identidade. Em sua busca, propõe a solução de um enigma ao leitor, engana a justiça e recria a língua portuguesa, ao inserir palavras de origem quimbundo em sua narração. Possuidor de uma identidade deteriorada (GOFFMAN, 1982), o protagonista se conscientiza de que possui o direito à fala e deseja ser ouvido pelo branco. Sendo assim, quando registra as suas memórias, comparando-as à tessitura de um colar, se torna representante dos excluídos, dos silenciados, que surgem na narrativa.

Para finalizarmos a análise de João Vêncio: os seus amores, relembramos as considerações de Mia Couto sobre a imagem metafórica de um colar de missangas: “a missanga, todos a vêem. Ninguém nota o fio que, em um colar vistoso, vai compondo as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo” (COUTO, 2016, p.7). Portanto, a escrita e a tessitura desse adereço se interligam, e o resultado é uma nova representação que o narrador elabora de si mesmo.

Referências

BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Paulo Bezerra (trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 300-320.

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Sérgio Paulo Rounet (trad.). São Paulo: Brasiliense, 2011, p. 197-221.

BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral. Maria da Glória Novak e Maria Lusa Neci (trad.). Campinas, S. P.: Pontes, 2005, p. 284-293.

COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

CURY, Maria Zilda; FONSECA, Maria Nazareth Soares. Mia Couto: espaços ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

GOFFMAN, Erwing. Estigma; notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Márcia Bandeira de Melo Leite Nunes (trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

ISER, Wolfgang. O jogo no texto. In: JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Luiz Costa Lima (coord. e trad.). São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 105-118.

JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: Colocações Gerais. In: JAUSS et al. A literatura e o leitor: textos da estética da recepção. Luiz Costa Lima (coord. e trad.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Coleção Literatura e teoria literária; v. 36, p. 43-62.

PELLEGRINO, Hélio. Édipo e a paixão. In: CARDOSO, Sérgio et al. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

VIEIRA, José Luandino. João Vêncio: os seus amores. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1987.

Notas

[1] O termo, da língua quimbundo, significa “senhor, amo, patrão”. (VIEIRA, 1987, p. 101).

[2] Do quimbundo muodona/miondona, que significa “felicidade”, “sorte” (VIEIRA, 1987, p. 100).

[3] Fonseca e Cury (2008, p. 17) “os consideram os contadores de estórias africanas em geral”.

[4] Do quimbundo ngundu que significa branco de baixa condição (VIEIRA, 1987, p. 24).

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* Consuelo Dores Silva é Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa, pela Pontifíciapela PUC Minas. Autora dos livros “Negro, qual é o seu nome?” e “O elefantinho da tromba caída”, lançados pela Mazza Edições. Professora aposentada pela Fundação de Ensino de Contagem, instituição onde lecionou Língua Portuguesa e suas Literaturas no Ensino Médio. Foi supervisora pedagógica no Estado. É pedagoga na rede municipal de Contagem, Minas Gerais.

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