Trauma e história na escrita literária de Luandino Vieira1

Terezinha Taborda Moreira*

RESUMO

O artigo analisa a relação entre história e trauma na escrita literária de Luandino Vieira, focalizando contos da coletânea A cidade e a infância (1997). Destaca como a escrita luandina lê a história em diferença, tensionando a forma literária para confrontar o ato de narrar com a problematização do sujeito em um contexto marcado pela opressão. Recorre ao conceito de trauma para evidenciar como essa escrita pensa a realidade e a história angolanas a partir da perplexidade, da realidade como catástrofe, da história como ruína. Explora como sua elaboração acontece pela indissociabilidade entre os campos estético, ético e político.

PALAVRAS-CHAVE: Trauma. História. Escrita literária. Luandino Vieira.;

ABSTRACT

This article analyzes the relation between History and trauma in the writings of Luandino Vieira, mainly in the short stories contained in the book A cidade e a infância (1997).  We notice that Luandino’s fictional exercise understands History in a different perspective, using narrative strategies to tension the literary form, to confront the act of narrating with the issue concerning the subject in a context marked by oppression.  The concept of trauma is used to reveal how these writings understand the Angolan History and reality in a perplexed fashion, seeing reality as catastrophe and History as ruin.  We can also notice how this fictional exercise conjugates aesthetical, ethical and political aspects.

Key words: Trauma. History. Literary writing. Luandino Vieira.

 

São muitas as relações que as literaturas africanas de língua portuguesa estabelecem com a história, seja ela recente ou não. Isso decorre do fato de que o desenvolvimento da literatura em Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe acontece concomitantemente às lutas pela independência e pela construção da nacionalidade, em plena segunda metade do século XX. No que se refere à literatura angolana, Rita Chaves esclarece que

Do século XIX aos nossos dias, construir-se enquanto escritor e construir a nação têm sido faces de um mesmo projeto. Isso significa que, ao protagonizar cenas não propriamente inventadas por ele, o escritor angolano vem assumindo, entre as suas, a função de fazer e refazer a história de um território e seus povos que, despedaçados e rejuntados pela ordem colonial, têm no horizonte a unidade ainda interditada pelas circunstâncias do presente. Noutras palavras, num universo estabilizado sob o signo permanente da crise, escrever, sabemos todos nós, tem significado, de várias e diversas formas, escrever Angola. (CHAVES, 2003, p. 373).  

Pelas palavras de Rita Chaves vemos que rememorar e recontar a história é, para o escritor angolano – como também para os escritores dos demais países africanos de língua portuguesa –, um exercício de reafirmação contínua de si próprio. Por isso, são várias as narrativas da literatura angolana que dialogam com a história, recontando-a pela voz dos escritores e se assumindo, por vezes, como um testemunho. Constituindo-se a partir do diálogo com história, a escrita literária angolana se mostra intimamente ligada à memória, realizando uma aproximação entre ficção e história que encontra entendimento na seguinte explicação de Izabel Andrade Marson:

A ficção é um recurso privilegiado para a (re)produção da memória de uma comunidade, particularmente quando aborda episódios e figuras históricas importantes para a construção da trajetória dessa comunidade. Este privilegiamento pode ser reconhecido nas várias modalidades de liberdade que a obra de ficção pode desfrutar. A primeira delas é a liberdade de criação que o autor de ficção tem como traço essencial de seu trabalho. A segunda, um desdobramento desta primeira, é a liberdade que o ficcionista dispõe para utilizar qualquer informação que achar pertinente para compor essa memória, condição sine qua non para o extravasamento de sua criatividade. A terceira, ainda decorrente das duas outras, nos remete à liberdade do autor em recorrer a diferentes formas de expressão para materializar o enredo ficcional veiculador dessa memória: texto, poema, canto, imagens, liberdade, que lhe permite atingir um público muito mais amplo do que outras narrativas. A quarta é a liberdade que o público consumidor dessa narrativa também desfruta na decodificação e incorporação do enredo ficcional. Pode-se, considerar que, tendo a possibilidade de ser, ao mesmo tempo, entretenimento, alimento para o imaginário e veículo de aprendizagem, a ficção é recurso que, num mesmo ato, preserva e transfigura a memória das comunidades, registrando o percurso de suas temporalidades. (MARSON, 2015).

No entanto, é preciso observar que a proposta de (re)contar a história, de rememora-la, não objetiva um movimento em direção ao centro. Ao dialogarem com a história, os escritores angolanos o fazem com uma proposta política de marcar a diferença, como explica Inocência Mata quando afirma que

o periférico não se move para o centro sob pena de, tornando-se dominante, deixar de funcionar como propulsor da diferença. É o centro que é deposto pela própria história das margens que vão inundando o universo com as suas estórias e individualidades históricas, incluindo as suas “falas de estórias” num “pseudo-todo” em que o fluxo particularizante abre as malhas da superfície e o transforma em corpo plural. (MATA, 2008, p. 85 – destaques da autora).

Problematizar a história de seu país por meio da proposição de sujeitos ficcionais que metonimizam os excluídos da história oficial parece ser, para os escritores angolanos, uma maneira de representar as divergências ideológicas, as contradições e as injustiças presentes na realidade angolana, marcada por conflitos desde a época colonial até os anos da pós-independência e posteriormente a eles. Por isso, acredito que possamos pensar a literatura angolana a partir da mesma relação entre literatura, história e trauma que Jaime Ginzburg (2000) propõe para a literatura brasileira. Ginzburg destaca, na produção de autores brasileiros como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Dyonélio Machado, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, dentre outros, um modo de representar a condição humana que acentua seu caráter problemático e agônico. Para o estudioso, tal representação resulta do fato de que, “no contexto histórico brasileiro, a constituição da subjetividade é atingida pela opressão sistemática da estrutura social, de formação autoritária”. (GINZBURG, 2000, p. 43).  O impacto dessa opressão abala a noção de sujeito e, também, a concepção de representação, que se fragmenta, “exigindo do leitor a perplexidade diante das dificuldades de constituição de sentido, tanto no campo da forma estética, como no campo da experiência social”. (GINZBURG, 2000, p. 43). Como explica Ginzburg, a dificuldade para constituir sentido na experiência social decorre da maneira como os escritores brasileiros destacados optam por lidar com a representação da História: as representações da História, nesses escritores, “resistem à acomodação em lógicas lineares causais, ou a esquemas positivistas, incorporando contradições e indeterminações e aproximando-se do que Benjamin propunha como representação da História como sucessão de catástrofes, como ruína”. (GINZBURG, 2000, p. 43). Ao fazê-lo, esses escritores “estiveram atentos ao quanto há de violência, injustiça e agonia na sociedade brasileira, e trouxeram a problematização do externo para o interno, atingindo assim a forma de suas criações”. (GINZBURG, 2000, p. 43).  

Compactuando com as reflexões de Ginzburg, e guardando as devidas diferenças entre as literaturas brasileira e angolana, acredito ser possível dizer que a literatura produzida em Angola encena a condição humana de sujeitos cuja subjetividade é atingida pela opressão sistemática de uma estrutura social marcada pelo lastro do processo colonial na cultura e na vida em geral. Essa opressão tem impactos sobre a subjetividade desses sujeitos e, também, sobre a concepção de representação que orienta essa escrita literária. Distanciando-se dos modelos canônicos da representação literária, a literatura angolana propõe, muitas vezes, situações em que o sujeito não se reconhece como unidade subjetiva da experiência. Tratando, antes, de experiências de dessubjetivação do que de subjetividade, a escrita literária angolana se realiza, por vezes, a partir da fragmentação e, ao fazê-lo, também evidencia os limites com que se depara o escritor para constituir sentido. A representação da história, em várias obras da literatura angolana, assume a fragmentação como recurso de construção e aproxima-se, também, da proposta benjaminiana da História como sucessão de catástrofes, como ruína. Os escritores angolanos – como de resto os escritores das demais literaturas africanas de língua portuguesa – trazem para sua escrita a violência, a injustiça e a agonia que conformam sua experiência social, problematizando-a. Ao fazê-lo, tensionam a forma de sua escrita literária, confrontando o ato de narrar com a problematização do sujeito em um contexto também marcado pela opressão da História. 

Desde o final do século XX observamos um movimento de mudança na forma de narrar. Esse movimento é perceptível na produção de vários autores contemporâneos, cuja escrita se afasta dos modelos tradicionais para enveredar por uma representação do presente e do passado caracterizada pelo abalo da forma estética e por uma linguagem complexa e fragmentada. A escrita literária angolana não se furta a essa tendência. Nela encontramos textos que utilizam recursos estéticos diversos que visam a reconstituir a História de seu tempo, como a fragmentação da linguagem e a multiplicidade de vozes que ecoam no texto como registro ficcional de um contexto histórico de violência. Esses recursos distanciam-na dos padrões realistas de composição narrativa.

João Alexandre Barbosa já chamara nossa atenção para o quanto a arte produzida a partir dessa perspectiva procura rever o modo de representação da realidade e desarticular a construção do texto vista como “resultado das relações entre indivíduo e história”. (BARBOSA, 1983, p. 22). Para o crítico, os descompassos entre a realidade e sua representação exigem reformulações e rupturas dos modelos, pondo em xeque não “a realidade como matéria da literatura, mas a maneira de articulá-la no espaço da linguagem que é o espaço/tempo do texto”. (BARBOSA, 1983, p. 23). Para João Alexandre Barbosa, esses descompassos acarretam uma crise de representação em que as tensões e dissonâncias socioistóricas transparecem nos temas e no próprio tecido da composição.

A crise de representação relaciona-se à oposição que as narrativas contemporâneas estabelecem em relação àquilo que Theodor Adorno trata como a “ingenuidade épica” (ADORNO, 2003) predominante nas narrativas do século XIX. Em oposição à ingenuidade épica da concepção tradicional de narrativa, Adorno propõe que a arte seja compreendida em sua concretização histórica. Em função disso, para ele a arte, como a própria existência, não é passível de receber uma síntese positiva. Aludindo à relação entre as obras de arte, a “violência e a dominação da realidade empírica” (ADORNO, 1988, p. 160), o filósofo reflete sobre o conceito de forma e sua interdependência com o conceito de conteúdo, com o objetivo de propor a convergência entre forma e crítica. Segundo Adorno,

Na sua relação com o seu outro, cuja estranheza atenua, e no entanto, mantém, ela [a forma] é o elemento anti-bárbaro da arte; através da forma, a arte participa na civilização, que ela critica mediante a sua existência. (...) Forma e crítica convergem. (ADORNO, 1988, p. 165).

Depreende-se, da perspectiva adorniana, que a forma se reveste de uma ambiguidade constitutiva, a qual impõe à obra de arte uma condição antagônica de criticar a civilização e, necessariamente, fazer parte dela. É novamente Jaime Ginzburg que, comparando a ideia hegeliana de totalidade com a concepção adorniana de fragmentação da forma, chama nossa atenção para o fato de, na convergência indicada por Adorno, residir “a impossibilidade – tanto no caso da forma artística, como no caso do trabalho crítico –, de estar fora da história, fora da sociedade, fora das contradições dos processos concretos da existência coletiva”. (GINZBURG, 2010, p. 184). Para Ginzburg, a obra apontaria para o que há de terrível em um contexto, ciente de que constituiria sua existência estética dentro desse mesmo contexto. Explica-nos o estudioso que “a forma precisa manejar as condições de visibilidade da experiência, de modo que ela possa ser compreendida, mas não a ponto de que ela perca seu impacto”. (GINZBURG, 2010, p. 184). O “elemento antibárbaro” da forma corresponderia, portanto, à sua capacidade crítica em relação à civilização.

A capacidade crítica da forma se concretiza por meio da visão que Adorno oferece para a mediação, também discutida por Ginzburg. Segundo o filósofo:

A forma é mediação enquanto relação das partes entre si e com o todo e enquanto plena elaboração dos pormenores. (...) A forma procura fazer falar o pormenor através do todo. Tal é, porém, a melancolia da forma (...) Isto confirma o trabalho artístico do formar que incessantemente seleciona, amputa e renuncia: nenhuma forma sem recusa. (ADORNO, 1988, p. 166).

Na visão adorniana da mediação, a unidade interna da obra de arte é elaborada de um modo tenso, revelador de uma concepção fragmentária, já que o movimento de constituição de significado mostra-se, também, um movimento de exclusão de parte de uma possibilidade de significado, uma recusa e, portanto, uma perda que, por sua vez, define a condição melancólica da obra de arte. Constituída de modo aberto e fragmentário, a narrativa contemporânea se distingue da obra configurada como totalidade fechada, liberando os parâmetros estéticos das convenções da tradição:

A arte de elevada pretensão tende a ultrapassar a forma como totalidade, e desemboca no fragmentário. (...) Uma vez desembaraçada da convenção, nenhuma obra de arte pode já manifestamente concluir de modo convincente, enquanto que os desenlaces tradicionais apenas procedem como se os momentos singulares se associassem com o ponto final para constituir a totalidade da forma. Em numerosas obras da modernidade que, entretanto, foram objeto de ampla recepção, a forma manteve-se habilmente aberta, porque queriam provar que a unidade da forma já não lhes era garantida. A má infinitude, o não-poder-concluir, torna-se princípio livremente escolhido de procedimento e expressão. (...) A unidade das obras de arte não pode ser o que ela deve ser, a unidade da variedade: ao sintetizar, ela viola o sintetizado e prejudica nela a síntese. (ADORNO, 1988, p. 169).

A melancolia da forma resulta, pois, do senso de inconclusão da obra de arte, de sua “má infinitude”, de seu “não-poder-concluir”, da impossibilidade de síntese que a fragmentação oferece e, consequentemente, do fato de os elementos da obra poderem se relacionar de múltiplas maneiras entre si e com o todo, transformando a atribuição de sentido para a experiência em sensação de estranhamento e de perplexidade diante da precariedade e da incerteza dessa experiência.  

Essa ideia da arte como incompletude, da forma como crítica por meio da estranheza e da fragmentação nos diz de uma ligação indissociável entre a percepção do contexto e a concepção estética. Ainda seguindo as reflexões de Jaime Ginzburg, na base do pensamento de Adorno está o impacto da violência histórica que marca o século XX. O estudioso explica que, para Adorno, a presença, em uma obra, de cenas de violência, não poderia ser lida fora de um contexto histórico. Por isso, a perspectiva adorniana da arte aponta para a convergência entre forma e crítica: “ao mesmo tempo em que não cabe representá-la [a violência] de modo superficial e direto, para não trivializá-la nem reduzi-la, é necessário reinventar a linguagem para elaborar condições de lidar com o que foi vivido.” (GINZBURG, 2010, p. 192). Para Adorno, portanto, conforme Ginzburg salienta, a renovação de parâmetros na arte é necessária para que as catástrofes que marcaram o século XX não se tornem continuidade nem regra. Em seu pensamento encontramos a impossibilidade de dissociar, no debate conceitual, os campos estético, ético e político.

Acreditamos que a escrita literária angolana se constrói justamente a partir dessa indissociabilidade entre os campos estético, ético e político. Isso porque ela se articula em um contexto social opressor e difícil, constitutivo da formação social na qual os escritores estão inseridos. De fato, o contexto social angolano resulta de uma formação histórica marcada pelo colonial, pela guerra anticolonial e pela guerra civil, os quais, por seu caráter opressor, contribuem sistematicamente para a desumanização do sujeito. Essa desumanização ganha forma em diversas narrativas ficcionais angolanas, das quais destacamos a coletânea de contos A cidade e a infância (1960/1997), de Luandino Vieira. No entanto, ela não é retratada sem questionamentos, uma vez que os personagens das narrativas ficcionais que compõem a coletânea estão envolvidos em situações que limitam as possibilidades de emancipação e liberdade individual.

Nos contos de Luandino Vieira, personagens perplexos desfilam diante de nossos olhos em narrativas que tentam flagrar uma realidade opressiva, cuja representação é de tal complexidade que exige do escritor o tensionamento dos recursos de linguagem convencionais. Em todos eles se observa uma tendência de perceber a História como um trauma que pesa sobre o sujeito e, em função disso, questionar a capacidade do escritor de representar o passado por meio dos modos convencionais de escrita. Em mais de uma ocasião, quando entrevistado, Luandino Vieira assume a vinculação de sua escrita literária à memória dos tempos coloniais, à dor que esses tempos ainda provocam e à busca pela forma para expressar a perplexidade que eles despertam:

Só há uma coisa que já é tema, que eu vou escrever seguidamente, porque já era anterior a 75. (...) Já estava para começar a ser escrito na cadeia. (...) esta realidade é muito fresca (...) Bom, são muitas coisas ao mesmo tempo. Mas tudo isso, esta perplexidade e esses novos problemas podiam ser realmente o motivo de um personagem frente a tudo isso, se houvesse o tal entusiasmo e a tal paixão. Penso que é cedo. É preciso que tudo isso me doa muito para depois escrever. (VIEIRA apud LABAN, 1980, p. 72).

Esses textos que se referem ao espaço cultural, mais do que físico e humano de Luanda, foram e continuam, quando são produzidos, a ser produzidos a partir da memória, da minha memória. (...) Então, quanto se passava com a minha família, com as relações com as famílias dentro do meu bairro, do meu musseque, que é a favela, tudo isso se gravou, não que eu estivesse determinado a gravar isso. Duma maneira muito natural tudo isso entrou para dentro de mim e é a partir desse material que eu vou elaborando e criando os textos. (...) Durante esses últimos anos, eu tenho lido muito tudo quanto existe escrito sobre a História de Angola, evidentemente na perspectiva do colonizador, porque era ele que produzia os textos. (...) eu a partir de certa altura pensei que o material que estava na minha memória podia dar um romance sobre aquela época recente da nossa História que é a luta de guerrilha. Mas a luta de guerrilha não surgiu do nada; a luta de guerrilha é uma coisa que vai interar quinhentos anos. Portanto, que era necessário ter uma visão histórica, ter uma visão do processo, ter uma visão do continuo da história e o contínuo é a resistência popular, sempre, todos os anos. Nunca deixou de haver guerra em Angola desde há quinhentos anos. (VIEIRA apud SANTOS, 2008, p. 281-282).

Esse livro andava dentro de mim há muito tempo. Eu não encontrava era forma. Sabia que aquilo era uma coisa que me doía, e quando as coisas me doem eu tenho que escrever. (VIEIRA apud COELHO, 2009).

Na busca pela forma para escrever acreditamos revelar-se o fato de a indissociabilidade entre os campos estético, ético e político resultar de uma intencionalidade do escritor de realizar um trabalho estético-literário que tensione a linguagem em sua condição de, falando com Roland Barthes, “objeto em que se inscreve o poder, desde toda a eternidade humana”. (BARTHES, 1978, p. 12).

É consenso entre os pesquisadores a ideia de que a escrita literária angolana surge, inicialmente, como uma espécie de mecanismo que se apodera da língua do colonizador e a rasura com os dialetos africanos, para construir um contra discurso que objetiva minar o discurso português vigente na Angola colonial. Acreditamos que a escrita literária luandina ultrapassa em muito essa concepção inicial para propor-se como uma dicção angolana, na qual a busca pela forma de escrever relaciona-se com a tentativa de driblar o autoritarismo e a opressão inscritos na língua, de escapar à condição legisladora que está na natureza mesma de toda linguagem, contra a qual nos alerta Barthes quando, retomando os estudos de Roman Jakobson, afirma que “um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a dizer”. (BARTHES, 1978, p. 12-13). Assim, escrever, para esse autor, implica não apenas contrapor-se, por meio de uma dicção angolana, ao poder colonial a serviço do qual a língua portuguesa se coloca, mas também ao sistema literário ao qual esse poder colonial está vinculado, comprometido com formas de representação que não acolhem as catástrofes que ele próprio gera. Nas palavras de Barthes, a quem recorremos, ainda, escrever, para o escritor Luandino Vieira, implica “trapacear com a língua, trapacear a língua”, esquivar-se para “ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem” (BARTHES, 1978, p. 16).

Desde a ocupação do território angolano pelos portugueses, marcado por inúmeras guerras locais (CADORNEGA, 1972) e pela recusa da língua e da cultura autóctones, até o fim do período colonial, o governo português desenvolveu uma política exploratória responsável pela divisão e pela dizimação de nativos. A escravidão significou um exercício sistemático de coerção pela violência e pelo racismo. Nessa sequência, o período pós-independência representou uma nova forma de dominação do estado sobre a sociedade civil, com ausência de transformações revolucionárias que beneficiassem o conjunto da sociedade e de conciliação entre etnias ou grupos de classe dominante, o que excluiu das decisões políticas e sociais a grande massa da população. Essa série de traumas marca a experiência social angolana, a qual a escrita luandina trata a partir da perspectiva da realidade como catástrofe, da história como ruína. E o faz rompendo com as estruturas convencionais de representação, suspendendo as referências de delimitação da realidade e da ficção e, ainda, refletindo melancolicamente. Adorno (1988) já nos mostrou que os antagonismos encontrados na realidade assumem, na arte, o estatuto de antagonismos formais. Estes se revelam por meio de fenômenos como a ruptura com gêneros tradicionais, o hibridismo, a problematização da linguagem, a diluição de fronteiras entre tempo e espaço, a ruptura da distância entre narrador e personagens, o questionamento da relação entre realidade e ficção, dentre outros. Todos esses fenômenos indiciam a dificuldade da forma literária para expressar a realidade violenta e traumática. Atravessada por esses fenômenos, a escrita literária luandina tensiona o limite entre realidade e imaginação, subverte parâmetros canônicos, aponta ambivalências da linguagem, desvela contradições, rejeita padrões lógicos de entendimento da consciência e da linguagem, promove a fragmentação e a descontinuidade formal, enfim, rompe com uma tradição de escrita que não inclui a realidade e a história angolanas. Ao fazê-lo, pensa essa realidade e essa história a partir da perplexidade.

A obra A cidade e a infância (1997) é composta por dez contos breves que descrevem os bairros pobres de Luanda, habitados por meninos negros, brancos e mestiços, cujas vozes atravessam as narrativas para desvelar a coexistência de dois mundos, um branco e um negro, ambos inseridos na mesma infância. A memória se faz registro da perda dessa infância vivida nos anos 40, num espaço em se intensifica a política racista e moderna do governo colonial português, fraturando Luanda em duas cidades distintas, como a elas se refere Manuel Ferreira no prefácio da segunda edição portuguesa da obra, datada de 1977:

a [cidade] das “cubatas” e “pau-a-pique e zinco” – a cidade dos musseques, a de raiz africana – e a outra, a que cresce, arrasa, avança nos “prédios de ferro e cimento”. Uma, a cidade dos africanos; outra, a cidade dos europeus. (VIEIRA, 1997, p. 26 – destaques do autor).

Na escrita luandina, cidade e infância aparecem intrincadas, embora seja a cidade que predomine como lugar das diferenças sociais, do preconceito e da segregação. Por isso, a memória da cidade e da infância é uma ferida que persiste para cada narrador dos contos que compõem essa obra luandina. Dentre eles, destaco o narrador do conto “Encontro de acaso”. No cruzamento de temporalidades encenado na narrativa, obtido graças à combinação da lembrança da experiência vivida na infância com o presente, deparamo-nos com a tentativa da escrita luandina de aproximar-se de um modo de ser que recupera o tempo de uma “meninice descuidada” (VIEIRA, 1997, p. 49), vivida nas aventuras da Grande Floresta, com “mafumeiras gigantes, cheias de picos, habitadas por sardões, plim-plaus, picas, celestes, rabos-de-junto” e transformada em “centro do mundo” e sede do “grupo de cóbois” dos meninos. (VIEIRA, 1997, p. 49).

A narrativa recria a desigualdade do sistema colonial enquanto introduz a dor como elemento primordial da escrita luandina. Assim, enquanto observa saudoso, numa taberna do musseque Makulussu, o ex-chefe do bando de “cóbois” de sua infância, de quem fora separado pela mesma “fronteira de asfalto” que fratura a cidade de Luanda, o narrador confessa, num desabafo:

Como são dolorosas as recordações! Oh, quem me dera outra vez mergulhar o corpo na água suja e ter a alma limpa como nos tempos em que ele, eu, o Mimi, o Fernando Silva, o João Maluco, o Margaret e tantos outros, éramos os reis da Grande Floresta. (VIEIRA, 1997, p. 50).

A atualidade desse narrador, marcada por um disfarce de homem branco e adulto feito de fazenda e nylon, barba bem escanhoada e sapatos engraxados, não apaga o passado do menino de oito anos que, junto com os outros meninos, negros e brancos, brincavam na Grande Floresta. Justamente por isso, a imagem do menino negro ex-chefe do bando, tornado um “farrapo humano” pela vida que os separara, emerge na narrativa como uma sombra do passado:

De pé, um negro batia com o pé descalço no chão e marcava o compasso duma música que a sua boca tirava da harmônica. O outro negro magrinho dançava com ele, o chefe da Grande Floresta. O espetáculo tinha tanto de estranho como de belo. Sombras pinceladas pela luz amarela do candeeiro, personagens irreais. Um negro de pé. Só se viam os olhos brilhar e os pés a bater o ritmo duma canção de instrumento barato. O outro negro, que se torcia e retorcia na febre do ritmo, tocado de leve pela luz, amarfanhado pela sombra da própria cor, dançava com ele, de pernas mais tortas, cabelo a cair na testa, os olhos raiados de sangue. (VIEIRA, 1997, p. 51-52).

Nessa sombra do passado, aquilo que o narrador vislumbra, pesaroso, é a própria cidade de Luanda dos anos 40. Essa, ao emergir no presente da narrativa como ruína, desnuda a degradação e a corrosão moral em que se encontra, decorrentes da discriminação racial dos nativos e das mudanças provocadas pela modernidade. Retomando sua história a partir de fragmentos da memória, num processo constante de lembranças e esquecimentos, o narrador se coloca como testemunha de uma perda que afeta a todos, já que a canção que os negros cantam e dançam no fundo da taberna é

a canção de todos nós, meninos brancos e negros que comemos quicuérra e peixe frito, que fizemos fugas e fisgas e que em manhãs de chuva deitávamos o corpo sujo na água suja e de alma bem limpa íamos à conquista do reduto dos bandidos do Kinaxixi. (VIEIRA, 1997, p. 52). 

Essa imagem do passado que retorna diz-nos da encenação do trauma pela escrita luandina. Em um artigo instigante em que discute as modalidades do despertar traumático em Sigmund Freud e Jacques Lacan, Cathy Caruth (2000), nos informa que a noção de trauma confronta-nos não somente com uma patologia, mas também com um enigma fundamental que diz respeito à relação da psique com a realidade. Genericamente, o trauma pode ser definido como “a resposta a um evento ou eventos violentos inesperados ou arrebatadores, que não são inteiramente compreendidos quando acontecem, mas retornam mais tarde em flash-backs, pesadelos e outros fenômenos repetitivos”. (CARUTH, 2000, p. 111).  Para a estudiosa, a experiência traumática sugere um determinado paradoxo, pois a visão mais direta de um evento violento pode ocorrer como uma inabilidade absoluta de conhecê-lo. O retorno do evento traumático sugere, portanto, “uma relação maior com o evento, que se estende para além do que pode ser visto ou conhecido e que está intrinsecamente ligada ao atraso ou à incompreensão que permanece no centro desta forma repetitiva de visão”. (CARUTH, 2000, p. 112). 

A encenação da experiência traumática se realiza, de maneira especial, no conto “A cidade e a infância”, da mesma coletânea. A passagem da infância para a idade adulta da personagem Zito coincide com a transformação de Luanda, em decorrência da urbanização e do progresso implantados pelo governo salazarista. Ardendo em febre por três semanas, Zito vê a morte diante dele. Em seu delírio febril, deitado numa cadeira de descanso numa varanda batida pelo sol, a imaginação revive seu passado de barrocas, fugas, sardões, lutas, aventuras de crianças brancas e negras “correndo aquele mundo deles que hoje tractores vão alisando e alicerces vão desventrando, para onde desce o bairro do Café, sucessor moderno daquele Braga da infância de todos eles”. (VIEIRA, 1997, p. 91).

Zito é uma criança que se torna adulta à força de percorrer um caminho semeado de contradições entre colonizadores e colonizados, brancos e negros, ricos e pobres. A modernização de Luanda se caracteriza, para ele, como experiência de perda de um espaço e de um tempo em que a exclusão social se revela atenuada: a infância vivida numa “cidade de casas de pau-a-pique, zinco e luandos, à sombra de frescas mulembas onde negras lavavam a roupa e à noite se entregavam”. (VIEIRA, 1997, p. 91). Para Rita Chaves,

Para além da referência ao estreito contato com a mãe, matriz primordial na literatura de Angola, seja a própria, seja como metonímia da terra africana, o universo infantil é retomado como um mundo em comunhão, onde o código da cisão não tinha se projetado. (CHAVES, 2005, p. 49).

A perda desse espaço e desse tempo, e principalmente, a perda da comunhão que a condição infantil podia estabelecer entre eles, marcam a passagem de Zito da infância para a idade adulta. Essa perda se inscreve na memória da personagem pela grafia da palavra GUERRA, que, escrita em maiúscula, traça o meio pelo qual ela passará a significar a realidade: “Lembra-se do dia em que o pai o ensinou a ler a primeira palavra. Na ‘Província de Angola’ escrita a letras grandes: GUERRA.” (VIEIRA, 1997, p. 83).

A realidade fulgura no conto pela retratação das diferenças de várias ordens que marcam a sociedade angolana colonial e ganham vida, para o menino de oito anos, nas histórias que o pai contava à noite, que variavam entre os “batuques defronte da loja do Silva Camato”, as “lutas” e “navalhadas na noite”, resultantes das “rixas entre condenados da fortaleza de S. Miguel”. Nas conversas do pai, “muito sangue correu no Makulusu em noites dessas”. (VIEIRA, 1997, p. 83).

De fato, paralelamente às aventuras dos meninos, em todas as narrativas da coletânea adentramos os becos dos musseques da cidade, onde transitam personagens que estão à margem da sociedade e sobre os quais pesa a violência da segregação racial, social e econômica. Como nos informa Rita Chaves:

Pelas ruas que ele desenha circulam os trabalhadores explorados, sapateiros, alfaiates, quitandeiras, vendedores de loteria, representantes da população pobre da periferia de Luanda (...) os malandros, os desempregados, os pequenos ladrões, pobres diabos que usam o expediente, para escapar à fome de cada dia. A esses vem juntar-se as mulheres e as crianças, personagens atuantes, às vezes decisivos nos enredos com que tematiza a vida dos musseques. (CHAVES, 2005, p. 29).

Dessa forma, na contraposição do tempo passado ao tempo presente, encontramos a exposição das injustiças e das mudanças que ocorrem na cidade de Luanda e na sociedade angolana colonial. Nesse tempo e nesse espaço, a infância se constrói como forma de expressão, resistência e crítica ao modelo colonial e a suas consequências. Mais do que a evocação de um tempo feliz, a memória de Zito exprime a vivência da dor e a consciência da perda como princípios de uma proposta de criação estética que se volta para a realidade angolana não apenas a partir de uma visão nostálgica da infância, mas a partir de um projeto de escrita que se faz crítica dessa mesma realidade.

Nesse projeto a escrita grafa, no corpo do texto, as cicatrizes de uma memória que eterniza, em celuloide, a dramaticidade da vida e da infância nos musseques angolanos da época colonial. A vida e a infância nos musseques são feridas que doem em todas as personagens da escrita luandina. São “feridas de celuloide, que não cicatrizam mais”. (VIEIRA, 1997, p. 89). Feridas abertas que voltam sempre, em flash-backs que indicam que o trauma da perda da infância na cidade de Luanda e, principalmente, da perda da comunhão que se vivia nesse tempo e nesse espaço, sugere uma relação muito maior entre a escrita luandina e a realidade angolana, a qual se estende para além do que pode ser visto ou conhecido e que está intrinsecamente ligada ao atraso ou à incompreensão que permanece no centro de todos os fenômenos repetitivos. 

No mesmo artigo mencionado anteriormente, em que discute as modalidades do despertar traumático, Cathy Caruth se dispõe a estudar o problema do ver e do saber conforme ele aparece num sonho relatado por Freud e em sua reinterpretação por Lacan. No relato de Freud, um pai que perdeu sua criança sonha com ela na noite após sua morte:

Um pai velou dias e noites ao lado da cama de sua criança doente. Depois da criança ter morrido, ele se deita em um quarto vizinho para descansar, deixando, no entanto, a porta aberta, de forma a poder olhar, de seu quarto, o quarto no qual o corpo da criança se encontra, estendido e rodeado de grandes velas. Um senhor idoso foi chamado para velar também e encontra-se sentado ao lado do corpo, murmurando preces. Depois de algumas horas de sono, o pai sonha que a criança se encontra ao lado de sua cama, o segura pelo braço e sussurra de modo repreensivo: “Pai, você não está vendo que estou queimando?” Ele acorda, percebe uma luz clara que vem do quarto do defunto, corre até lá, encontra o velho vigia adormecido, os invólucros e um braço do precioso corpo queimados por uma vela, que caíra acesa sobre ele. (FREUD apud CARUTH, 2010, p. 113).

Cathy Caruth nos informa que Freud, primeiramente, apresenta o sonho como uma explicação exemplar, ainda que enigmática, da razão pela qual dormimos e, consequentemente, como não enfrentamos adequadamente a morte fora de nós. Posteriormente, Freud conclui que o desejo do pai de conservar a criança viva acaba por estar ligado a um desejo, mais profundo e enigmático, de dormir. Explica que esse desejo é enigmático por que não vem apenas do corpo, mas da própria consciência, que deseja, de alguma forma, sua própria suspensão. Com isso, o sonho da criança queimando representaria a realização do desejo da própria consciência. Assim, Para Caruth, Freud primeiramente vincula a teoria dos sonhos e da realização do desejo à realidade externa e, mais especificamente, à realidade da morte, da catástrofe e da perda; posteriormente sugere que a consciência é cegada por essa realidade externa violenta.

Lacan, por outro lado, na interpretação de Caruth, sugere que no sonho estaria a noção freudiana de repetição traumática, especificamente os pesadelos traumáticos que despertam o sonhador para um novo pavor. Para Lacan, o sonho não seria sobre um pai dormindo diante de uma morte externa, mas sobre a forma como a própria identidade do pai, como sujeito, em seu despertar traumático, está vinculada ou fundada na morte à qual ele sobreviveu. Segundo Caruth, o que chama a atenção de Lacan é a forma como as próprias palavras da criança enfatizam precisamente o dormir e o acordar. Para ele, as palavras “Pai, você não está vendo que estou queimando?” endereçam-se ao pai de dentro do sonho, como reclamação sobre o próprio fato de ele estar dormindo. Nessa perspectiva, o próprio sonho acordaria quem dorme. Nele aquele que sonha enfrentaria a realidade de uma morte da qual não pode se livrar.

Assim, Freud sugere que o sonho mantém o pai dormindo; Lacan sugere que é precisamente porque o pai sonha que ele acorda. A partir desse diálogo entre Freud e Lacan, Caruth sugere que Lacan relaciona o trauma à identidade do eu e à relação com os outros. Ao fazê-lo, resitua a relação da psique com o real, compreendendo-a como a história de uma responsabilidade urgente, ou como uma relação ética com a realidade. Isso porque, para Lacan, o sonho do pai não se liga ao ressuscitar desejado da criança, mas ao acordar do sonhador para a morte da criança. Ou seja, o acordar do pai representaria não apenas uma resposta à criança, mas uma ligação com a criança que seria construída exatamente sobre a perda dela. A partir desse raciocínio, Lacan postula que o acordar é, em si mesmo, o lugar do trauma provocado pela necessidade e pela impossibilidade de responder à morte de um outro. O acordar envolve uma questão de responsabilidade, pois reencena a sobrevivência em relação ao trauma.

De acordo com Caruth, Lacan pensa o trauma como a origem mesma da consciência e de toda a vida. Para ele, o trauma corresponderia a uma revelação de um dilema ético básico no coração da própria consciência, na medida em que estaria relacionado à morte, mais particularmente à morte do outro. Assim, o acordar do pai no sonho relatado envolveria um encontro com o real. O phatos e a significação deste acordar não derivariam simplesmente da perda da criança, mas antes do fato de que a própria perda é que despertaria o pai para que sobrevivesse para contar a história de sua perda. O que seria transmitido, nesse contar, seria o testemunho da tragédia da sobrevivência à perda e seu movimento em direção ao outro, e ao futuro. A transmissão da perda transmitiria não apenas uma realidade que poderia ser compreendida na repetição dessa perda, mas o imperativo ético de um acordar que ainda estaria por acontecer.

A discussão realizada por Cathy Caruth nos ajuda a compreender a encenação da experiência traumática no conto “A cidade e a infância”, como também sua presença na escrita luandina. A infância e a comunhão que se vivia na cidade de Luanda se repetem na memória febril de Zito em imagens que retornam para despertar a personagem e evitar a sua morte: “Mas ele lembra sempre aquele tempo de menino. A Rua do Lima, o zizica, a velha Talamanca, a Albertina, o João Alemão, todos os que ele gostava de ver agora, quando o peito dói muito e sente a morte aproximar-se.” (VIEIRA, 1997, p. 83).

A perda da infância e da comunhão vivida nos musseques, decorrente da inexistência de um código de cisão que não se projetara nesse tempo e nesse espaço, está diretamente relacionada à nova identidade de Zito como adulto e à sua relação com as outras personagens que povoam sua memória. Como o Brás e o Carlos, por exemplo, antigos colegas das lutas de papagaios de papel e de sonhos. Nelas os “roncadores” do Brás suprimiam os lentos “papagaios” de rabo comprido, as grandes “estrelas”, os estáveis “balões” ou os pequenos “bacalhaus”. O presente da narrativa localiza Brás apanhado pela polícia, julgado e cumprindo pena no Forte Roçadas em razão de pequenos roubos a bares e barbearias.

Por isso, podemos pensar que o despertar de Zito não se liga ao desejo de retorno da infância e da comunhão anteriormente vividas, mas ao acordar do personagem para a morte desse tempo passado e dos sonhos que o povoaram:

E hoje, os olhos a arder da febre, ele revive o amigo Brás e os outros e os sonhos de papel de seda que todos tiveram.

Sonhos de papel de seda, levantados contra o céu azul, com a criançada boquiaberta cá em baixo, hoje, quando ele não é mais que um papagaio de papel que se embaraçou, que se rasgou nos grandes ramos da árvore da vida. (VIEIRA, 1997, p. 84).

O despertar de Zito poderia ser lido, assim, não apenas como a conformação da personagem em relação ao fato de ele ter se tornado um homem adulto, mas também como uma ligação com a infância que seria construída exatamente sobre a perda desse tempo. O despertar de Zito seria, em si mesmo, o lugar do trauma provocado pela impossibilidade de retornar a um tempo e a um modo de viver nele. Ele envolveria uma questão de responsabilidade, ou uma relação ética que a personagem, agora homem adulto, deve assumir com a realidade.

O trauma da perda da infância e da comunhão que ela permitia será, para Zito, a origem mesma de sua consciência em relação à morte de um tempo, de um espaço, e também de todo um grupo de pessoas que com ele compartilharam esse tempo e esse espaço:

Viu a Morte diante dele muito tempo. No delírio febril tudo lhe veio à memória. Tudo tinha cor e vida. Agora eram apenas recordações baças, bonecos desarticulados, mexendo-se no vácuo da imaginação. Fizera-se homem. (VIEIRA, 1997, p. 91).

Assim, o despertar de Zito envolverá seu encontro com a realidade angolana de seu presente como adulto. O phatos e a significação desse despertar resultam do fato de que é a própria perda da infância e da comunhão que despertam Zito para que ele sobreviva como testemunha dessa perda. A história de Zito será o testemunho da tragédia da sobrevivência à perda. Contá-la implicará um movimento em direção ao outro, e ao futuro: movimento de trazer de novo, sempre, os cortes das feridas abertas que a escrita luandina “sutura”, intersecionando os sonhos “de papel de seda” do passado e a realidade fragmentada do presente numa bem sucedida articulação que, dizendo com Theodor Adorno, promova a convergência entre forma e crítica. (ADORNO, 1988).

De fato, na escrita luandina, a forma resulta de uma intencionalidade crítica a partir da qual ela dialoga com a realidade. Por meio da forma, a escrita luandina critica a realidade angolana e, antagonicamente, se mostra parte dela. A forma “é aquilo mediante o qual ela se revela crítica em si mesma”. (ADORNO, 2008, p. 165). Como dirá Adorno, a forma é

a síntese não violenta do disperso que ela, no entanto, conserva como aquilo que é, na sua divergência e nas suas contradições, e eis porque ela é efectivamente um desdobramento da verdade. Unidade estabelecida, suspende-se sempre a si mesma, enquanto posta; é-lhe essencial interromper-se através do seu outro, não se harmonizar com a sua consonância. Na sua relação com o seu outro, cuja estranheza atenua e, no entanto, mantém, ela é o elemento anti-bárbaro da arte; através da forma, a arte participa na civilização, que ela critica mediante a sua existência. Lei da transfiguração do ente, representa perante ele a liberdade. (ADORNO, 2008, p. 165 – destaques do autor).

Assim, suturar as feridas abertas da realidade angolana, apontando o que há de terrível nessa realidade, mesmo ciente de que sua existência estética se constitui dentro dessa mesma realidade, é o dilema em que se situa a escrita luandina, a sua ambiguidade constitutiva, que faz com que ela maneje as condições de visibilidade da experiência de modo a poder ser compreendida, mas não a ponto de perder seu impacto. Na convergência dessa escrita com a forma estética que ela propõe e assume, percebemos a impossibilidade para a qual aponta de estar fora da história.

Referências

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Notas

[1]MOREIRA, Terezinha Taborda. Trauma e história na escrita literária de Luandino Vieira. Revista Cerrados25(41), 2016. Recuperado de: https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/25395

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* Terezinha Taborda Moreira é Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte. Pesquisadora CNPq-Nível 2. Este trabalho é parte das reflexões desenvolvidas no âmbito do Projeto de Pesquisa “Linguagem e trauma na escrita literária angolana”, com o apoio do CNPq. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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