Violência e trauma na escrita literária angolana1

 

Terezinha Taborda Moreira*

 

Este estudo2 decorre de algumas pesquisas que tiveram como objetivo investigar como a violência e o trauma resultantes do processo colonial e das guerras pela independência e civil se configuram em alguns textos literários produzidos por escritores angolanos nas últimas décadas. A análise contemplou a reflexão sobre o processo de construção textual empreendido por escritores como Pepetela e Luandino Vieira, abordando algumas de suas produções literárias como efeito de uma problematização do ato de narrar. As obras A gloriosa família (1999) de Pepetela, e O livro dos rios - 1º volume da Trilogia De rios velhos e guerrilheiros (2006), de José Luandino Vieira, serão analisadas tendo como foco a questão do trauma e as possibilidades de se narrar o vivido. O estudo dessas obras e autores intentou colocar em diálogo propostas de criação estética distintas, por meio das quais os escritores pactuam com a recusa a modelos de representação que não incluem a realidade angolana, conforme se tentará mostrar.

Problematizar a violência da guerra pode ser uma maneira de representar as divergências ideológicas, as contradições e as injustiças presentes na realidade angolana, marcada por conflitos desde a época colonial até os anos da pós-independência. Por isso, o artigo pensa a literaturas angolana a partir da mesma relação entre literatura, história e trauma que Jaime Ginzburg (2000) propõe para a literatura brasileira quando reflete sobre o fato de que a opressão sistemática que marca nossa estrutura social, de formação autoritária, abala a noção de sujeito e, também, a concepção de representação, que se fragmenta, “exigindo do leitor a perplexidade diante das dificuldades de constituição de sentido, tanto no campo da forma estética, como no campo da experiência social”. (GINZBURG, 2000, p. 43).

Compactuando com as reflexões de Ginzburg, e guardando as devidas diferenças entre a literatura brasileira e a angolana, a reflexão apresentada aqui mostra que várias narrativas produzidas em Angola encenam a condição humana de sujeitos cuja subjetividade é atingida pela opressão sistemática de uma estrutura social marcada pelo lastro do processo colonial na cultura e na vida em geral. Essa opressão tem impactos sobre a subjetividade desses sujeitos e, também, sobre a concepção de representação que orienta as narrativas. Distanciando-se dos modelos canônicos da representação literária, a literatura angolana propõe, muitas vezes, situações que se conformam mais como experiências de dessubjetivação do que de subjetividade. A escrita literária se realiza a partir da fragmentação, evidenciando, com isso, os limites com que se deparam os escritores para constituírem sentido.

A representação da história, em várias obras dessa literatura, aproxima-se da proposta benjaminiana da História como sucessão de catástrofes, como ruína. Os escritores trazem, para sua escrita, a violência, a injustiça e a agonia que conformam suas experiências sociais, problematizando-as. Isso decorre do fato de que desde a ocupação do território angolano pelos portugueses, marcado por inúmeras guerras locais e pela recusa da língua e da cultura autóctones, até o fim do período colonial, Angola conviveu com uma política exploratória responsável pela divisão e pela dizimação de nativos, a qual contou com a participação de povos autóctones. A escravidão significou um exercício sistemático de coerção pela violência e pelo racismo. Nessa sequência, o período pós-independência representou uma nova forma de dominação do estado sobre a sociedade civil angolana. Essa série de traumas marca a experiência social de Angola. As escritas literárias dos escritores aqui analisados tratam desses traumas a partir de uma reflexão melancólica na qual a realidade é assumida como catástrofe, a história é relida como ruína.

Desde o final do século XX observamos um movimento de mudança na forma de narrar. Esse movimento é perceptível na produção de vários autores contemporâneos, cuja escrita se afasta dos modelos tradicionais para enveredar por uma representação do presente e do passado caracterizada pelo abalo da forma estética e por uma linguagem complexa e fragmentada. No compasso dessa forma de pensar a escrita, na literatura angolana a forma de narrar se afasta de modelos tradicionais por meio da utilização de recursos estéticos diversos, como a fragmentação da linguagem e a multiplicidade de vozes que ecoam no texto, os quais, voltandose para a história de seu tempo, funcionam como registro ficcional de um contexto histórico de violência. Esses recursos distanciam-na dos padrões realistas de composição narrativa que, em geral, se ancoram no realismo formal e na verossimilhança para constituírem sentido (WATT, 1990). A literatura angolana se compromete, antes, com uma renovação de parâmetros na arte que defenda a impossibilidade de dissociar os campos, estético, ético e político, conforme defendido por Theodor Adorno (1980; 2008).

As narrativas analisadas aqui encenam um contexto social que contribui sistematicamente para a desumanização do sujeito. Embora essa desumanização ganhe forma nas narrativas ficcionais, ela não é retratada sem questionamentos. Antes, é problematizada pelas limitações que os escritores impõem às suas personagens, por meio das quais eles tentam evidenciar a perplexidade dos sujeitos diante de situações opressivas e traumáticas. Assim, na escrita literária de Pepetela e Luandino Vieira encontramos essa perspectiva de construção que se processa a partir da indissociabilidade entre os campos estético, ético e político. Suas escritas questionam a capacidade de representar o passado pelo recurso às formas convencionais de escrita. E assumem a indissociabilidade entre os campos estético, ético e político como artifício para propor um trabalho estético-literário que tensiona a linguagem em sua condição de, falando com Roland Barthes, “objeto em que se inscreve o poder, desde toda a eternidade humana”. (BARTHES, 1978, p. 12).

Adorno (1988) já nos mostrou que os antagonismos encontrados na realidade assumem, na arte, o estatuto de antagonismos formais. Estes se revelam por meio de fenômenos como a ruptura com gêneros tradicionais, o hibridismo, a problematização da linguagem, a diluição de fronteiras entre tempo e espaço, a ruptura da distância entre narrador e personagens, o questionamento da relação entre realidade e ficção, dentre outros. Todos esses fenômenos indiciam a dificuldade da forma literária para expressar a realidade violenta e traumática. Atravessadas por esses fenômenos, as escritas literárias dos autores aqui destacados tensionam o limite entre realidade e imaginação, subvertem parâmetros canônicos, apontam ambivalências da linguagem, desvelam contradições, rejeitam padrões lógicos de entendimento da consciência e da linguagem, promovem a fragmentação e a descontinuidade formal, enfim, rompem com uma tradição de escrita que não inclui a realidade e a história de Angola.

A eleição dos autores e obras decorre de uma tentativa de flagrar algumas orientações que identificamos na escrita literária angolana pós-75, a saber: a do riso como estratégia para a releitura da colonização como história do sofrimento dos homens, e a da escrita como testemunho. Essas tendências revelam o compromisso que as escritas literárias de Pepetela e Luandino Vieira assumem em seu intento de dizer Angola por meio de antagonismos formais que traduzem aporias presentes em sua realidade e sua história. Esses antagonismos formais serão compreendidos, antes de mais nada, como mecanismos que problematizam o processo de construção de identidades nos textos. Acreditamos que as relações que as escritas de Pepetela e Luandino Vieira estabelecem não são construídas a partir de uma confrontação entre identidades prontas. Não se pretende pensar a identidade, aqui, de maneira essencialista, como sendo constituída antes e fora da própria relação antagônica que a escrita encena. Ao contrário, os antagonismos formais serão pensados como condição de possibilidade para a constituição de identidades em textos que expressam realidades violentas e traumáticas.

O riso e a releitura da história como sofrimento dos homens

O romance A gloriosa família - o tempo dos flamengos, de Pepetela, encena a cidade de Luanda durante os sete anos de ocupação holandesa estabelecida pela Companhia das Índias Ocidentais em Angola, entre os anos de 1641 a 1648. Ele se estrutura em doze capítulos, ao longo dos quais tomamos contato com o ambiente conflituoso da cidade de Luanda dividida entre portugueses, holandeses e nativos. Esse ambiente é filtrado pela perspectiva de um narrador personagem escravo e mestiço que, a partir da focalização da família do personagem Baltazar Van Dum, um holandês casado com a nobre africana D. Inocência, nos conta sobre as políticas comerciais, a teia de corrupções e os jogos de intrigas e influências caracterizadores das relações políticas e pessoais que estão na base da formação da futura nação angolana, constituída de um mosaico de diferenças de etnias, credos e culturas.

Mas o que mais chama a atenção no romance é a sua construção enunciativa. Ela dá forma a um discurso polifônico, que se articula a partir do cruzamento de vozes distintas. A polifonia resulta da dissonância do cruzamento dessas vozes imiscíveis, do conjunto de ideias, pensamentos e palavras delas originadas, que soam na narrativa de modo a tornar visível sua diferença. Isso nos permite dizer que o objeto do romance é “a polifonia de princípio e, por assim dizer, irrevogável” (BAKHTIN, 1981, p. 235) que o caracteriza, que faz com que nele o que importe, acima de tudo, seja a própria distribuição das vozes e a sua interação pelo diálogo. O romance é totalmente dialógico.

Na abertura, o prólogo contém um trecho da obra História Geral das Guerras Angolanas, do cronista português António de Oliveira Cadornega, datada de 1680. Esse recurso ao discurso da história na abertura do romance inscreve a voz da história na narrativa, sugerindo que ela vai se constituir a partir de um diálogo estreito com a história. A inscrição é reiterada ao longo da obra, quando, à exceção dos capítulos primeiro e décimo, todos os demais são abertos com uma epígrafe que contém um fragmento de texto de natureza histórica. Trata-se de citações de textos que incluem compêndios de história de África e de Angola produzidos, ou não, por Portugal, documentos historiográficos, cartas de governadores das colônias a reis portugueses, e ainda, cartas de representantes da Igreja a personalidades da nobreza na época colonial, o que acrescentaria, à voz da história, também a voz do discurso religioso no romance.

O texto de António de Oliveira Cadornega conta sobre um incidente ocorrido com o holandês Baltazar Van Dum, flamengo de nação que fora acolhido pelos portugueses em Luanda. Na tentativa de retomada da cidade, Baltazar Van Dum teria recebido uma mensagem de alguns amigos portugueses solicitando informações sobre as posições defensivas dos holandeses e os efetivos de cada posto. Em função disso, quase teria sido morto pelos holandeses, não fosse a intervenção de um amigo flamengo, o “Major que governava as Armas” (PEPETELA, 1999, p. 9), que lhe aconselhou procurar o diretor e denunciar a investida portuguesa. Na sequência da narrativa, o capítulo primeiro se inicia como se fosse uma continuação desse relato histórico. Porém, ele se elabora narrando a reação do personagem Baltazar Van Dum à entrevista com o diretor Nieulant a partir da perspectiva de seu escravo mulato. Ou seja, aqui uma voz ficcionalmente construída assume o relato. O dado inusitado da inscrição dessa voz resulta de duas particularidades que ela apresenta. A primeira refere-se ao seu lugar de origem: um escravo mulato, filho “de uma escrava lunda, é certo, mas também de missionário napolitano, louco pelo mato e pelas negras” (PEPETELA, 1999, p. 24), que se identifica como “pobre pagão apenas nascido de um pênis de padre”. (PEPETELA, 1999, p. 170) e nos informa da condição de mudo e analfabeto estabelecida para ele por seu dono, Baltazar Van Dum. A segunda refere-se à maneira como ele escolhe tratar a matéria que constitui o romance, a saber, aquilo a que a voz histórica aludira como apenas um incidente na narrativa das guerras travadas pelos portugueses durante o período colonial.

A condição muda e analfabeta do escravo não é declarada por ele, mas por Baltazar Van Dum. A declaração resulta de uma atitude desdenhosa do holandês, por meio da qual ele subestima as capacidades do mulato, a quem somente olhara de frente duas vezes na vida: “É mudo de nascença. E analfabeto. Até duvido que perceba uma só palavra que não seja de quimbundo. Sei lá mesmo se percebe quimbundo... Umas frases se tanto! Como pode revelar segredos?”. (PEPETELA, 1999, p. 393). Atento ao insulto, o escravo mulato assume a condição muda e analfabeta na qual é inserido, mas decide desforrar-se do dono, devido ao desprezo com que fora tratado, contando sua história: “Uma desforra para tanto desprezo seria contar toda a sua estória, um dia. Soube então que o faria, apesar de mudo e analfabeto.” (PEPETELA, 1999, p. 393-394). 

A origem do relato como uma desforra se torna mais evidente devido ao fato de que, contrapondo-se a assertiva de Baltazar Van Dum acerca da condição muda e analfabeta do escravo mulato, a voz narrativa demonstra ser proveniente de um sujeito possuidor de uma inteligência astuta, que tem consciência de tudo o que se passa a seu redor, e que domina as línguas portuguesa, quimbunda, flamenga, castelhana e francesa, como se pode observar na passagem abaixo:

O engraçado eram as línguas da conversa. Se era para todos perceberem e participarem, utilizavam o quimbundo. Se Baltazar queria dizer alguma coisa confidencial a Nicolau, usava o flamengo. E se o Nicolau ou o meu dono se dirigiam a Diogo, para só os três se comunicarem, o português era o escolhido. Complicado para quem não dominava os três idiomas. Eu estava perfeitamente à vontade. Até podiam falar castelhano ou mesmo francês, que o sentido não me escaparia. (PEPETELA, 2009, p. 114).

Essa estratégia de construir a narrativa como um jogo de contraposições se estenderá por todo o relato, gerando o cruzamento vozes e de enredos inconclusos na narrativa. Ele permitirá à voz narrativa sustentar seu discurso em um saber e, simultaneamente, criar um discurso que se impõe pela revisão desse saber. O texto vai se estruturar, então, com fragmentos de um mosaico, variedade de elementos, ao mesmo tempo em que significará, por si só, essa variedade, na medida em que destaca o fato de seu sentido não se entender senão como combinação de unidades distintas. Por meio da contraposição de enredos e de discursos, o texto recusa a unidade e se configura como construção polifônica e plural, resultado de um diálogo que permite a inclusão de vozes que foram silenciadas pela história, como é o caso da voz do escravo mulato que nos conta agora sobre a ocupação holandesa de Angola.

Assim, em relação à primeira particularidade da voz narrativa, vemos que, ao identificar-se como proveniente de um “pobre pagão apenas nascido de um pênis de padre”, ela desvela para o leitor não apenas o lugar de fala no qual se coloca, mas também a condição a partir da qual fala. Sua genealogia inclui uma escrava lunda, por meio da qual anuncia sua origem na terra angolana, com suas tradições, seus costumes, seu modo de ser e de conceber o mundo a partir de uma mundividência oral, mas também um missionário napolitano, o que incorpora a sua origem tradições, costumes, modo de ser e conceber o mundo a partir da mundividência escrita. Essa genealogia dá conta da condição bastarda que está na origem do escravo mulato que conta a história de Baltazar Van Dum na narrativa pepeteliana.

Como proveniente de um filho de missionário napolitano, a voz narrativa pertence a um bastardo por decreto religioso desde o nascimento. Nesse sentido, pertence a um sobrevivente do abandono, do não reconhecimento, da discrição conveniente, do silêncio imposto a sua identidade. Silêncio que, ao mesmo tempo, se projeta também sobre a relação com sua mãe, já que, tendo nascido de uma escrava lunda pertencente a uma cultura predominantemente oral, a bastardia lhe afasta da possibilidade da comunicação oral nos moldes da tradição cultural materna, outro meio possível de afirmação identitária.

A condição bastarda poderia, a princípio, nos permitir compreender a opção da voz narrativa por um modo de contar a história não pela via oral, já que ela procede de um mudo, mas pela escrita. Porém, fomos informados de que o escravo é declarado, também, analfabeto. Por isso, as considerações que trazemos nos habilitam a pensar que, ao assumir a condição muda e analfabeta na qual foi inserida, a voz narrativa, mais do que apontar para uma impossibilidade de contar, define, antes, um modo de contar que, devido a sua condição bastarda, a afasta da erudição escrita da cultura paterna, tanto quanto a afastara da oralidade tradicional da cultura materna. Assim, o modo de contar da voz narrativa encontraria, na bastardia, uma opção para organizar o discurso. Acreditamos, por isso, ser possível associar os procedimentos adotados pela voz narrativa para contar a história à proposta de um possível narrador bastardo, conforme proposto por Telma Borges (2015), embora nossa leitura não vá se debruçar sobre as estratégias narrativas adotadas por ele a partir das características elencadas pela estudiosa.3

No romance de Pepetela a condição bastarda se projeta duplamente sobre a voz narrativa: como proveniente de um filho de escrava lunda, mas muda, ela se desviaria do modo de comunicação oral da cultura tradicional; e como proveniente de um filho de missionário napolitano, mas analfabeto, ela desviar-se-ia do modelo canônico de utilização determinado pelo próprio código escrito. A bastardia definiria a opção da voz narrativa por contar marcando os limites de sua relação tanto com a oralidade da tradição cultural angolana quanto com a canonicidade da cultura escrita. Assim, muda e analfabeta, vale dizer, bastarda de mãe e de pai, desfiliada, a voz narrativa assume a indisciplina, não aceita correção, contrapõe-se ao uso da escrita dentro de uma concepção erudita e reorganiza o contar para que ele acolha sua visão de escravo mulato sobre a ocupação holandesa de Angola no século XVII.

Ao construir seu discurso a partir de citações históricas no romance, a voz narrativa promove uma ligação que reúne o discurso histórico ao ficcional. As citações históricas se integram ao contexto narrativo ocupando um lugar estratégico no enunciado, participando do jogo intertextual estabelecido pela voz narrativa, o que não nos permite considera-las isoladamente no romance. Novamente aqui encontramos o jogo de que se processa no nível da enunciação. Por meio dele, o discurso ficcional mantém, com as citações da história, uma relação de zombaria, na qual inverte o conteúdo posto pela citação histórica, de modo a fazer emergir dela um registro segundo, deslocando-a, degradando-a, desconstruindo-a através da ironia. A inversão operada transforma a enunciação em um espaço de contraposição de duas perspectivas distintas para a história de Angola: a do discurso da história oficial e a da voz narrativa do escravo mulato. Essa inversão se projeta no romance como um todo. O efeito é o do riso, mas de um riso melancólico, que transforma a narrativa numa alegoria benjaminiana da violência do processo colonial.

Essa situação pode ser exemplificada pela grande ironia que significa a transformação do cronista português António de Oliveira Cadornega em personagem da narrativa. Tal transformação confronta as duas formas pelas quais ele aparece na narrativa: como autor de documentos de história oficial e, simultaneamente, como voz que contesta a imparcialidade do discurso histórico, desvelando sua condição de construção discursiva. É o que se pode ver no fragmento abaixo, em que a voz narrativa nos conta como a personagem Cadornega sugere que os fatos históricos são escamoteados ou travestidos de glórias segundo a intenção do historiador:

- E vai apresentar o governador Sottomayor da maneira como fala dele aqui entre amigos? Porque li algumas crônicas e até poema sobre os reis e heróis de Portugal, que só cantam coisas sublimes e grandiosas, como se não existissem as menos gloriosas. (...)
- Chega a ser uma questão moral. Se escrevo sobre as grandezas de Portugal, como posso contar as coisas mesquinhas? Não, essas ficam no tinteiro, pois não interessam para a história. Será necessário saber interpretar a crônica. Personagem que não aparece revestida de grandes encômios é porque não prestava mesmo para nada e só o pudor do escritor salvaguarda a sua memória. Assim tem feito, assim deve ser. (PEPETELA, 1999, p. 269)

A confrontação entre dois discursos, o da história oficial e o da ficção, promovido pela transformação da personagem histórica em personagem de ficção, leva o leitor a refletir sobre a fragilidade do relato histórico, sobre o fato de que, como todo discurso, ele resulta de uma construção de linguagem, de um processo de escolhas subjetivas que, no entanto, são impostas como verdades. Confrontando discursos, a enunciação cria o desvio pelo qual a voz narrativa alcança seu objetivo de retratar a experiência colonial em diferença, mostrando ao leitor, por um outro viés, a visão da colonização como uma história do sofrimento dos homens.

O jogo de afirmar e negar, desvelar e velar que estrutura a enunciação instala na narrativa o riso. Sabemos o riso compreende uma experiência com o não-saber, com o não-sentido, com o não-sério que existem apesar do conhecimento, do sentido e do sério. Saber rir implica saber colocar-se no espaço da negatividade, do impensado, indispensável para sair da finitude da existência, para apreendê-la em sua totalidade. Na narrativa de Pepetela, a voz narrativa vai registrar, pelo risível, sua percepção sobre as incongruências da realidade angolana da época da ocupação holandesa, que se conformam como as incongruências do processo colonial como um todo. Assim, o discurso se estrutura a partir de uma ambiguidade que pode ser vista como uma estratégia irônica de enfrentamento dessa realidade. Estratégia que é crítica e reflexiva, já que, conforme Lélia Parreira Duarte, por ser uma estrutura comunicativa, a ironia somente existe se for proposta e vista como tal, o que significa dizer que

não há ironia sem ironista, e este será alguém que percebe dualidades ou múltiplas possibilidades de sentido e as explora em enunciados irônicos, cujo propósito somente se completa no efeito correspondente, isto é, numa recepção que perceba a duplicidade de sentido e a inversão ou a diferença existente entre a mensagem enviada e a pretendida. (DUARTE, 2006, p. 19).

Como ironista, a voz narrativa lança mão do humor para sobreviver às limitações da vida e à fragilidade do corpo num ambiente em que tudo lhe é hostil. Sua ironia revela uma percepção de que o ser humano tem motivações internas que justificam as suas reações diante da multifacetada realidade. Assim, em seu drama de ser escravo, mestiço, tornado mudo e analfabeto, e sobreviver à profunda violência de que é vítima, encontramos a malícia e a complacência com que aceita os desvios da própria vida, rindo-se deles, de maneira distanciada e cheia de humor.

A escrita como testemunho

Em O livro dos rios, a escrita luandina fixa, nos olhos do leitor, uma imagem caleidoscópica. Nela, os gêneros canônicos se desagregam sob o influxo dos gêneros da textualidade oral angolana. Mas estes, tampouco, saem imunes da gênese literária que a escrita lhes faculta. Ambas as formas textuais passam por um crivo que revela seu convencionalismo, parodia-as como gêneros, reinterpreta-as e dá-lhes outros tons, outras construções particulares. Na escrita luandina, o encontro, como também o confronto, de várias formas textuais apresenta-se como uma crítica dessas formas. Na crítica se manifesta a consciência dessa escrita como prática literária que se abre para a reflexão, que deseja a reflexão. Na multiplicidade de formas que entrelaça em sua tessitura, a escrita luandina se oferece ao leitor como enigma, em enigma. O enigma resulta do efeito de uma tessitura narrativa que cruza estruturas textuais que se configuram como metáforas da realidade social, histórica e cultural de Angola.

Dentre essas formas encontramos tanto gêneros e tipos textuais canônicos da cultura escrita greco-latina como repertórios textuais pelos quais Angola se faz representar. Destacam-se o poema “The negro speaks of rivers”, de Langston Hugues; um discurso de Heráclito de Héfeso, o “Obscuro”, considerado o pai da dialética; os provérbios de Salomão, notabilizado por sua grande sabedoria, prosperidade e por um longo reinado sem guerras (Bíblia, 2017); fragmentos da História geral das guerras angolanas, de António de Oliveira de Cadornega (1972); a Oração do Senhor proferida em língua local; ditos populares angolanos; figuras hieroglíficas que exigem a decifração do leitor; um planejamento tático de guerrilha; notas explicativas, glosas ou anotações para explicar o sentido de uma palavra, esclarecer uma passagem, fazer uma crítica, suprimir ou desaprovar um trecho de um escrito; apontamentos resumidos de informações lidas, ouvidas, observadas; esquemas de planejamento de escrita; referências a fontes de consulta reais; inserção de narrativas curtas, como que encaixadas, etc. etc. etc. Dispostas na escrita, essas formas textuais participam da circularidade caleidoscópica instalada no texto com o objetivo de tentar dominar o momento angustiante encenado pela narrativa.

Assim, em O livro dos rios, a voz narrativa constrói-se expondo sua fragmentação identitária entre Kene Vua e Kapapa para contar-nos sobre seu passado a partir de seu presente como ex-guerrilheiro na guerra pela independência de Angola da dominação portuguesa. Em seu relato a voz narrativa coloca o leitor em contato com reflexões sobre sua história de vida e, também, sobre a história de seu país. A fragmentação de sua identidade em Kene Vua e Kapapa espelha a fragmentação da própria nação angolana. Essa construção enunciativa, que entrecruza o trauma pessoal do narrador-personagem e o trauma coletivo do país, se projeta sobre a forma como a obra se estrutura nos cinco capítulos em que se divide: Rios, I; Eu, o Kene Vua; Rios, II; Eu, o Kapapa; e Rios, III. Nos capítulos “Eu, o Kene Vua” e “Eu, o Kapapa” a voz narrativa banha-se duas vezes nas mesmas águas dos rios de sua vida para tentar elaborar os traumas de sua história pessoal. Enquanto elabora seu trauma pessoal, a voz narrativa vai, nos capítulos “Rios I”, “Rios II” e “Rios III”, conformando seu relato também como um testemunho de guerra que permite ao leitor associar sua experiência ao trauma coletivo da subalternização colonial que marca a história de Angola. História pessoal e história coletiva, trauma pessoal e trauma coletivo são tensionados na reflexão profunda que a voz narrativa realiza em sua negação a reduzir um ao outro. Ao mesmo tempo, essa negação estimula a voz narrativa a ir além desses traumas e dessas histórias para, por meio de um exercício que é de memória e de crítica, ir do presente ao passado para tentar conferir-lhe o sentido de um rio, de um caminho, “o caminho do homem na morte” (VIEIRA, 2006, p. 23), o qual outra coisa não é senão o caminho da busca pelo sentido da vida. No capítulo “Eu, o Kene Vua” a voz narrativa está elaborando seus traumas: a separação de Lopo Gavinho e o julgamento e a execução, por enforcamento, do sapador Batuloza. A infância a localiza como Kapapa ao lado do pai, o piloto negro Kimôngua Paka, e de Lopo Gavinho, capitão branco português do Ndalagando, espaço intermediário onde as culturas angolana e portuguesa, a tradição oral e a cultura escrita, se encontram e se confrontam na mundividência do garoto durante as subidas e descidas pelo rio Kwanza. As duas figuras são determinantes para a formação identitária de Kapapa, juntamente com as recordações de seu avô, também negro, Kinhoka Nzaji. A morte do pai e o início da luta pela independência levam Kapapa a abandonar Lopo Gavinho para juntar-se aos guerrilheiros angolanos. A separação do português, com quem mantinha uma ligação paternal, se configura como um trauma para Kapapa, pelo fato de resultar de uma imposição do partido decorrente da rivalidade instaurada pela guerra, mas, também, da violência racial do processo colonial. No percurso que realiza pela mata em direção ao acampamento dos guerrilheiros, Kapapa é perseguido pelos portugueses – os “tugas” – e consegue sair ileso. A experiência fará com que os guerrilheiros mudem seu nome para Kene Vua, o “sem azar”. No destacamento de Ndiki Ndia, Kene Vua assume a função de redator de atas, devido a seu perfil solitário e analítico, que o faz questionar sempre os rumos da luta. Por esse motivo, o sapador Batuloza o considera como intelectual – “... o Batuloza me xingou de intelectual. Que eu pensava muito demais; sempre com mania de olhar o céu e o ar e as coisas à toa, comia à parte; ficava calado...” (VIEIRA, 2006, p. 44). Após anos convivendo com os guerrilheiros no destacamento, vê o sapador Batuloza ser acusado de traição por ter roubado alimentos, julgado e receber sentença de morte por enforcamento. Kene Vua é incumbido da execução do sapador, o que se configura, para ele, como um novo trauma, já que tratava-se de um companheiro de luta.

O capítulo se inicia com a voz narrativa dialogando com o texto bíblico “Provérbios”, 30:18-19, aprendido com o português Lopo Gavinho de Caminha: “Estas três coisas me maravilham, e quatro há que não conheço. O caminho da águia no ar; o caminho da cobra na penha; o caminho do navio no meio do mar; e o caminho do homem com uma virgem”. (BÍBLIA, 2017). O diálogo estabelecido com o texto bíblico recebe a seguinte atualização na narrativa: “Três coisas maravilham na minha vida, a quarta não lhe conheço: voo da jamanta-negra no ar de chuva; rasto da jiboia no sussurro da pedra; sombra das águas em fundo do mar – o caminho do homem na morte ...” (VIEIRA, 2006, p. 23). Nessa recuperação do texto bíblico em diferença, a voz narrativa faz corresponder o “voo da jamanta-negra no ar de chuva” à imagem da águia no ar; o “rasto da jiboia no sussurro da pedra” à da cobra na penha; a “sombra das águas em fundo de mar” ao caminho do navio no meio do mar; e o “caminho do homem com uma virgem” ao “o caminho do homem na morte”. Reiterado ao longo do romance, esse diálogo se projeta na narrativa como metáfora do embate entre as presenças do pai negro Kimôngua Paka e do português Lopo Gavinho como as matrizes da constituição identitária de Kapapa. A enunciação contraditória e ambivalente da voz narrativa aponta para o fato de que sua constituição discursiva a identifica como um “terceiro espaço” (BHABHA, 1998, p. 67- 68), no qual as reivindicações hierárquicas e polarizadas entre culturas se tornam insustentável. Essa condição de construção discursiva, em que os significados culturais não têm unidade ou fixidez fará com que a voz narrativa se enuncie sem estabelecer juízo de valor entre as culturas, mostrando sua impossibilidade de compactuar com a ideia de dominação total de uma cultura sobre a outra. Assim, as memórias de Kene Vua explicitam a constituição híbrida de sua identidade, a qual reclama tanto as influências do pai e do avô angolanos quanto as do português na composição de sua ancestralidade. Por isso a separação do português, após a morte do pai, e em decorrência do fato de ele ter que assumir um lado na guerra pela independência de Angola, se constitui como uma perda emocional traumática para o narrador personagem, conforme podemos ver na seguinte passagem:

“Fica, ‘paz!...” (...) Não fiquei, saí do vapor, eu tinha de dar encontro em vida minha as maravilhas que meu avô falava, o caminho que esse branco sempre queria lhe pôr em boa lei, ordem e explicação. Fica, rapaz... Vem comigo!... – ainda oiço e me dói aquela palavra, rapaz, de ele lhe dizer assim, sem sentir o que ela falava por dentro e eu ouvia. E que era a distância da terra lá dele no norte da terra dele do rio dele até naquela beira-rio meu onde que rapaz, em meus ouvidos, sempre traduzo por filho, quem sabe tímida referência desse tuga meu amigo. A música que tinha por dentro dessa palavra era de outra canção: filho, eu ouvia, desafinado. Mas filho era coisa, palavra, eco, pensamento proibido em boca de branco, babando seu fio de triste solidão: Fica, rapaz! (VIEIRA, 2006, pp. 33-34, grifos do autor).

Observa-se, no fragmento, a súplica do português traduzida pela repetição dos sintagmas “Fica rapaz”, “rapaz” e “filho” ecoando, na memória e na organização discursiva da voz narrativa, o trauma de uma perda dolorosa. As narrativas que se elaboram sob o impacto do trauma apresentam, com frequência, a repetição e a metaforização como componentes estruturais.[4] Ao lidar com os acontecimentos traumáticos de sua vida através da construção de metáforas que são reiteradas ao longo do relato, a voz narrativa ilustra a maneira como elege lidar com eventos que perpassam o limite tolerável de representação.[5] Além do trauma da separação do português Lopo Gavinho, essa situação se repetirá em relação ao segundo trauma que marca a vida de Kene Vua, referente ao enforcamento do sapador Batuloza.

A presentificação dessas vozes em ruínas, no entanto, não amenizará o impacto do enforcamento do sapador na memória do narrador Kene Vua. Isso pode ser comprovado pelo fato de que, concluído o julgamento, o seu relato aparecerá de maneira sucinta, em linhas cuja objetividade contrasta com a profunda subjetividade que marca o tom da enunciação: “Fui lhe enforcar naquela manhã e a mata do Kialelu estava cheia de pássaros e flores, o mês já não lembro mais, não chovia porém, não tremi.” (VIEIRA, 2006, p. 47). A crueza do relato do enforcamento talvez decorra de uma constatação anterior a ele, feita pela voz narrativa, da consciência que adquire de sua proximidade do sapador, frutos que são do mesmo barro que os torna irmãos de história e de luta:

Hoje, aqui, ainda é tempo de calar e ser calado – ainda não ganhei minha voz de falar, gritar, procurar saber se quanto daquele barro que lhe fizeram com ele no Amba-Tuloza não saiu na cacimba e todos em nossa vida das matas, nosso caminho, nossos pambos desencruzilhados no tempo: o njila ia diiala um’alunga... (VIEIRA, 2006, p. 46, grifos do autor).

Daí o trauma do enforcamento do sapador, que faz com que, no presente em que rememora, elaborando sua experiência, a voz narrativa possa dizer: “Se fosse hoje ia lhe chamar de mukueto, meu irmão. E não ia lhe matar calado, ele não tinha nada que ter medo de morrer”. (VIEIRA, 2006, p. 64). Por isso, no capítulo “Eu, o Kapapa”, a voz narrativa anuncia estar pronta para “nascer de novo, sem mistura de ontem, a cada tiro da vida” (VIEIRA, 2006, p. 25). E pede ao comandante Ndiki Ndia para trocar seu nome de guerrilheiro e voltar a ser novamente Kapapa:

Agora, diante de mim, Kapapa eu sou: esfrego meus olhos ensonarados – minhas vidas não dão me berrida, não me enxotam. Nesta, d’agora, só os fuzileiros contam os grãos de areia da pegada que a maré não quis arredondar, meu passado sempre stá no altar da frente da casa do meu corpo, meu dilombe, onde que brilham de meu avô suas catanadas, de meu pai um cigarro apagado no escorregar do quimbundo em peleja de jacob com o anjo português, rio abaixo, mar acima. Que o futuro é o que vem atrás, me persegue sempre: nossa luta – um dia, sei, vai me agarrar: morreirei. (VIEIRA, 2006, p. 124).

Reassumir a identidade de Kapapa é uma forma lidar com as perdas que a guerra trouxe para sua vida: a de Lopo Gavinho e a de Batuloza. A lógica binária da guerra, que apenas admite a oposição entre aliados e inimigos, somente concede a Kene Vua/Kapapa o direito à ausência, à melancolia que o impulsiona a narrar sua história e, ao fazê-lo, a elaborar sua experiência traumática.

O livro dos rios apresenta-se como uma forma de organização que recusa os formatos tradicionais da narrativa para exprimirse enquanto experiência individual. A coesão e a coerência da narrativa tradicional é denunciada na violência com que silencia e marginaliza tudo o que não caiba na organização do seu discurso: as dúvidas e intersecções que compõem, no texto, a identidade de Kene Vua, como também as experiências dos derrotados, que a narrativa da memória coletiva negligencia, pois privilegia o olhar do vencedor.

Como um tipo de “escrita de si” (BUTLER, 2015), a voz narrativa se institui como Kene Vua-Kapapa para inaugurar um sujeito reflexivo, que conta sua história com um duplo valor ético: o de permitir-se falar sobre si mesmo e se reconstruir nesse processo e, ao mesmo tempo, o de estabelecer uma relação com seu interlocutor, buscando agir sobre ele.

Essa opção decorre do fato de que a experiência prosaica do homem moderno, marcada pela violência, em suas diversas formas de manifestação, coloca em xeque as formas tradicionais de representação. Márcio Seligmann-Silva, em suas reflexões sobre a Shoah, chama nossa atenção para o fato de que, na atualidade, “não há mais espaço para uma dicção puramente lírica – assim como a prosa puramente realista também é descartada”. (SELIGMANNSILVA, 2000, p. 73). Híbridas, as formas literárias assumem várias possibilidades de concretização, afastando-se da concepção tradicional de representação que incluía não apenas os gêneros canônicos da literatura, como também a historiografia historicista desenvolvida no século XIX.

Como salienta Seligmann-Silva, a representação envolve um momento imediato (a intuição) e outro mediato (a articulação conceitual) que traz consigo o lado universal da representação. Para o estudioso, no entanto, na percepção da realidade como catástrofe tanto a intuição imediata da realidade quanto a linguagem a ser utilizada para expressá-la são postas em questão. A catástrofe impõe a reorganização da reflexão sobre o real e sobre a possibilidade de sua representação. Isso porque a catástrofe impõe uma nova concepção de representação que permita a sua inclusão. Embora suas reflexões tomem como objeto a Shoah, acreditamos que elas podem nos auxiliar na abordagem da obra que estamos analisando, pois pode nos permitir compreender as maneiras pelas quais a voz narrativa escolhe grafar suas memórias para nos contar uma história que vai além da nossa capacidade de imaginar.

A narrativa de Kene Vua-Kapapa, dizendo com Shoshana Felman, nos instrui “sobre as formas pelas quais o testemunho se tornou uma modalidade crucial de nossa relação com os acontecimentos de nosso tempo” (FELMAN apud SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 87). Como testemunho, essa escrita incorpora o passado dentro de uma memória voltada para o futuro, a qual possibilita uma narração que põe em perspectiva a história, a fim de permitir o encontro do sujeito consigo e com o outro.

É nesse sentido que Jeanne-Marie Gagnebin vai postular que aquele que lê a história se torna, também, testemunha, pois, ao acolher narrativas insuportáveis, constitui um elo no processo de transmissão. Isso porque “somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente”. (GAGNEBIN, 2006, p. 57).

Considerações finais

Vimos que as escritas literárias de Pepetela e Luandino Vieira desarticulam a construção do texto vista como resultado de relações harmônicas entre indivíduo e história. Ambas as escritas apontam para as tensões e dissonâncias que assomam dessa relação. Para os escritores, os descompassos entre a realidade e sua representação exigem reformulações e rupturas de modelos, a fim de que a escrita possa se realizar como concretização histórica que recusa a síntese positiva, a totalidade.

Nesse sentido, as narrativas A gloriosa família e O livro dos rios podem ser pensadas como formas de escrita que se constroem a partir daquela condição antagônica proposta por Adorno para a obra de arte, de criticar a civilização e, ao mesmo tempo, fazer parte dela. Para Adorno, “através da forma, a arte participa na civilização, que ela critica mediante a sua existência. (...) Forma e crítica convergem.” (ADORNO, 1988, p. 165). Nessa convergência indicada pelo filósofo, Jaime Ginzburg identifica “a impossibilidade – tanto no caso da forma artística, como no caso do trabalho crítico –, de estar fora da história, fora da sociedade, fora das contradições dos processos concretos da existência coletiva”. (GINZBURG, 2010, p. 184).

Constituídas de modo aberto e fragmentário, as narrativas de Pepetela e Luandino Vieira se distinguem da obra configurada como totalidade fechada e assumem uma condição melancólica. A melancolia resulta da impossibilidade de síntese que a fragmentação oferece, do fato de os elementos das narrativas se relacionarem de múltiplas maneiras entre si e com o todo, transformando a atribuição de sentido para a experiência em sensação de estranhamento e de perplexidade diante da precariedade e da incerteza da realidade.

A ideia da arte como estranhamento remete à concepção estética adorniana. Para Jaime Ginzburg, na base do pensamento de Adorno estaria o impacto da violência histórica que marca o século XX. O estudioso explica que, para Adorno, a presença de cenas de violência nas obras de arte não poderia ser lida fora de um contexto histórico. Por isso, a perspectiva adorniana da arte apontaria para a convergência entre forma e crítica: “ao mesmo tempo em que não cabe representá-la [a violência] de modo superficial e direto, para não trivializá-la nem reduzi-la, é necessário reinventar a linguagem para elaborar condições de lidar com o que foi vivido.” (GINZBURG, 2010, p. 192). Conforme salienta Ginzburg, Adorno defende a renovação de parâmetros na arte como estratégia para que as catástrofes que marcaram o século XX não se tornem continuidade nem regra. Em seu pensamento estaria a impossibilidade de dissociar, no debate conceitual, os campos estético, ético e político.

Como procuramos mostrar neste estudo, na escrita literária de Pepetela e Luandino Vieira encontramos essa perspectiva de construção que se processa a partir da indissociabilidade entre os campos estético, ético e político. Suas escritas questionam a capacidade de representar o passado pelo recurso às formas convencionais de escrita, rompem com as estruturas canônicas de representação, suspendem as referências de delimitação da realidade e da ficção e, justamente por isso, refletem criticamente, e melancolicamente.

Referências

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Posição do narrador no romance contemporâneo. Trad. Modesto Carone. In: BENJAMIN, W. et al. Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1980. p. 269-273 (Coleção “Os Pensadores”)

ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008.

BARTHES, Roland. Aula. Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Cultrix, 1978.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sério Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Edição, apresentação e tradução de João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. BENVENISTE, E. Estrutura das relações de pessoa no verbo. In: Problemas de Linguística Geral I. 3 ed. São Paulo: Pontes, 1991. BENVENISTE, E. O aparelho formal da enunciação. In: Problemas de Linguística Geral II. 3 ed. São Paulo: Pontes, 1989.

BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

Bíblia Online. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/ hb/12/7-8. Acesso em 04 Nov. 2017.

BORGES, António Cristiano. De Jim Crow a Langston Hughes. “Quanto a música começou a ser outra. Dissertação (Mestrado em Estudos Anglísticos. Especialização em Estudos Americanos). Universidade de Lisboa. Faculdade de Letras. Departamento de Estudos Anglísticos. 2007.

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

CADORNEGA, António de Oliveira. História geral das guerras angolanas. (1680). Anotado e corrigido por José Matias Delgado.Tomos I, II e III. Agência Geral do Ultramar. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1972.

CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.

 CHAVES, Rita. A formação do romance angolano. São Paulo: FFLCH-USP, 1999.

CHAVES & MACÊDO, Rita, Tania, (Orgs). Portanto... Pepetela. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

CORIOLANO, Ericsson Venâncio. O absoluto enquanto processo em Heráclito e Hegel (uma leitura a partir dos fragmentos de Heráclito e do prefácio da Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel). In: Polymatheia – Revista de Filosofia. Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, v. I, nº 1, 2005, pp. 29-40. Disponível em: http://www. uece.br/polymatheia/dmdocuments/polymatheia_v1n1_absoluto_ enquanto_processo.pdf. Acesso em: 11 janeiro 2018.

FRANÇA, Susani Silveira Lemos. Os reinos dos cronistas medievais (século XV). São Paulo: Annablume; Brasília: Capes, 2006.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: Obras Completas. Além do princípio de prazer, Psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Editora Imago, v. 18, 2017. pp 5-47. Disponível em: http://conexoesclinicas.com.br/wp-content/uploads/2015/01/freud-sigmund-obras-completas-imago-vol-18-1920-1922.pdf. Acesso em 22 novembro 2017.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia, 1917 [1915]. In: A história do movimento psicanalítico. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 243-263. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2009.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.

GINZBURG, Jaime. Violência e forma em Hegel e Adorno. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 16, 2010. Disponível em: http://www.abralic.org.br/revista/2010/16. Acesso em: 30 janeiro 2016.

GINSBURG, J. Autoritarismo e literatura – a história como trauma. In: Revista Vidya. Universidade Franciscana. V. 19, n. 33, 2000. pp. 43-52. Disponível em http://sites.unifra.br/Portals/35/Artigos/2000/33/ autoritarismo.pdf. Acesso em: 7 de janeiro de 2016.

HUGHES, Langston. “The Negro Speaks of Rivers”. In: Collected Poems. Copyright © 1994 by The Estate of Langston Hughes. Reprinted with the permission of Harold Ober Associates Incorporated. Disponível em: https://www.poetryfoundation.org/poems/44428/thenegro-speaks-of-rivers. Acesso em 18 jan 2018.

JIMENEZ, Marc. Para ler Adorno. Tradução de Roberto Ventura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

KHOTE, Flávio René. Benjamin & Adorno: confrontos. São Palo: Ática, 1978.

LAGES, Susana Kampff. Entre diferentes culturas, entre diferentes tradições – o pensamento constelar de Walter Benjamin. In: Cadernos de Letras. Departamento de Letras Anglo-Germânicas da UFRJ. n. 23, p. 49-67, jan.-dez. 2007. Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/anglo_ germanicas/cadernos/numeros/0X2007/textos/cl23052007susana. pdf. Acesso em 20 dezembro 2017.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, Editora da Unicamp, 1992.

MATA, Inocência. Refigurando o espaço da nação. In.: PADILHA, Laura Cavalcante; RIBEIRO, Margarida Calafate (Org.). Lendo Angola. Porto: Edições Afrontamento, 2008. MATA, Inocência. Ficção e história na literatura angolana – o caso de Pepetela. Luanda: Editora Mayamba. 2010.

OTTE, Georg; VOLPE, Miriam Lídia. Um olhar constelar sobre o pensamento de Walter Benjamin. In: Revista Fragmentos. Revista de Língua e Literatura Estrangeira da UFSCAR. N. 18, jan-jun. 2000, p. 35- 47. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/ article/view/6415/5984. Acesso em 20 dez 2017.

PADILHA, Laura Cavalcante. Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. 2ª ed. Niterói: EdUFF; Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2007.

PADILHA, Laura Cavalcante; SILVA, Renata Flávia da. De guerras e violências: palavra, corpo, imagem. 1ª. ed. Niterói: ED. da Universidade Federal Fluminense (EDUFF), 2011.

PEPETELA. A gloriosa família. O tempo dos flamengos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos históricos, 2 (3). Rio de Janeiro, 1989.

RICOEUR, Paul. Memória, história, esquecimento. 2003. Disponível em: http://www.uc.pt/fluc/uidief/textos_ricoeur/memoria_historia. Acesso em 10 junho 2017.

RUI, Manuel. Eu e o outro – O invasor (ou em três poucas linhas uma maneira de pensar o texto). São Paulo: Centro Cultural, 1985. (Comunicação apresentada no Encontro Perfil da Literatura Negra, em 23/05/1985).

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. In.: NESTROVSKI, Arthur, SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.) Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000. SELLIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma. A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. In.: Revista de Psicologia Clínica. Rio de Janeiro. Vol. 20, n. 1, p. 65-82, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103- 56652008000100005&script=sci_arttext. Acesso em 21 janeiro 2016.

VIEIRA, Luandino. De rios velhos e guerrilheiros. I - O livro dos rios. Angola: Editorial Nzila, 2006.

TABORDA DA SILVA, Elisa Maria. Estética do trauma e poética da relação: uma aproximação possível. In: Cadernos Cespuc de Pesquisa. n. 27, 2015. pp. 13-35. Disponível em: file:///C:/Users/ Dell/Downloads/11650-41728-1-SM.pdf. Acesso em 20 novembro 2017.

TABORDA DA SILVA, Elisa Maria. O livro dos rios: trauma e representação da voz subalterna na escrita literária de Luandino Vieira. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas. Belo Horizonte: PUC Minas, 2016. VIEIRA, José Luandino. O livro dos rios. Lisboa: Caminho, 2006. (Primeiro volume da trilogia De rios velhos e guerrilheiros).

WATT, Ian. O realismo e a forma romance. In.: A ascensão do romance. Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

WHITE, Hayden. Teoria literária e escrita da história. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1991, p. 21-48. Disponível em: http://www.academia.edu/4043144/. Acesso em: 2 dez 2015.

Notas

[1] MOREIRA, Terezinha Taborda. Violência e trauma na escrita literária angolana. In: MOREIRA, Terezinha Taborda; ABREU, Denise Borille de. Tramas e traumas: escritas de guerra em Angola e Moçambique. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2018, pp. 53-84. E-book (270 p.: il.) ISBN: 978-858229-096-5. Disponível em: https://issuu.com/cespuc-centrodeestudosluso-afro-bra/docs/tramas_e_traumas.

[3] Para aprofundamento da noção de narrador bastardo, confira: BORGES, Telma. “Narradores bastardos – Salman Rushdie e Guimarães Rosa”. (2015).

[4] Para uma reflexão mais profunda sobre as narrativas de trauma, recomenda-se a leitura do capítulo intitulado “Tecendo as tramas da teoria: sobre a teoria do trauma e as narrativas de vida”, de Denise Borille de Abreu, publicado neste livro.

[5] Para uma maior compreensão do processo de escrita da obra O livro dos rios, de Luandino Vieira, como uma narrativa de trauma, recomendam-se os estudos de Elisa Maria Taborda da Silva, intitulados “Estética do trauma e poética da relação: uma aproximação possível” (2015) e O livro dos rios: trauma e representação da voz subalterna na escrita literária de Luandino Vieira (2016).

______________________________

* Terezinha Taborda Moreira é Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte. Pesquisadora CNPq-Nível 2. Este trabalho é parte das reflexões desenvolvidas no âmbito do Projeto de Pesquisa “Linguagem e trauma na escrita literária angolana”, com o apoio do CNPq. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

Texto para download