Escrever, conhecer: a procura da sociedade africana na poesia de Paula Tavares1

 

Bernardo Nascimento de Amorim*

1. Já fazem mais de trinta anos que Michel Laban entrevistou a então jovem poeta Paula Tavares para o seu incontornável trabalho de “encontro” com escritores dos países africanos de língua portuguesa.2 O ano era 1988, quando Ritos de passagem (1985) ainda era o único livro publicado pela autora. Depois, como se sabe, vieram outros, de poesia e de prosa, solidificando a carreira da escritora e dando ao seu nome um lugar de singular e merecido destaque, no âmbito das letras de língua portuguesa.

Tavares manifestava, na citada entrevista, uma compreensão bastante acurada a respeito do lugar de enunciação de seus poemas, atentando para algumas das contradições ou tensões que ali se localizavam. Referindo-se à Huíla, região no sul de Angola, onde nasceu, a autora destacava o papel que tal território teria desempenhado na configuração de sua poética, afirmando que a “procura” de sua poesia estaria ligada àquele lugar, aos seus “cheiros”, “sons” e “canções”, os quais a teriam marcado “muito do ponto de vista estético” (TAVARES, 1991, p. 849). Significativamente, entretanto, a autora também dizia de um certo estranhamento em relação a esse lugar, formado, em suas palavras, por “duas sociedades bem distintas”, a “sociedade europeia”, de um lado, e a “sociedade africana”, de outro, destacando que esta última seria objeto de certa incompreensão, uma vez que constituída por “coisas” que lhe “escapavam”, mas que muito “desejava perceber” (TAVARES, 1991, p. 849).

A vontade de aproximação da poesia de Tavares em relação àquela “sociedade africana” é bastante evidente, em toda a sua obra, correspondendo mesmo ao que a autora afirma, na entrevista, quando ainda estava a apontar alguns dos rumos que percorreria a sua poética. Como outros poetas que vieram antes dela, Tavares parecia acreditar que era preciso valorizar a ligação com um mundo que havia se tornado distante, com o qual se perdera uma conexão mais íntima, a qual importava, de algum modo, recuperar. Falava a poeta de sua ligação de “infância” e “juventude” (TAVARES, 1991, p. 849) com aquele mundo, ressalvando, todavia, que se tratava de uma “ligação de férias” (TAVARES, 1991, p. 856).

O ano de lançamento do livro de estreia era 1985. Três anos depois se fazia a entrevista. Angola vivia uma guerra-civil que já durava cerca de dez anos, assinalando o pós-independência com conflitos internos, fratricidas. Grupos armados disputavam o poder, com antagonismos para os quais muito contavam a diversidade de etnias, costumes e níveis de aculturação, no território nacional, em um plano, e a divisão do globo entre zonas de influência dos Estados Unidos e da União Soviética, em outro. No entanto, não era desses conflitos que falava a poeta. Não era a sua poesia marcada pela “‘procura da vertente revolucionária’” (TAVARES, 1991, p. 854), que ainda se impunha como uma exigência para os autores de sua geração, quando iniciavam suas carreiras. Voltando-se para um tempo passado, senão para temporalidades outras, era algo que havia marcado a sua experiência subjetiva o que a autora buscava expressar poeticamente, acreditando que fazê-lo seria uma forma de aproximação e melhor conhecimento daquilo que associava à “sociedade africana”.

2. Se nos deparamos com uma espécie de consciência da necessidade de um certo retorno, de uma certa retomada, em relação a uma determinada dimensão de Angola e de África, por parte da poeta, é certo, também, por outro lado, que ela se faz acompanhar da experiência concreta e consciente de um afastamento em relação ao objeto que se deseja recuperar, o qual se reveste de uma sorte de estranheza. Acontecia com Tavares, assim, o que outros autores já haviam experimentado antes dela, lembrando o que Manuel Ferreira, ainda nos anos 1970, dizia serem os “efeitos da aculturação” (FERREIRA, 1975, p. 25) sentidos por muitos expoentes da “poesia das áreas africanas de expressão portuguesa” (FERREIRA, 1975, p. 26). Estranhamento e algum “espanto” (TAVARES, 1991, p. 850), com efeito, podem ser vistos em um emblemático poema de Noémia de Sousa, escrito no final da década de 1940, apresentando-se nos seguintes termos:

Ó minha África misteriosa e natural,
[...]
Como eu andava há tanto desterrada,
de ti alheada
[...]
por estas ruas da cidade!
engravidadas de estrangeiros
[...]
Como se não existisse para além
dos cinemas e dos cafés, a ansiedade
dos teus horizontes estranhos, por desvendar...
(SOUSA, 2016, p. 129).

Neste caso, como se vê, é em meio a uma atmosfera de mistério que o sujeito poético se volta para os “horizontes estranhos” do mundo africano, ao qual sente estar ligada a sua identidade, que se deseja afirmar. No âmbito da poesia de Sousa, escrita em tempos de engajamento nacionalista e negritudinista, em que os poetas pareciam querer participar de um processo orientado para a “criação de identificação colectiva” (MONTEIRO, 2007, p. 233),3 a divisão se resolve pela afirmação explícita do pertencimento, com a indicação de que se trata de um retorno à origem do sujeito, cujo “sangue negro” releva destacar:

Mãe, minha Mãe África
das canções escravas ao luar,
não posso, não posso repudiar
o sangue negro, o sangue bárbaro que me legaste...
Porque em mim, em minha alma, em meus nervos,
ele é mais forte que tudo,
eu vivo, eu sofro, eu rio através dele, Mãe!}
(SOUSA, 2016, p. 130).

3. Cerca de quarenta anos depois da redação dos poemas de Sangue negro, as soluções apresentadas pela poesia de Tavares, como se verá mais adiante, mostram-se um pouco diferentes. Que as coisas aqui também se passem como se ela estivesse engajada em promover uma espécie de “‘retorno às fontes’” (CABRAL, 2008, p. 213), entretanto, não me parece equivocado cogitar. A expressão citada aparece em um texto da década de 1970 de Amílcar Cabral, o qual valerá a pena reler. Em “O papel da cultura na luta pela independência”, escrito em meio aos conflitos que levariam à conquista da independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, na mesma altura em que se travavam os conflitos de idêntica natureza em Angola, o líder do PAIGC usava termos de origem marxista para caracterizar tais fontes. Em suas palavras, o retorno em questão diria respeito ao movimento de ir ao encontro de um universo específico, o das “massas populares” (CABRAL, 2008, p. 213), cuja “estrutura social” seria a “base principal da cultura” (CABRAL, 2008, p. 221), a sua “fonte” (CABRAL, 2008, p. 213).

Certamente, seria difícil pensar que o distanciamento de que falava Tavares, na entrevista, não fosse devido ao processo de colonização, o qual fizera sentir com muita força a sua interferência na “estrutura social” de certos “grupos dominados” (CABRAL, 2008, p. 207), como dizia Cabral. Segundo o raciocínio deste autor, um ponto importante para a caracterização da dinâmica das sociedades africanas seria a existência e o conflito de classes, no contexto do que chama de “domínio imperialista” (CABRAL, 2008, p. 205). É nesse campo, precisamente, que se apresentaria um problema, quando se trata da aproximação do escritor em relação àquela “fonte” ou “estrutura”. Acontece que o escritor, o intelectual, pertencente aos “grupos letrados” (PORTUGAL, 2007, p. 295) de sua nação,4 sendo um membro da “pequena burguesia autóctone” (CABRAL, 2008, p. 212), deve, necessariamente, fazer um movimento de travessia, se quiser se aproximar das “massas populares trabalhadoras do campo e dos centros urbanos” (CABRAL, 2008, p. 214). O caso de Tavares, assim como o de Sousa, situado a partir desta perspectiva, então, seria o de uma figura influenciada pela “cultura da potência colonial” (CABRAL, 2008, p. 211), mas interessada em se aproximar, em particular, das “grandes massas rurais”, cujo “patrimônio cultural” (CABRAL, 2008, p. 212) se pretenderia valorizar.

De acordo com Cabral, tal experiência de aproximação, contudo, não se daria sem conflitos, nomeadamente, aqueles atinentes ao âmbito da identidade do sujeito. O escritor, em particular, experimentaria uma condição de “‘marginalidade’” (CABRAL, 2008, p. 214), já que situado entre dois pólos opostos do espectro social. Se, na altura em que Cabral escrevia, tais pólos poderiam ser descritos como sendo formados por uma “classe dominante estrangeira”, de um lado, e pelas “massas populares” (CABRAL, 2008, p. 214), do outro, agora, nos termos de Tavares, caberia identificá-los como sendo a “sociedade europeia”, de um lado, e a “sociedade africana”, de outro. A poeta, não sendo nem completamente parte de uma nem completamente parte da outra, considera-se demasiado afastada de uma delas. Ao mesmo tempo em que constata o seu afastamento, indica, todavia, o seu desejo de se tornar mais íntima daquele mundo que chama de “sociedade africana”.

4. Se continuarmos pensando um pouco mais junto com Cabral, seria algo da cultura das “massas populares”, entendendo-se por cultura uma “síntese dinâmica da realidade material e espiritual da sociedade” (CABRAL, 2008, p. 220-221), através da qual se expressa uma identidade, o que interessaria à autora. Como se concretizaria, como se daria forma, textualmente, nessa poesia, à “procura” da “sociedade africana”, de sua “realidade material e espiritual”, é, então, o que caberia saber. Por certo, ela assume diferentes formas, dando origem a sínteses tão dinâmicas quanto a própria cultura de que se busca aproximação. Tentar identificar algumas delas, com a leitura de alguns poemas, entretanto, pode ser um exercício interessante. Começo com “Cerimônia de passagem”, poema que tem a singularidade de abrir o primeiro livro da poeta:

“a zebra feriu-se na pedra
a pedra produziu lume”

a rapariga provou o sangue
o sangue deu fruto

a mulher semeou o campo
o campo amadureceu o vinho

o homem bebeu o vinho
o vinho cresceu o canto

o velho começou o círculo
o círculo fechou o princípio

“a zebra feriu-se na pedra
a pedra produziu lume”
(TAVARES, 2011, p. 15).
 

Sem pretender realizar uma análise minuciosa do texto, há de se reparar em alguns de seus elementos. Chama a atenção, em primeiro lugar, a presença das aspas no dístico inicial, o qual se repete, no fechamento do poema. Elas parecem sugerir que se trata de um discurso que o poema incorpora, mas que é preexistente a ele, como se fosse parte de um patrimônio cultural específico, que a poeta recolhe e com o qual se põe a dialogar, como se estivesse a glosá-lo. Neste caso, para além de sugerir uma conexão entre o texto e um certo contexto, uma certa cultura, o poema já começaria causando algum estranhamento, chamando a atenção do leitor para o fato de que está diante de uma estrutura que não lhe é familiar, de um mundo que não é o seu. A ideia de que se está diante de uma “cerimônia”, forma própria da vida social de um grupo, com suas convenções específicas, reforçaria ainda mais essa impressão.

Ainda com relação ao primeiro dístico, no que diz respeito ao seu conteúdo, há de se destacar a presença de uma espécie de “passagem”, na relação entre os dois versos que compõem a estrofe. A ação sofrida pela zebra, no contato com a pedra, faz com que esta última produza algo, mais precisamente, o fogo, como se da zebra se passasse ao fogo. A pedra, então, aparece como o elemento que liga os outros dois, zebra e lume, em uma dinâmica que se repete, nas demais estrofes. Na segunda, com a presença do elemento humano, tem-se o sangue como aquilo que faz a conexão entre a rapariga e o fruto, sendo ele que produz (“deu”) o fruto, como a pedra produzia o lume. Na terceira, o campo é o elemento que faz a ligação entre a mulher e o vinho, sendo ele que transforma (amadurece) o vinho, o que não deixa de ser também um tipo de produção.

A partir da quarta estrofe, que corresponde à metade do poema, o elemento feminino (a rapariga e a mulher) dá lugar à presença de figuras masculinas (o homem e o velho). A estrutura básica da presença de um elemento de ligação entre outros dois, no entanto, repete-se. No quarto dístico, este elemento é o vinho, que faz a conexão entre o homem e o canto, sendo o que transforma (cresce) o canto. No quinto, o círculo é o que conecta o velho e o princípio, não propriamente produzindo o princípio, mas o alterando, de maneira significativa, pois se trata de uma “passagem” final, em que há um fechamento (“o círculo fechou o princípio”). Que este tenha que ser relativizado, pois é a própria natureza da vida o que se sugere ter um caráter circular, com o fim e o início se tocando, não é sem importância, todavia.

Encerrando o poema, a última estrofe retoma, como já se disse, o dístico inicial. Apresenta-se, assim, na estrutura mesma do texto, a circularidade em que se tocara na estrofe anterior. O tempo da transformação das idades e o da repetição se conjugam, de modo a sugerir que as transformações, como a da rapariga em mulher, a do homem em velho, fenômenos experimentados individualmente por cada rapariga, por cada homem, são também fenômenos supraindividuais, próprios da vida e da natureza, cuja força é fazer germinar novas raparigas, novos frutos, novos homens, em múltiplas e infinitas passagens. Estas, por sua vez, caberia à cultura organizar, ou a cada cultura, sociedade ou civilização, com seus modos específicos, seus ritos e cerimônias próprios, constituintes de sua identidade.

Em meio ao estranhamento do contato com um universo cuja estrutura não se apresenta como algo familiar, o que se pode ter são sugestões, vislumbres. A “realidade material e espiritual” que aqui se procura encontrar, se já era fonte de “incompreensão” e “espanto” (TAVARES, 1991, p. 850), por parte da poeta, mais ainda o é para o leitor que não tem a experiência concreta dela. A sensação que se tem é a de que o texto se apresenta dotado de certa “intraduzibilidade”, da qual falava já Pires Laranjeira, ainda na década de 1970, quando apontava como a “provocação mais imediata” do texto literário africano de língua portuguesa, justamente, “dificultar a leitura dos não-africanos” (LARANJEIRA, 1985, p. 12).

Estarmos diante de algumas das formas tradicionais de uma certa “sociedade africana”, de que fazem parte os “rituais de iniciação, rituais de passagem” (TAVARES, 1991, p. 850), certas “mundividências regionais” (FERREIRA, 1975, p. 23), é o que se espera. Como indica a autora, entretanto, que não esconde ter um “conhecimento directo limitado” do “mundo rural” (TAVARES, 1991, p. 856) que procura trazer para a sua poesia, é com a potência da invenção que se trabalha, também, em grande medida.5 Não se tratando de representação, o que se tem, tanto por parte da autora quanto por parte do leitor, seria, de fato, uma tentativa de aproximação, concebida como uma forma de conhecimento, pois passível de levar a alguma “compreensão”, “cheia de ternura” (TAVARES, 1991, p. 850), como quer a poeta, sobre como vivem e pensam certos “povos” ou “grupos humanos” (CABRAL, 2008, p. 207).

5. Avançando bastante no tempo, encontro em Ex-votos, livro publicado em 2003, outro poema que me parece providencial comentar. Seu título é convidativo. Trata-se de “Identidade”, composição de apenas quatro versos:

Quem for enterrado
Vestindo só a sua própria pele
Não descansa
Vagueia pelos caminhos.
(TAVARES, 2011, p. 169).

Como em “Cerimônia de passagem”, há algo, aqui, que provoca certo estranhamento. O poema lembra a estrutura dos provérbios, cuja compreensão, como se sabe, depende muito do contexto em que são produzidos, tratando-se de textos que preservam um caráter enigmático para ouvintes ou leitores não familiarizados com as regras e convenções da comunidade em que são veiculados originalmente. A impressão que se experimenta é a do vislumbre de algo que proviria de uma certa sabedoria popular, pois que se trata de uma espécie de ensinamento. Não se tem a voz de um indivíduo em particular, mas uma fala que poderia corresponder a um discurso corrente em uma dada comunidade, o qual se poderia imaginar ser transmitido de geração em geração, dos mais velhos para os mais novos, de boca em boca, como é próprio dos grupos cuja cultura é marcada pela oralidade.

Do mesmo modo como no poema anterior, não se tem uma voz em primeira pessoa, que se proponha a dizer de si. Fala-se, com efeito, de algo que parece concernir a um coletivo, mais do que a um indivíduo, com um conteúdo que reforça a necessidade de ligação entre indivíduo e grupo, sujeito e cultura. A “identidade” em questão, se for assim, não diria respeito a um indivíduo, que a buscasse, por exemplo, em uma jornada de autoconhecimento. Sugere-se, antes, que se pode tratar da concepção de um grupo sobre o que seria a identidade, sobre como determinado grupo conceberia e experimentaria tal conceito.

Que tal grupo não deva ser culturalmente associado ao ocidente, à civilização europeia ou ao espaço de origem da língua que se utiliza, no poema, parece evidente. Mais uma vez, então, estaríamos diante daquela “sociedade africana”, de que a poeta diz querer se aproximar. Seria nela, propriamente, que o indivíduo que morre e é enterrado sem os adereços que caracterizam o seu pertencimento a uma determinada coletividade, como diz o poema, “não descansa”. Seria a ausência das marcas da sua cultura, de tudo aquilo que não é apenas o seu próprio corpo, “a sua própria pele”, o que determinaria uma forma de isolamento do sujeito, de não integração, a qual o privaria, como indivíduo, do descanso após a morte.

Como é próprio dos provérbios, haveria, aqui, uma moral, que por si mesma já não é individual, mas coletiva. Que ela reforce a noção de pertencimento do indivíduo à cultura, a sua participação em um corpo coletivo, que transcende a sua própria individualidade, não é, deveras, pouco significativo. Remetendo a uma determinada “realidade material e espiritual”, para lembrar os termos de Cabral, sugere-se a importância da relação entre o indivíduo e o grupo para que haja harmonia, tanto no plano individual quanto no coletivo, envolvendo-se o próprio cosmos, bem como a vida após a morte, na questão. Desta perspectiva, seria a ordem do cosmos, efetivamente, o que determinaria que o indivíduo não pertencente ao grupo, o sujeito desgarrado do coletivo, não pudesse descansar, após cumprida a sua jornada entre os vivos.

6. Diferentemente dos dois poemas que comentei, até agora, o terceiro e último que trago apresenta um sujeito em primeira pessoa, falando de si, o que, diga-se de passagem, não é nada raro, na poesia de Tavares, cujo caráter lírico não deixa de ser marcante. O poema, no entanto, tem uma estrutura pouco comum, na obra da autora, por se aproximar muito do texto em prosa. Sem título, foi publicado em O lago da lua, segundo livro da poeta, editado em 1999:

MUVI, O SÁBIO, usa a minha cabeça como seu pau
de adivinhar. Faz-lhe perguntas simples enquanto
persegue cada marca de dor. Lê meus olhos cegos
e estremece. A lua passeia-se, descalça e desnuda,
no pico alto da colina. Tem uma mancha sombria
e velada como uma escarificação retocada pelo
tempo. É o reflexo aumentado da minha própria
cicatriz azul, disfarçada debaixo do colar de contas
triangular, colar dos dias de luto, que passei a usar
todos os dias. Contas tecidas uma a uma, com mil
mãos de seda seca perdidas nas noites antigas de
acender fogueiras. Muvi, o sábio, escolhe a minha
cabeça e roda-a entre as mãos sem parar. Espanta
os espíritos, os do lar, e os que ainda não se tinham
dado a conhecer.
(TAVARES, 2011, p. 76).

Uma primeira coisa a se notar, no poema, é a presença de duas figuras humanas, a da própria voz, em primeira pessoa, e a de Muvi, apresentado como “o sábio”. Embora não haja indicações precisas acerca do gênero do sujeito lírico, o universo poético do livro, levando-se em consideração outros poemas, sugere que se trate de uma mulher, a qual estaria experimentando um grande e prolongado sofrimento. As duas figuras interagem, desempenhando Muvi a função de uma espécie de curandeiro, o qual é, ao mesmo tempo, uma sorte de adivinho e sacerdote, como acontece comumente com aqueles que são considerados sábios, em determinadas culturas. Muvi atua, em específico, com a “cabeça” do sujeito lírico, fazendo dela o instrumento com e sobre o qual promoverá a sua intervenção. O sábio, interrogador, faz “perguntas simples” diretamente à cabeça do sujeito poético, observando atentamente as “marcas” que ali se apresentam, referenciadas como “marcas de dor”. Mencionando-se também os olhos da mulher, ficamos sabendo que se trata de “olhos cegos”, os quais fazem estremecer o sábio, em reação que parece reforçar a agudeza do sofrimento em jogo.

No quarto verso, uma terceira figura de relevo aparece, no poema. Trata-se da lua, importante elemento do livro, o qual, personificado, apresenta-se em uma relação de espelhamento com o sujeito poético. Sua “escarificação”, uma “mancha sombria e velada”, mostra-se como “o reflexo aumentado” da “cicatriz azul” da mulher, a qual procura “disfarçar” as marcas de suas feridas debaixo de um “colar de contas triangular”. Paradoxalmente, todavia, o objeto usado para o disfarce não esconde, mas revela o sofrimento, pois se trata de um colar associado ao luto, afirmando-se ser objeto culturalmente reservado aos “dias de luto”. A sua função cultural, que se destaca, ainda se reforça com a menção às “mil mãos de seda seca perdidas nas noites antigas de acender fogueiras”, indicando-se que se trata de objeto produzido coletivamente, por um grupo de pessoas que se reúne em volta de fogueiras, reproduzindo o modo de produção de outros tempos, de “noites antigas”.

É com relação à função do colar, delimitada culturalmente, entretanto, que se manifesta um desvio do sujeito. O uso que faz do objeto, de fato, contraria o que se espera, indicando que não mais se tem um funcionamento que se imagina harmonioso, para o grupo ou a sociedade de que se fala, na relação do indivíduo com a dor, com o luto. Contrariando a prescrição, a qual se ligaria a um bom funcionamento do próprio cosmos, o sujeito poético teria passado “a usar todos os dias” aquele colar, o que indica se tratar de dor que ultrapassa o que a comunidade prevê, espera e aceita.

Por se configurar uma experiência individual desmedida, então, é que a intervenção do sábio, que seria também a intervenção da comunidade, faz-se necessária, em benefício tanto do sujeito quanto do grupo a que pertence. É a situação de desarmonia que requer a intervenção do coletivo, para que as coisas voltem ao seu lugar, para que o sujeito encontre acolhida e remédio para o seu sofrimento. Ao final do poema, ainda, não é sem relevo notar que a ação de Muvi é uma ação de exorcismo. É no contato com dimensões outras da existência, refutadas pelo que se poderia dizer ser um certo discurso hegemônico da cultura ocidental, que se pode promover a volta da ordem para a vida do sujeito lírico, de modo a por termo a seus “dias de luto”. Que a ação do sábio interfira em um plano que transcenda a vida, já que se trata de espantar “espíritos”, não seria dado sem importância, tendo em vista a aproximação da “sociedade africana” de que temos falado. Neste âmbito, com efeito, no âmbito da “realidade material e espiritual” que se tangencia, a existência não há de se limitar ao que se passa entre os vivos.

7. Não é apenas de integração à sociedade, em particular à “sociedade africana”, contudo, que trata a poesia de Tavares. Embora a sua poética esteja, conforme tentei demonstrar, desde os seus princípios, interessada em uma aproximação daquele universo que o “domínio imperialista” (CABRAL, 2008, p. 210), nos termos de Cabral, sistematicamente tratou de tornar subalterno, relegando ao “lugar do Outro” (RIBEIRO, 2017, p. 78);6 embora ela esteja interessada na encenação, na apresentação ou na poetização de certos dados da cultura de um “povo dominado” (CABRAL, 2008, p. 210), de um “povo colonizado”, cuja resistência a um processo de “‘assimilação progressiva’” (CABRAL, 2008, p. 211) importaria fazer ecoar, é certo que uma perspectiva crítica, associada a um olhar de fora, a um “outro olhar para as coisas” (TAVARES, 1991, p. 856), como diz a poeta, aí também se faz valer.

Se, nos poemas que escolhi para a análise, não é tanto esta perspectiva crítica o que se manifesta, não se deve deixar de registrar o que outros também já disseram, quando abordam uma questão igualmente fundamental para a poesia da autora, qual seja, a “situação da mulher”, e, em específico, “a situação da mulher na sociedade africana” (TAVARES, 1991, p. 849).[7] De fato, talvez seja em torno desta que aparece com mais ênfase o que a própria poeta chama de “gritos de revolta”, com os quais se interroga aquela mesma sociedade de que se procura aproximar, a qual se imagina, por vezes, poder ser uma “máquina que não funciona assim tão bem” (TAVARES, 1991, p. 858).

A consciência que a autora revela ter do lugar de enunciação de sua poesia, presente na entrevista com Laban, na qual não se camuflam certas contradições, certas tensões, entretanto, já seria suficiente para demarcar a importância da dimensão crítica de seu fazer poético. Não há, aqui, com efeito, ingenuidade, romantismo ou idealização. Não há, como parece ter havido no passado, a pretensão de se apresentar a escritora como representante de todo um povo, como teria acontecido com aqueles “pais fundadores das diferentes literaturas africanas de língua portuguesa” (PORTUGAL, 2007, p. 289), os quais, pertencentes a certos “círculos letrados”, teriam sido “auto-erigidos em núcleo simbólico da nação” (PORTUGAL, 2007, p. 292).

Tavares, como autora que viu de perto a falência dos ideais nacionalistas de seus antecessores, sabe que a “identificação total e definitiva com as aspirações das massas populares” (CABRAL, 2008, p. 217), exigida por Cabral para a legitimação daquele decantado “retorno às fontes”, não se apresenta no horizonte do possível. Do mesmo modo, ela parece saber que é de “tendências culturais díspares” (PORTUGAL, 2007, p. 295) que se compõem as sociedades, cujas identidades não se apresentam como algo passível de ser descoberto e fixado, de uma vez por todas, já que emanam de estruturas dinâmicas, que comportam um grau mais ou menos elevado de mobilidade, de abertura para a “‘contaminação’”, para a “comunicação” (MONTEIRO, 2007, p. 233),[8] através do que se torna viável, tanto no que diz respeito ao indivíduo quanto no que tange ao coletivo, “assimilar e aprender novas práticas” (MONTEIRO, 2007, p. 234).

É de aprendizado, de vontade de conhecimento, de travessias, de fato, que se faz a poética da autora angolana. Recorrer a estudos “de antropólogos e etnólogos” (TAVARES, 1991, p. 849) para uma melhor compreensão da “sociedade africana”, sob esta perspectiva, não tira o valor da poesia, não se tratando mais de se identificar a “procura” do artista africano a ideias como a de uma “africanidade autêntica” (FERREIRA, 1975, p. 24), de que muito se falava entre escritores e críticos de gerações passadas.  Tudo leva a crer que as “práticas tradicionais africanas” (MONTEIRO, 2007, p. 235) que vislumbramos nos poemas de Tavares são mesmo, em boa medida e conscientemente, inventadas, como o são, ademais, hoje o sabemos, as próprias nações e as suas tradições. Não se deve, todavia, menosprezar o potencial de intervenção do discurso poético em pauta, no ambiente em que circula. O desejo de conhecimento daquilo que não é familiar, ainda que envolto em estranhamento e espanto, ou por isso mesmo, continua a ser um caminho relevante para a experiência subjetiva, bem como para o encontro entre culturas.

Animada por uma vontade de compreensão, de anseio por “se abrir ao ‘outro’” (MONTEIRO, 2007, p. 234), é patente que a poesia de Tavares se constrói e se expande a partir de um reconhecimento do “capital [...] simbólico” (PORTUGAL, 2007, p. 294) de um universo que permanece ainda muito pouco conhecido e valorizado. É por isso, portanto, que ela cumpriria também a sua função social, dando continuidade a uma característica que Pires Laranjeira já dizia ser marca das literaturas africanas de língua portuguesa, qual seja, a de serem “fortemente politizada[s], ainda que não explicitamente” (LARANJEIRA, 1985, p. 12). Pois se a poética de Tavares procura valorizar a “estrutura social” de certos “grupos dominados”, movimentando-se em torno do desejo de compreensão de sua “realidade material e espiritual”, não seria acertado dizer que ela também se torna, como queria Cabral, um ato de “resistência cultural” (CABRAL, 2008, p. 212), ou mesmo, por que não dizer, um ato de resistência antiimperialista? Parece-me pertinente acreditar que sim.

 

Referências

CABRAL, Amílcar. O papel da cultura na luta pela independência. In: ______. Documentário: textos políticos e culturais. Lisboa: Cotovia, 2008. p. 203-236.

FERREIRA, Manuel. Uma aventura desconhecida. In: ______. No reino de Caliban: antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa. Lisboa: Seara Nova, 1975. p. 16-63. v. 1 [Cabo Verde e Guiné-Bissau].

LARANJEIRA, José Luís Pires. Originalidade da literatura africana. In: ______. Literatura calibanesca. Porto: Afrontamento, 1985. p. 9-18.

MONTEIRO, Fátima. Nacionalismo e etnicismo em Angola na segunda metade do século XX. In: LARANJEIRA, José Luís Pires et al (Orgs.). Estudos de literaturas africanas: cinco povos, cinco nações: actas do Congresso Internacional de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Lisboa: Novo Imbondeiro, 2007. p. 230-239.

PORTUGAL, Francisco Salinas. A busca da identidade nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. In: LARANJEIRA, José Luís Pires et al (Orgs.). Estudos de literaturas africanas: cinco povos, cinco nações: actas do Congresso Internacional de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Lisboa: Novo Imbondeiro, 2007. p. 289-298.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.

SOUSA, Noémia de. Sangue negro. São Paulo: Kapulana, 2016.

TAVARES, Paula. Amargos como os frutos: poesia reunida. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

______. Encontro com Paula Tavares [Entrevista]. In: LABAN, Michel (Comp.). Angola: encontro com escritores. Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida, 1991. p. 845-861. v. 2.

 

 

[1] Artigo publicado em Mulemba, Rio de Janeiro: UFRJ, v. 11, n. 21, p. 35-48, jul.-dez. 2019.

[2] A série de entrevistas de Laban com escritores de Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe, publicadas entre 1991 e 2002, compõem nada menos do que oito volumes, constituindo material de inestimável valor para a compreensão do que se passa na literatura do espaço em questão.

[3] É interessante, para a caracterização do lugar de enunciação da poesia de autoras como Tavares e Sousa, a observação de Fátima Monteiro, em “Nacionalismo e etnicismo em Angola na segunda metade do século XX”, sobre a constituição do MPLA, movimento que teria sido “impulsionado pela pequena elite mestiça e aculturada de Luanda”, e cuja principal base de apoio seria “o grupo Mbundo, [...] mais amplamente exposto à cultura ocidental do que o resto dos seus congêneres” (MONTEIRO, 2007, p. 235). De fato, seria o MPLA que assumiria a condução de um “processo educativo” (MONTEIRO, 2007, p. 233) de variadas dimensões, para o qual não deixaria de dar a sua contribuição a própria poesia.

[4] O raciocínio de Francisco Salinas Portugal, em “A busca da identidade nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa”, também contribui para se pensar o lugar social do escritor, em África. Transcrevo o parágrafo do autor de que retirei a expressão citada: “A criação e autonomização dos diferentes sistemas literários africanos de língua portuguesa dependeu muito da capacidade que tiveram os grupos letrados de elaborarem um discurso nacional e de inventarem para isso suas próprias tradições, a sua própria história e assim conseguirem estabelecer um cânon, também próprio” (PORTUGAL, 2007, p. 295). Voltar aos escritos do líder do PAIGC, que seria, certamente, um “intelectual nacionalista” (PORTUGAL, 2007, p. 289), nos termos de Portugal, mostra-se interessante porquanto ele destaca as tensões que fariam parte do processo de aproximação dos “grupos letrados” em relação às “massas populares”. É deste processo que dependeria, justamente, estarem aquelas “tradições” e aquela “história” inventadas mais ou menos radicadas nas fontes da dita “sociedade africana”.

[5] Na entrevista a Laban, pensando no “universo tradicional”, Tavares afirma: “só o conheço quando o invento” (TAVARES, 1991, p. 858).

[6] O que é lugar de fala?, de Djamila Ribeiro, livro não há muito tempo publicado, fornece algumas sugestões que poderiam ser exploradas, aqui, de modo a se “atualizar” a discussão que optei por fazer a partir do texto de Amílcar Cabral. Certamente, seria possível pensar que a poesia em questão leva em consideração “a necessidade de romper com a epistemologia dominante e de fazer o debate sobre identidades pensando o modo pelo qual o poder instituído articula essas identidades de modo a oprimir e a retificá-las” (RIBEIRO, 2017, p. 89). A consciência que Tavares demonstra ter sobre o lugar de enunciação de seus poemas não me parece, efetivamente, muito distante do que Ribeiro pensa sobre os “lugares de fala”: “O fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares de grupos subalternizados” (RIBEIRO, 2017, p. 86).

[7] Na entrevista de 1988, Tavares destacava a importância que teria para a sua poesia o tema em pauta, afirmando ser em torno dele que gostaria de construir a sua poética: “o caminho ao qual gostaria agora de me dedicar é o da mulher” (TAVARES, 1991, p. 851). Não adotar uma perspectiva que privilegie este elemento, em torno do qual, segundo a escritora, “tudo girava”, na “sociedade africana”, mas que “parecia um ser nada importante em relação a essa mesma sociedade” (TAVARES, 1991, p. 850), não significa, que fique claro, o não reconhecimento de que a centralidade que assume, nessa poesia, apresenta-se como uma de suas mais relevantes contribuições para a renovação do sistema literário angolano.

[8] Fátima Monteiro afirma algo que me parece condizente com a posição assumida pela poética em questão: “A ideia propagada pelo colonialismo segundo a qual as sociedades africanas se organizavam em torno de unidades ‘tribais’ fechadas em si próprias e isoladas, sem vias de comunicação ou ‘contaminação’ mútua, provou-se inteiramente falsa” (MONTEIRO, 2007, p. 233).

[*] Bernardo Amorim é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor dos cursos de Graduação em Letras e Pós-Graduação em Letras: Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Ouro Preto e investigador do Núcleo de Estudos Literários desta universidade, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Poesia de Língua Portuguesa (GP-PLiPo). De suas publicações, destacam-se artigos sobre as poéticas de Conceição Lima, José Craveirinha e Paula Tavares.

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