Indeléveis ruminações da memória1

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco*

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta 
pleno
Mesmo calada a boca, resta o peito
passam
[...]
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue.
(Chico Buarque e Gilberto Gil)2

Seu olhar parado é
de coisas que
[...]
e ressuscitam
no tempo duplo
da exumação.
(Carlos Drummond de Andrade)3

 

Sangue e amargor, voz e silêncio, amor e guerra, ritos e tradições, vida e morte, tempo e exumação alguns dos vetores alegóricos que perpassam pelos poemas de Dizes-me coisas amargas como os frutos (Lisboa: Caminho, 2001, poemas), terceiro livro de poesia da escritora angolana Paula Tavares, quarto título de sua obra constituída por: Ritos de passagem (Luanda: União dos Escritores Angolanos,1985, poemas), O sangue da buganvília (Praia: Centro Cultural Português; Embaixada de Portugal, 1998, crônicas), O lago da lua (Lisboa: Caminho,1999, poemas), Ex-votos (Lisboa: Caminho, 2003, poemas), A cabeça de Salomé (Lisboa: Caminho, 2004, crônicas), Os olhos do homem que chorava no rio (Lisboa: Caminho, 2005, romance em parceria com Jorge Marmelo), Manual para amantes desesperados (Lisboa: Caminho, 2007, poemas), Contos de vampiros (Porto: Porto Editora, 2009, contos, em antologia), Como veias finas na terra (Lisboa: Caminho, 2010, poemas), Amargos como os frutos (Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2011, poesia reunida), Verbetes para um dicionário afetivo (Lisboa: Caminho, 2016, em antologia), Um rio preso nas mãos (São Paulo: Editora Kapulana, 2019, crônicas).

"Dizes-me coisas amargas como os frutos", epígrafe do primeiro poema que dá título ao livro, é um provérbio do repertório das tradições dos kwanyamas, etnia do sul de Angola que habita uma zona vizinha à Huíla, província localizada no sudoeste angolano, região dos povos mwilas, onde nasceu, em 1952, na cidade do Lubango, Ana Paula Tavares, cuja descendência mescla as origens portuguesas da mãe e as kwanyamas advindas de sua avó paterna. Criada desde os nove meses de idade pela madrinha que, embora vivesse em Angola, cultuava em casa hábitos e costumes trazidos de Portugal, Paula foi conhecer mais profundamente as tradições de sua terra por intermédio de leituras e de projetos de investigação histórica e arqueológica em que trabalhou tanto na capital angolana, como em várias cidades do interior de Angola. Apesar de haver recebido uma educação portuguesa e só ter deixado o lar da madrinha para casar, pôde, durante a infância e a adolescência, observar, a uma certa distância, o universo das etnias locais à sua volta, mundo este que também ficou registrado nos desvãos de sua memória.

A poesia angolana, em geral, se tece pelo diálogo entre a oratura africana e as heranças deixadas pelos portugueses. No caso da poiesis de Paula Tavares, predominam elementos do imaginário cultural do sul de Angola, recriados por uma linguagem estética de intensa elaboração e condensação poética que opera com as formas fixas da tradição oral, entre as quais: os provérbios, as frases curtas, as metafóricas lições morais. Ao enveredar pelos caminhos literários, Paula optou por trabalhar com essas fórmulas da oralidade, reatualizando-as, em seus poemas caracterizados pela economia e síntese verbal. Reinventa, desse modo, provérbios kwanyamas e ensinamentos da tradição dos povos da Huíla, efetuando um ritual de reencenação das vozes dos antigos griots que se valiam da narratividade oral como meio de organizar o caos, legando às novas gerações os mitos fundacionais de suas culturas. Seguindo o exemplo desses mais-velhos, a poesia de Paula Tavares se faz também guardiã da palavra e da memória ancestrais, embora estas sejam estética e criticamente sempre recriadas. O lirismo de Paula se engendra, pois, como uma rede múltipla que conjuga signos da modernidade e da tradição. Um dos eixos que permeia sua trajetória poética é a consciente opção por romper o silêncio que, em grande parte, envolve as mulheres angolanas, em particular as originárias das etnias do sul de Angola, onde a pastorícia e a agricultura definem o modo de vida, os ritos, os contratos, enfim, os costumes e a história desses povos. Desde o primeiro livro, Ritos de passagem, o eu-lírico assume a rebeldia do grito e denuncia práticas autoritárias oriundas tanto dos valores morais lusitanos herdados, como dos preceitos ditados pela tradição angolana. Em relação a esta, por exemplo, critica o alambamento, que prescrevia a troca das noivas por bois ou cereais. Insurge-se também contra outros costumes cerceadores da liberdade feminina como o uso da tábua corretora que obrigava, nessa etnia, as meninas e moças a uma postura ereta, perfeita:

Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me já às costas a tábua de Eylekessa
Filha de Tembo
organiza o milho.
Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram...
Sou do clã do boi 4

Declarando-se desse clã de pastores, reconhece que sua identidade se acha intimamente vinculada aos signos do gado e aos sabores, fragrâncias, tatos característicos dessas terras do sudoeste angolano. O odor do couro de boi se desprende dos três livros de poesia de Paula. A partir de O lago da lua, esse cheiro aparece associado sempre às sandálias do amado falecido e passa a impregnar suas entranhas de poeta e de mulher, marcando "com o seu perfume as fronteiras do seu quarto"[5] e os sentidos profundos de seus versos. Essa presença bovina é tão forte, que, em Dizes-me coisas amargas como os frutos, o sujeito poético, em meio ao caos em que se encontra, invoca o "boi verdadeiro"[6] e a "vaca fêmea"[7] como figuras-tutelares que o poderão guiar pelos meandros da poesia, fazendo despertar, novamente, a inspiração estética, adormecida pelos sofrimentos coletivos, causados pelas guerras desencadeadas em Angola nos últimos vinte anos, e pela dor individual provocada pela ausência definitiva do amado. Assim, na antecena do primeiro conjunto de poemas do livro, clama por esse boi mítico, cuja simbologia polissêmica aponta para a calma, a doçura, a força pacífica, a bondade, a capacidade de trabalho e de renovação necessárias ao seu país destruído por tanta fome, tanta miséria, tanto sangue derramado:

Boi, boi,
Boi verdadeiro,
guia minha voz
entre o som e o silêncio8

Boi, "boitempo", "boi da paciência", metáfora das ruminações da memória. Alegórica imagem de uma história de silêncios, de sons que se perderam através dos séculos, pelos planaltos da Huíla e pela areia do deserto vizinho. Ligado também aos ritos da lavoura sagrada, da fecundação da terra, o boi é um dos animais sacrificiais oferecidos aos deuses do panteão religioso dos povos pastores, sendo considerado intercessor entre os vivos e os antepassados. O culto a esses é uma prática comum aos povos bantu de Angola, os quais sempre acreditaram no poder advindo dos mortos, em termos de aconselhamento e de circulação da força vital.

Para enfrentar a catástrofe pessoal e social, o sujeito lírico de Dizes-me coisas amargas como os frutos realiza, literariamente, uma espécie de "cerimônia do adeus", dando a esta não a conotação funérea que a morte tem para o Ocidente, mas, sim, a significação angolana dos rituais de óbito tradicionais, através dos quais empreende uma catarse da amargura, da "escarificação das lágrimas" e das feridas gravadas na própria pele, para que vida e morte voltem a se entrelaçar em ciclos míticos de eterno retorno, conforme a cosmovisão africana da existência.

Dizes-me coisas amargas como os frutos pode ser lido, portanto, como um rito poético de exumação: do corpo do amado, do corpo de Angola, do corpo da própria poesia da autora, que, desde O lago da lua, começa a "trocar de pele" [9] e se abrir em carne viva a novas metamorfoses.

O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, em seu livro Boitempo II, onde também tece uma poesia da memória, atribui a esta a faculdade de ressuscitar o passado morto e por isso fala de "um tempo duplo da exumação". É necessário, entretanto, atentar para o fato de que a palavra "exumar", geralmente associada, no Ocidente, à semântica fúnebre de "desenterrar ossos e cadáveres", apresenta também o significado de "tirar do esquecimento". E é justamente com base nessa última acepção que a poesia de Dizes-me coisas amargas como os frutos pode ser interpretada como um "duplo ato de exumação": no nível do enunciado, desenterra da memória as perdas sofridas pelo eu-lírico, porta-voz metonímico das dores do povo e das mulheres de Angola; no nível da enunciação, realiza uma procura arqueológica dos mitos, das formas fixas da oratura, dos ritos e costumes característicos de etnias do sudoeste angolano, reinscrevendo-os, de modo crítico, no corpo e no ritmo da própria linguagem poética que, embora busque recuperar as origens culturais, se revela moderna e transgressora.

Dizes-me coisas amargas como os frutos não é só um diálogo com a memória do vivido e das tradições, mas também uma evocação intertextual permanente com os livros anteriores da autora. O olhar parado do eu-lírico que procede ao movimento de "dupla exumação" das lembranças, no último livro, se assemelha ao "cine-olho" 10 da "vaca que fotografa a morte e paralisa a eternidade" 11 em Ritos de passagem. A distância temporal desfoca as coisas observadas e, como num zoom cinematográfico, fragmentos e ruínas do passado ganham uma dimensão de proximidade, sendo revistos à luz de um presente, cuja transparência deixa entrever camadas antigas da história inscritas nas crostas da memória. A escavação desta desloca o sujeito poético às matrizes étnicas primevas de sua terra, fazendo-o recuar a um tempo "vatwa, /um tempo /sem tempo,/ antes da guerra,/ das colheitas/ e das cerimônias" 12. A referência aos vatwas, ancestrais dos povos de pastores que hoje habitam o sudoeste angolano, alegoriza esse outrora mítico e fundacional que a poesia de Paula Tavares busca apreender através das constantes ruminações do tempo e da linguagem.                                                     

Desde O sangue da buganvília (1998), os textos de Paula apontam para as "fissuras do sonho" 13 que fragmentaram a sociedade angolana, envolvendo-a num clima de desencanto. Segundo Laura Padilha,

as crônicas desse livro falam da pátria adiada, dos projetos falidos. Se em Ritos de passagem, havia um sujeito em rito que procurava o seu lugar, em O sangue da buganvília, o sujeito está em crise, em distopia, sem lugar. Restam-lhe apenas as palavras-grito que buscam, apesar de tudo, semear a consciência, a resistência da buganvília.14

Um profundo amargor assinala a produção literária de Paula Tavares dos anos 90, estabelecendo, desse modo, uma diferença entre os seus três últimos livros e o primeiro. Este, publicado em 1985, ainda guarda a utopia das transformações sociais que as lutas pela Independência provocaram nas mentalidades do país, as descobertas do Amor e do prazer da mulher que queria sentir os cheiros e sabores do sexo e dos frutos da terra, a rebeldia feminina de transgredir as tradições e a linguagem. Nessa primeira obra, havia o sonho da "abóbora-menina"; o corpo pintado de "tacula" 15; o tato macio e o paladar acre-doce do maboque, da manga, do mirangolo. Havia o cinto a não ser posto; o círculo e o cercado a serem ultrapassados. Em O lago da lua e em Dizes-me coisas amargas como os frutos, escritos, respectivamente, quatorze e dezesseis anos depois, há "um tempo de espera para lá do cercado" 16. O presente, prenhe de sangue e morte, envolve, num "compasso de espera" 17, o eu-lírico, cuja voz, entretanto, resiste, ainda, por intermédio da poesia que, apesar da dor, não esquece a "ciência de voar, a engenharia de ser ave" 18: "Aquela mulher que rasga a noite / com seu canto de espera/ não canta/ Abre a boca/ e solta os pássaros / que lhe povoam a garganta" 19 .

Cabe observar que, embora em Ritos de passagem haja uma rebeldia maior do sujeito lírico que se redescobre e se afirma, transgredindo padrões e linguagens, a arquitetura desse livro é muito mais elaborada, condensada e fechada do que a das obras seguintes, onde o discurso poético se torna mais solto, amadurecido pelos sofrimentos e pelo mergulho no âmago de seu próprio fazer que busca incessantemente novos caminhos estéticos.

A dor e a amargura são, pois, os divisores de água das duas fases da trajetória poética de Paula Tavares. Há, entretanto, fios condutores de sua poiesis, a qual opera com certas invariantes: o trabalho com a voz e a recuperação da memória ancestral através da reinvenção estética de mitos, provérbios; "o descascamento das palavras que trocam de pele, como frutos, num procedimento escritural que lembra a técnica usada por Clarice Lispector" 20, num constante desbastamento do verbo criador; a síntese e a condensação metafórica e metonímica que fundam também, à semelhança da linguagem estética usada pelos poetas João Cabral de Melo Neto (brasileiro) e Arlindo Barbeitos (angolano), uma "poética do menos" 21.

Se em Ritos de passagem, há no sujeito estético o gozo do mirangolo "que corta os lábios/ com sabor ácido/ da vida" 22, o gosto doce do mamão que se apresenta metaforizado pela imagem da "frágil vagina semeada" 23, o tato macio da tez recoberta do pigmento encarnado da tacula, nos demais livros, a pele das palavras é arrancada, o "mirangolo passa a escorrer um sangue" 24 rubro e o rito de passagem da poesia se converte em uma cerimônia amarga de cópula com a própria dor: "Atravesso o espelho/ circuncido-me por dentro/ e deixo que este caco/ me sangre docemente// Entre dia e espera/ a história deste tempo/ em carne viva."25. Essa experiência de reavaliação dos sofrimentos não tem, entretanto, nada de masoquista. Ao contrário, fortalece o eu-lírico, dando-lhe uma compreensão mais humana da sociedade e de seus semelhantes, através do enfrentamento não só de sua dimensão existencial, ontológica, mas da análise crítica do contexto político de Angola. Também a preocupação em ressignificar o passado, outra constante da poética de Paula, não apresenta nenhum traço de saudosismo ou nostalgia. O outrora é repensado em seus cacos e ruínas, segundo uma perspectiva benjaminiana26 da história que opera com as vozes dos vencidos, cujas tradições foram olvidadas por séculos de colonização opressora e por anos de guerras dilaceradoras do território angolano.

Principalmente a partir de O lago da lua, publicado em 1999, a poesia de Paula Tavares reflete sobre a crise e o desencanto que se abateram sobre o corpo social de seu país. O eu-lírico, então, passa a expor o corpo ferido, a pele pintada não mais de tacula, mas de "cicatrizes"27, a voz transformada em "grito[que se] espeta faca/ na garganta da noite"28. Alcança, assim, uma contundência que lembra a de João Cabral de Melo Neto: a da "faca só lâmina", penetrando os subterrâneos da linguagem e da história: "As mãos criam na água/ uma pele nova// panos brancos/ uma panela a ferver/ mais faca a cortar// Uma dor fina/ a marcar os intervalos de tempo/ vinte cabaças de leite/ que o vento trabalha manteiga/ a lua pousada na pedra de afiar"29.

Na pedra em que se converteu o coração para resistir à "fina dor" que lhe atravessa o peito, o sujeito poético "afia a palavra" e esta, apesar de cortante, não perde o toque lunar, nem o paladar da infância nutrida por sabores de leite e manteiga. Há uma delicadeza e doçura extremas na linguagem poética de Paula que busca "o mel dos dias claros" e a vida simbolizada pelo "lago branco da lua onde depõe suas últimas reservas de sonho"30. Reservatório da memória e espelho metafórico de sua própria poiesis, esse lago se institui como local sagrado de ritualização do verbo criador. Ao evocar as tradições ancestrais, "a máscara de Mwana Pwo"31, usada nos rituais de puberdade dos povos lunda-txókwe32, a voz lírica se mostra consciente da dupla trajetória de seu rito poético, declarando ser necessário a este "atravessar o espelho em dois sentidos"33: o do presente e o do outrora, o do plano existencial e o do histórico-social, o do enunciado feito letra no poema e o da enunciação que reencena poeticamente camadas antigas da memória individual e mítica.

De acordo com o ensaísta brasileiro Alfredo Bosi, a "resposta ao ingrato presente é, na poesia mítica, a ressacralização da memória mais profunda da comunidade"34 que trabalha, então, "a linguagem da infância recalcada, a metáfora do desejo, o texto do Inconsciente, a grafia do sonho"35.

Seguindo o itinerário dos avessos, o lirismo de Paula Tavares mergulha na sacralidade do lago primevo, depositário das heranças culturais dos povos de sua terra natal. Volta à adolescência, às águas onde lavou seu primeiro sangue. Este, entretanto, em Dizes-me coisas amargas como os frutos, não é mais só "um sangue de mulher", mas o de muitos angolanos que perderam entes queridos ou a própria vida em decorrência da fome e da guerra. O sujeito poético contempla, então, "a superfície do lago/ silêncio e lágrimas pesam-lhe as margens// Uma mulher quieta/ enche as mãos de sangue/ cortando o azul/ da superfície de vidro."36

A voz lírica feminina, neste último livro de Paula, tenta reconfigurar a memória das origens, o trabalho das mais velhas oleiras a quem cabia a modelagem, em terracota, das panelas onde inscreviam provérbios que deveriam ser transmitidos às gerações descendentes: "Onde está a panela do provérbio, mãe/ a de três pernas/ a asa partida/ que me deste antes das chuvas grandes/ no dia do noivado"37. Nesses versos, são evidentes o vazio e a perda das antigas referências comunitárias. O eu-poético capta o sem sentido e o caos dos novos tempos de barbárie, chamando atenção para o fato de que a "oleira continua a colocar os olhos no barro"38 sem perceber a morte do "amado e do elefante"39,  sem notar a desarmonia instalada à sua volta. Todavia, a poesia, possuindo atentas antenas,

resiste ao contínuo ´harmonioso´ pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte (...)40.

Esse caminho de resistência é, justamente, o trilhado pela poiesis de Paula Tavares, particularmente nos livros O lago da lua e Dizes-me coisas amargas como os frutos. Ferida de amor, a voz poética enunciadora oferece seu próprio corpo e sua angústia no "altar sagrado"41 em que se converte o seu lirismo. Este, sob o signo de Mnemósine, alegoria mitológica da memória dos afetos, empreende o inventário crítico do passado pessoal e mítico. Efetua, assim, a catarse das lembranças mortas, procedimento de que se vale para ressignificar o passado e o próprio presente:

CAOS
CACTUS
CACOS
mãos feridas d´espinhos
pousadas pássaros
no meu rosto. 42

Sintomaticamente grafadas em caixa alta, essas três palavras-versos se apresentam como alegorias-chave de Dizes-me coisas amargas como os frutos. Os CACOS  remetem à fragmentação interior do sujeito poético e às fraturas da história angolana. O CACTUS representa não só a mágoa plasmada em espinhos, mas uma forma de resistir e sobreviver aos desertos e às intempéries. O CAOS se faz expressão da crise e da catástrofe individual e social, apresentando-se também como zona informe aberta a transformações e novas descobertas.

Para enfrentar e reordenar o caos, para continuar a saltar os cercados da própria linguagem, para reconfigurar a cosmicidade "perdida"  –  a da palavra e a da história –, o sujeito poético de Dizes-me coisas amargas como os frutos, na primeira parte do livro, rumina o tempo e a memória; em seguida, passa, no pórtico do segundo conjunto de poemas da obra, a uma invocação bastante significativa:

Vaca fêmea, guia bem amada dos rebanhos
A que não salta, não corre
Avança lenta e firme,
Lambe as minhas feridas
E o coração.43

Símbolo da Grande Mãe, da fêmea misteriosa, a vaca, em quase todas as mitologias, é uma alegoria do leite primordial, do princípio feminino por excelência, da terra nutriz. "Patrona da montanha dos mortos"44, a qual tangencia as fronteiras entre o céu e a terra, este animal sacralizado por povos pastores representa, geralmente, a fertilidade, a lua cheia, a esperança de sobrevivência e renovação. Ancestral da vida, suas tetas úberes metonimizam a libido, a energia vital, a força cósmica da palavra. Ao convocar como guia essa "vaca fêmea" para "lamber-lhe as feridas e o coração"45, a voz lírica de Dizes-me coisas amargas como os frutos firma um pacto com a vida, buscando, no calor da língua – na do animal e na que se faz matéria vertente de sua poesia – um bafo quente de resistência.

A partir da compreensão dessa alegoria da "vaca", o amargo que atravessa os poemas de Paula Tavares ganha, para os leitores de sua poesia, nova conotação. Adquire os sentidos simbólicos do "fel produzido pelo fígado"46, o qual, em várias mitologias, remete também à coragem, à cólera, à indignação, sendo um elemento gerador da memória e das virtudes guerreiras, as quais, aliás, são um traço característico das etnias do sudoeste angolano, conforme explica o antropólogo e poeta Ruy Duarte de Carvalho ("um camba de Paula Tavares" –  como bem lembrou Rita Chaves47):

os pastores de animais de grande porte, e esse é o caso de grande parte dos pastores de África que mais de perto nos podem interessar, são de uma maneira geral, embora em maior ou menor grau, também povos mais ou menos guerreiros ou que preservam traços culturais, logo comportamentais, de uma vocação e de uma capacidade guerreiras.48

Tal vocação subjaz aos poemas de Dizes-me coisas amargas como os frutos. Invocando Kalunga49, divindade da morte, o sujeito poético busca fazer a exorcização desta, clamando pela sorte que, nas crenças ancestrais dos povos pastores do sudoeste angolano, diz respeito ao "boi do fogo"50. Por isso, este é devorado51, num rito sacrificial de esperança por tempos melhores. Conquanto se mostre consciente de as hienas ainda continuarem a uivar e a agourar guerras e sangue, de a mãe ter vindo sozinha com os seios murchos e secos de leite, de o amado não mais poder regressar com suas sandálias de couro, a voz lírica procede à exumação de suas tristezas e, através do lento exercício da memória, consegue transformar o gosto amargo da vida no fruto acre-doce de uma indelével poesia, que sangra e arde, mas se mantém acesa e intrépida, iluminando o luto e o presente saturado de espera...

Referências

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CHAVES, Rita. Resenha de O lago da lua. In: Metamorfoses, revista da Cátedra Jorge de Sena para estudos literários luso-afro-brasileiros. Lisboa; Rio de Janeiro: Ed. Cosmos; F. Letras - UFRJ, 2000.

CHEVALIER, J.e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. RJ: José Olympio, 1988.

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RIBAS, Óscar. Dicionário de regionalismos angolanos. Matosinhos: Ed. Contemporânea, s.d.

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TAVARES, Paula. Ritos de passagem. Luanda, 1985.

TAVARES, Paula. O lago da lua. Lisboa: Caminho, 1999.

TAVARES, Paula. Dizes-me coisas amargas como os frutos. Lisboa: Caminho, 2001.

WHITE, Eduardo. Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave. Lisboa: Caminho, 1992.

Notas

[1] SECCO, Carmen Lucia Tindó. In:  Jornal O Angolense, Suplemento Cultura. Luanda, 14 a 21 de julho de 2001, p.16-18 e de 22 a 29 de julho de 2001, p.16-18.

[2] HOLLANDA, Chico Buarque e GIL, Gilberto. Fragmento da letra de música "Cálice". LP Álibi. Gravado por Maria Bethânia. São Paulo: Philipis; Polygram Discos Ltda., 1978.

[3] ANDRADE, Carlos Drummond. Boitempo II. Rio de Janeiro: Editora Record, 1987, p.13.

[4] TAVARES, Paula. Ritos de passagem. Luanda, 1985, p. 27.

[5] TAVARES, Paula. O lago da lua. Lisboa: Caminho, 1999, p. 19.

[6] TAVARES, Paula. Dizes-me coisas amargas como os frutos. Lisboa: Caminho, 2001, p.7.

[7] idem, p. 29.

[8] idem, p. 7.

[9] TAVARES, 1999, p. 15.

[10] TAVARES, 1985, p. 23.

[11] idem, ibidem.

[12] TAVARES, 2001, p. 10.

[13] TAVARES, 1998, p. 49.

[14] PADILHA, Laura. Palestra sobre Paula Tavares. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras - UFRJ, 5 de outubro de 2000, grifos nossos.

[15] TAVARES, 1985, p. 30.

[16] TAVARES, 2001, p. 23.

[17] Alusão ao livro de LOPES, Carlos. Compasso de espera. Porto: Editora Afrontamento, 1997.

[18] Alusão a WHITE, Eduardo. Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave. Lisboa: Caminho, 1992.

[19] TAVARES, 1999, p. 17, grifos nossos.

[20] PADILHA, Laura. Palestra sobre Paula Tavares. Rio de Janeiro: Fac. de Letras/ UFRJ, 5/10/ 2000.

[21] Alusão ao livro de SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo: Duas Cidades; Brasília: Instituto Nacional do Livro, Fundação Pró-Memória, 1985.

[22] TAVARES, 1985, p. 12.

[23] idem, p. 16.

[24] TAVARES, 1999, p. 23.

[25] idem, p. 24.

[26] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984.

[27] TAVARES, 1999, p. 33.

[28] idem, ibidem.

[29] idem, p. 15.

[30] idem, p. 18.

[31] idem, p. 25.

[32] Optamos aqui pela grafia usada por RIBAS, Óscar. Dicionário de regionalismos angolanos. Matosinhos: Ed. Contemporânea, s.d., p. 151.

[33]  TAVARES, 1999, p. 25.

[34] BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1983, p.150.

[35] idem, ibidem.

[36] TAVARES, 2001, p. 20.

[37]  idem, p. 23.

[38]  idem, p. 38.

[39] idem,ibidem.

[40] BOSI, 1983, p. 148.

[41] cf. TAVARES, 1999, p. 12.

[42] TAVARES, 2001, p. 21.

[43] TAVARES, 2001, p. 29.

[44] CHEVALIER, J.e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. RJ: José Olympio, 1988, p. 926-927.

[45] TAVARES, 2001, p. 29.

[46] CHEVALIER e GHEERBRANT, 1988, p. 427.

[47] CHAVES, Rita. Resenha de O lago da lua. In: Metamorfoses, revista da Cátedra Jorge de Sena para estudos literários luso-afro-brasileiros. Lisboa; Rio de Janeiro: Ed. Cosmos; F. Letras - UFRJ, 2000, p. 273. Camba, em quimbundo, significa amigo.

[48] CARVALHO, Ruy Duarte de. Vou lá visitar pastores. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 26-27.

[49] TAVARES, 2001, p. 34.

[50] CARVALHO, 1999,  p. 368. Segundo Ruy Duarte de Carvalho, o Fogo de cada família é formado pelo altar e também diz respeito à sorte.

[51] cf. TAVARES, 2001, p. 34.

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* Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco é Professora Titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora 1B do CNPq e da FAPERJ. Tem doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e Pós-Doutorado pela Universidade Federal Fluminense, com estágio na Universidade Politécnica de Moçambique (2009-2010). Publicações: A magia das Letras Africanas (2003); Paulina Chiziane: Vozes e rostos femininos de Moçambique (2013) em coautoria com Maria Geralda Miranda, Afeto& poesia (2014), Pensando o cinema moçambicano (2018), CineGrafias moçambicanas (2019), dentre outros.

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