A memória como "lugar de escrita" em dois romances angolanos contemporâneos1

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco*

Ultimamente, a história tem dado à memória uma grande relevância, demonstrando como os atos rememorativos se relacionam com o fazer histórico. A literatura, por sua vez, também vem priorizando as relações entre escrita, memória e esquecimento. O romance angolano contemporâneo, por exemplo, assim como o moçambicano e outros, tem trabalhado com escritas de memórias, sejam essas reinvenções de narrativas orais individuais e/ou de registros da memória social coletiva.

O historiador Paul Ricouer declara que a memória se relaciona dialeticamente com a história; retomando reflexões de Halbwachs, reafirma o pensamento desse teórico: “a memória não é um fenômeno estritamente individual, mas sim coletivo, pois o ponto de vista muda de acordo com o lugar ocupado pelo indivíduo na sociedade” (HALBWACHS,1990, p.55). De acordo com essa concepção, memória individual e coletiva se interpenetram e se enriquecem pelo passado histórico. Nos últimos tempos, ocorre uma transformação nos modos de revisitar o passado e "a tendência mais acentuada na historiografia contemporânea mais recente é a das compensações pelo trabalho de rememorização, traduzida pela ressubjetivação e poetização do passado" (DIEHL, 2002, p. 111). A reinvenção dessas memórias coletivas e individuais admite uma pluralidade de releituras possíveis do outrora, que deixam vir à tona "os escombros, as ruínas e os processos de desintegração, tornando-se ela mesma [a memória] um testemunho do passado" (DIEHL, 2002, p. 15). Entendidas como fontes históricas, as lembranças trazem não só fatos objetivos, mas também emoções, o que leva à compreensão de que não há uma versão única da história. As memórias são múltiplas e formam um painel que se altera, segundo a perspectiva de quem recorda. As escritas da memória, mesmo as centradas em registros factuais da história, operam com narrativas, com representações, construindo variantes subjetivas do passado.

Alguns dos romances contemporâneos produzidos em Angola neste milênio se constituem como escritas de memórias que revisitam e colocam em questão meandros da história de Angola, ao mesmo tempo que repensam aspectos culturais da sociedade angolana. Evidenciando tais procedimentos, analisaremos, aqui, Noites de vigília, de Boaventura Cardoso, e Travessia por imagens, de Manuel Rui.

Noites de vigília se inicia com uma epígrafe de Hamlet, de Shakespeare, sobre o “desconcerto do tempo”, metáfora que, por analogia, também alude ao desconcerto da Revolução angolana, cujos ideais libertários, em grande parte, se enfraqueceram, após a independência. A narrativa principia com o reencontro dos protagonistas, Quinito e Saiundo, velhos amigos que viveram, nos tempos coloniais, parte da juventude no musseque Rangel e que, através das suas memórias, vão recordando as lutas empreendidas para a construção de uma Angola independente. Os dois homens eram veteranos dos movimentos de libertação de Angola e da guerra civil, Quinito (do MPLA) e Saiundo (da UNITA), ambos mutilados: um de uma perna; o outro, de um braço. Reencontram-se, nos primeiros anos da década de 2000, após 27 anos da independência, no mercado Roque Santeiro, local bastante emblemático de Luanda. A dupla representa os milhares de mutilados que necessitam lutar por uma vida mais digna. Os dois propõem a fundação de uma Associação dos Mutilados de Guerra. Uma parte da ação romanesca se desenvolve-se tendo como foco as reuniões dos amputados para a criação dessa agremiação; a outra é constituída pelas memórias das guerras vividas pelos protagonistas e por outras personagens a quem o narrador-enunciador, em terceira pessoa, vai também cedendo voz. As certezas herdadas de uma visão histórica positivista são relativizadas, no romance de Boaventura Cardoso, por intermédio de um multifoco narracional, cujos enfoques diferenciados cruzam trágicas lembranças dos tempos coloniais com cenas do presente e do passado mais recente de Angola. Assim, a história de Angola vai sendo repensada: a assimilação; a guerrilha; os movimentos de rebeldia nos musseques em 1974 e 1975; a saída dos brancos de Angola por ocasião da independência; o ódio ao colonialismo e a derrubada de estátuas; o maio de 1977; a corrupção; o dinheiro lavado; a ação de gangues atuais nos musseques, o comércio de drogas e armas.

Os dois amigos contam, emocionados, um ao outro o que enfrentaram, no longo período em que estiveram afastados. Rememoram o pós-independência, em 1976; depois, relembram o período da guerra civil. Sucedem-se, em seus testemunhos, recordações fragmentadas de episódios ora da guerra de libertação, ora da guerra civil (essa reavaliada de duas perspectivas – a do MPLA e a da UNITA). Tais relatos são perpassados por traços de coloquialidade; as vozes das personagens e a do narrador em terceira pessoa se justapõem sem indicações gráficas de discurso direto; os assuntos seguem-se, por associação de ideias, mesclando tempos e acontecimentos diversos: o pós-independência, o colonialismo, os anos 2000. Diversas vezes, Quinito se surpreende com antigos companheiros guerrilheiros que se tornaram empresários ou pastores de igrejas evangélicas.

É Quinito quem começa a discorrer acerca das matanças e roubos ocorridos nos musseques de Luanda, na antecena da independência. Em seu discurso, ele revela o ódio e a revolta que foram crescendo ali contra os portugueses, os “tugas”, que residiam em Angola, e contra os “assimilados”, cujos comportamentos, na maioria das vezes, reafirmavam a ideologia colonialista. Séculos de dependência e periferia tornaram tão intrínseca a dominação, que muitos angolanos colonizados desejavam ser como os colonizadores lusitanos. 

Noites de vigília se constrói como uma contra-história das guerras angolanas. Entrecruzando uma série de testemunhos ficcionais e depoimentos – de Quinito, Saiundo, Tita, Dipanda, Felito, Gato Bravo e outras personagens –, vai desvelando sentidos ocultos, dessacralizando discursos oficiais, colocando em choque o cânone colonial, contrapondo as divergências ideológicas entre os cânones revolucionários do MPLA e da UNITA. A memória, em vigilante revisitação do outrora, perpassa pelas chagas abertas da guerra, cujas cenas de pânico e medo ainda não se apagaram e fazem escorrer sangue das lembranças de Quinito e Saiundo, personagens que funcionam como duplos invertidos: o primeiro é metaforizado pelo rio a fluir no “sentido do regresso ao princípio” (CARDOSO, 2012, p. 223); o segundo, pela contracorrente, pela “contramaré” (idem, ibidem).

Segundo diversos dicionários da língua portuguesa, vigília, do latim vigilia, pode assumir vários significados: guarda; vigilância; denúncia; contestação; espera; permanência; cuidado; atenção; cautela; preocupação; inquietação; resguardo; preservação. Todos esses sentidos estão, de certo modo, presentes na polissêmica metáfora do título do romance de Boaventura Cardoso.

Ironizando cânones, tanto coloniais, como revolucionários, que não respeitaram as tradições ancestrais em Angola, o discurso romanesco, no capítulo “Aquele Chão Sofrido”, traz a imagem de uma “esteira voadora” (Cf. CARDOSO, 2012, p. 154) sobre a qual voa o kimbanda do Uíge a quem foram consultar para a compreensão das vozes misteriosas ouvidas no Panteão construído em memória dos heróis nacionais. É com imensa beleza poética que são descritos os poderes do kimbanda, em sua inusitada viagem pelos ares, sentado no tapete mágico. Algumas tradições angolanas, aqui, já se apresentam mescladas ao maravilhoso árabe, aos anjos católicos, aos minotauros da mitologia grega, evidenciando hibridismos culturais em Angola, hoje.

A artesania da linguagem realizada por Boaventura Cardoso mantém semelhanças com a perpetrada por Guimarães Rosa, como, por exemplo, no que diz respeito à criação de neologismos, às reinvenções léxicas e sintáticas que revigoram o discurso, imprimindo intenso lirismo à tragicidade das lembranças narradas. Entre as rememorações das guerras, perpassam também pela narrativa muitas estórias, lendas, provérbios das tradições angolanas. Ao mesmo tempo, Boaventura Cardoso, neste livro, trabalha com modernas estratégias romanescas. Efetua a mesclagem de gêneros, como ocorre, por exemplo, no meio da narração, com o poema declamado por Chavito, cuja sensibilidade poética é tanta, que enlouquece e passeia pelos destroços das guerras (Cf. CARDOSO, 2012, pp. 182-183).

Dipanda, filho de Quinito, é quem está escrevendo a história do pai; ele faz anotações num caderno, consulta jornais para conferir a veracidade dos relatos paternos e também dos que ouve da boca de Saiundo e de sua mãe, Tita. Ele é um narrador da escrita, enquanto Quinito e Saiundo são representantes da narratividade oral. Em alguns momentos do romance, o autor ficcional, o narrador e o narratário se confrontam num jogo labiríntico de revelação e encobrimento dos enigmas da complexa trama ficcional. Dipanda redige um romance que, como o que estamos lendo, também se intitula Noites de vigília. Portanto, há um romance dentro do outro; é uma construção em abismo.

Na literatura da catástrofe, do trauma, é preciso narrar, pois, em geral, “não contar / perpetua a tirania do que passou” (SELIGMANN, 2000, p. 9). Contudo, como expor, sem trair o que de fato ocorreu? Essa é uma das angústias constantes nos relatos testemunhais, conforme observa Márcio Seligmann, estudioso do assunto: “A distância do tempo acaba pondo em xeque as certezas da memória, precárias como são. (...) Como fazer do leitor uma testemunha do evento? E para quem narra: como se tornar, narrando, uma testemunha autêntica do acontecido e uma testemunha autêntica de si?” (SELIGMANN, 2000, p. 9). Noites de vigília problematiza, ficcionalmente, tais questões, na medida em que os narradores do romance, o tempo todo, trocam de lugar: ora são os que contam, ora são os que ouvem.

Quinito ora é narrador, ora é narratário; Saiundo alterna com ele essas funções. Desse modo, ambos narram versões bem diferentes da história. Dipanda anota o que diz um e outro; assim, vai tecendo sua escritura romanesca, adotando, também, por vezes, o papel de narratário. Outro que desempenha, ao final, a função de ouvinte ideal é Felito, filho de Dipanda e neto de Quinito; desde os 8 anos, ouvia, com orgulho, os relatos do avô e sonhava escrever a história dele. Quinito teoriza sobre história, esquecimento, memória, chamando atenção para o caráter seletivo desta. Questiona, por conseguinte, as visões históricas canônicas que celebram, apenas, os monumentos dos vencedores.

São de grande importância as figuras dos vários narradores e a do narratário ideal utilizadas por Boaventura Cardoso, pois é, por intermédio desse polifônico jogo narracional, que o romance se tece por diversos pontos de vista, demonstrando serem múltiplas as versões da história.

Já o romance Travessia por imagem, de Manuel Rui, configura-se como uma busca de desvendamento da existência humana, esta revelada como jogo de imagens, como representação, como teatralização dramática de memórias e esquecimentos, de lugares – o espaço familiar da casa, o de Luanda – e de não-lugares, zonas de trânsito, entre os quais: o bar de Dom Escobar, em Havana; a sauna dos amores com Sueli; o hotel Adelita e o de Matanzas, em Cuba.

A metáfora do jogo se realiza de várias maneiras no romance. Há o jogo literário tecido entre o tempo de escolha do livro que ganharia o prêmio “Casa de Las Américas” e o processo de construção do romance Geometria do silêncio, da autoria do escritor angolano Zito, protagonista de Travessia por imagem. Há o jogo dos espaços de transumâncias, representados pelos hotéis Adelita e o de Matanzas, pelo bar de Dom Escobar, pela casa de show Tropicana, pela piscina, pela sauna – todos locais de passagem. Há, também, o jogo da relação entre memória e história, que se arma por intermédio de diversas fotografias, cuja ordenação, feita pelo protagonista e por outras personagens, vai construindo e desvelando a própria narração do romance que está sendo redigido a várias mãos. Há, ainda, o jogo político por meio do qual críticas sociais vão sendo efetuadas, com ironia e sarcasmo.  

Todos esses jogos são permeados por relações de intimidades, por intermédio das quais as personagens vão-se revelando em meio a fugacidades, a imagens dispersas, mas, também, rearrumadas como num álbum de fotografias de família. Uma personagem importante é o fotógrafo Oscar. Este teoriza sobre fotografia, mostrando que cada foto vai além das imagens fixadas, descortinando sentimentos e palpitações do passado, memórias e estórias esquecidas que pulsam sob a imagem, em meio às sombras da memória.

A arte da fotografia é capaz de lançar luzes em zonas sombrias do pensamento e das lembranças. Etimologicamente, a palavra fotografia vem do grego: “fós”= luz e “grafia”=escrita. Fotografar é, pois, uma escrita luminosa, que expõe imagens sob a forma de flashes que apreendem instantâneos, como se congelassem, em pequenas eternidades, fragmentos do tempo.

Não só Oscar vai fazendo reflexões acerca do ato de fotografar. Outras personagens também o fazem. O protagonista Zito, escritor angolano, reflete o tempo todo, descobrindo, na fotografia, nas imagens, o cerne da ficcionalidade. Suas considerações sobre os bastidores do próprio procedimento escritural permitem concluir que Geometria do silêncio e Travessia por imagem se entrecruzam e se espelham, constituindo-se como escritas labirínticas e abissais que podem ser denominadas de “meta-romances”, isto é, romances metaficcionais, pois discutem suas engenharias internas.

Travessia por imagem se passa no final dos anos 1980 e início da década de 1990, época de Gobarchev, isto é, da abertura política e econômica da então União Soviética para o capitalismo. O romance divide-se em sete partes. A primeira transcorre em Cuba, onde vários jurados de diferentes países estão hospedados no Hotel Adelita, em Havana, deslocando-se para outro hotel, em Matanzas, para a leitura e a análise dos livros concorrentes ao renomado prêmio literário. Quando se encontram no Hotel Adelita, não deixam de comparecer ao bar em que trabalha o sedutor Dom Escobar, sempre a comandar os tragos dos hóspedes e frequentadores daquele espaço. O drinquista trabalha ali desde a época de Fulgêncio Batista, quando Cuba era satélite dos Estados Unidos. Viveu o período da americanização; mesmo depois da revolução cubana, não deixou o bar.

A segunda parte do romance transcorre em Luanda. A esposa, Rocelana, e a sogra, Vitória, são muito importantes para Zito que, no fundo, é bastante apegado à família e às tradições de sua terra. O escritor é também político, ocupando posições junto ao Estado angolano. Com fina ironia – acentuada pelo refrão “Ah! Ah! Ah!” que permeia, de quando em vez, a narrativa –, Travessia por imagem se constrói, fazendo críticas aos sistemas políticos, tanto ao capitalismo, como ao socialismo que, muitas vezes, se esqueceu, em Angola, de seus princípios ideológicos de lutar pela igualdade social. Tais questionamentos vão sendo efetuados, no decorrer da narrativa, pelo narrador, por Zito, por Dona Vitória e por outras personagens. A “Cidade dos Leões” do mexicano Pablo, fotografada por Oscar, pode ser lida como alegoria satírica da decadência do socialismo em um mundo que passa a priorizar, cada vez mais, o capital e o consumo.

Como pequenos flashes fotográficos, Zito vai trazendo à sua lembrança fragmentos do que vivera em Havana e Matanzas. Entremeadas a essas memórias, vão sendo colocados em questão alguns aspectos problemáticos da sociedade angolana pós-1980 e da história de Angola. Por exemplo: “a guerra não acaba ou temos que acabar com a guerra para ela não se intrometer nos nossos sonhos” (RUI, 2012, p.95). Reflexões desse tipo são efetuadas pelo narrador e por várias personagens: Zito, Vitória, Katia, Edna, Rocelana; mas, quase sempre, são intercaladas por comentários satíricos, irônicos, que vão tecendo provocações e gozações, como se fossem estigas, tão ao gosto do modo de ser angolano. Estigas são brincadeiras comuns em Angola, em que um tenta gozar o outro e vice-versa, iniciando-se, geralmente, por uma afronta, um desafio. Pode vencer o estigado ou o estigador, dependendo da capacidade inventiva e a velocidade de argumentação de cada um. Nas estigas, tudo que é dito só existe na linguagem, na imaginação. O riso, como elemento crítico, é fator preponderante nesse tipo de brincadeira.

Em Travessia por imagem, cruzam-se diversas estigas: entre Zito e Vitória, entre Zito e a mulher, entre Zito e a filha Kátia, entre a avó e a neta; entre Vitória e Rocelana, entre Zito e Oscar, entre muitas outras personagens. Por intermédio dos diálogos tecidos pelas estigas, há críticas aos tráficos de influências, às cunhas, ao machismo, aos preconceitos existentes tanto na direita, como na esquerda revolucionária que acaba esta, também, mesmo após a independência, usufruindo de mordomias, conhecimentos e favores, contribuindo, desse modo, contraditoriamente, para o aumento da pobreza em Angola.

Citando versos de Agostinho Neto – “as minhas mãos colocaram pedras nos alicerces do mundo” – (RUI, 2012, pp. 285-286), é feita uma ironia aos discursos dos tempos atuais, das redes sociais dos nets e blogues, que, em geral, se esquecem do passado. Há uma denúncia aos sistemas educacionais que levam os miúdos a só prestarem atenção ao hoje, deixando de lado as tradições, o antigamente. Sarcasticamente, as estigas vão fazendo sérias acusações ao mundo atual, em que todos, seguindo os modelos econômicos do capitalismo neoliberal, querem ser “gestores”, primando por “hacer la gestion. Ah! Ah!Ah!”...

Dona Vitória, baluarte da família e da tradição, vai, aos poucos, tomando a cena maior do romance, magnetizando todos. Pelo seu poder de oratura e rapidez de inteligência, vai encantando Zito, a neta advogada, a filha, o neto médico, certos embaixadores em Angola e em Cuba, enfim, os que a rodeavam: “unia todos, a África e a América” (RUI, 2012, p.210). Vitória seduzia, com sua voz e suas estórias (RUI, 2012, p. 170), aqueles com quem convivia, principalmente, o genro escritor. Ela não escrevia, só falava, porém era, também, capaz de imaginar estórias a partir das fotografias que Zito trouxera de Cuba. Vitória, metonimicamente, representa as mais-velhas da tradição angolana que se encontram, atualmente, em extinção nas grandes cidades de Angola. Ela é mulher sábia, de fala certa, que pontua momentos importantes do romance, fazendo também questionamentos, muitos dos quais reafirmam os de Zito. Diz ela, numa passagem: “eu não me dava mal no comunismo se não fosse o abuso de responsáveis com três mulheres, carros, casas e cheios de dinheiro a viajarem de um lado para outro... mas é isso mesmo, sem abuso é muito melhor que o colonialismo...” (RUI, 2012, p.96).

Também Rocelana, ao receber a filha Kátia que retornava dos estudos na Bulgária, faz uma forte crítica à valorização da aparência e do consumo: “é a doença dos angolanos. Mania das grandezas, a comerem pão com jinguba para pouparem dinheiro e comprarem água de colônia” (RUI, 2012, p.157).

Da terceira à sétima e última parte, o romance, na maioria das vezes, prioriza o espaço de Luanda, com exceção da quarta parte que transcorre em Cuba, quando Dona Vitória viaja com o neto para tratar da saúde, e da sétima que focaliza a Tia Flora, em Luanda; Vitória e o neto Vlademiro, novamente em Havana; Kátia, o marido e Rocelana, no Texas, nos Estados Unidos;  Zito, a lançar seu livro, em Lisboa e, depois, em Gijón, nas Astúrias, convidado a abrir um congresso literário. Travessia por imagem narra a estória de Zito, de sua família, da construção do romance Geometria do silêncio que ele está escrevendo. Expondo a carpintaria do mesmo, ele vai investigando e revelando determinadas tendências atuais do romance em Angola, que, ao mesmo tempo, se vale de procedimentos modernos e de componentes da tradição oral. Travessia por imagem se constitui, assim, como uma viagem da (e na) língua, como uma travessia escritural. Da p. 302 à p.304, é inserido um fragmento de ensaio, feito de pura poesia, que defende a mestiçagem cultural, a noção de transidentidade, formada esta pelo diálogo de línguas, palavras, culturas que formam correntes de escritas e afetos.

A estrutura romanesca – de Travessia por imagem e de Geometria do silêncio – é polifônica, uma vez que tanto os conhecimentos veiculados, como a teoria sobre o narrar são tecidos com a participação da família de Zito: a sogra, a mulher, os filhos, a secretária Edna, etc, além dos flashes dos amigos. O romance de Manuel Rui capta imagens, numa série de flashes, cuja intenção é apreender a velocidade do fluxo mental e da expressão oral, a fugacidade da vida, a luta da memória para impedir esquecimentos.

As linguagens das avós, das mais-velhas, sempre estiveram, na tradição angolana, envoltas em cumplicidades e saberes. Zito tem consciência da importância disso. Por tal razão, tenta ser, como escritor, o duplo de Dona Vitória. Ele procura fixar, em sua escrita, conhecimentos da tradição, colhidos das estórias orais contadas pela sogra. Assim, seu romance, procurando definir o lugar, ou melhor, o “entrelugar”[2] do romance angolano, acaba por se situar na encruzilhada da fala e da escrita, da tradição e da modernidade, da realidade e da fantasia. É, em grande parte, por intermédio de tais relações, que, nas últimas partes do romance, a descoberta da vida se faz pela revelação da morte. O jogo entre esta e a vida tem íntima ligação com fotografia, pois esta apresenta, entre seus principais objetivos, o de congelar breves instantâneos, tentando vencer a morte e o esquecimento.

No romance de Manuel Rui, há uma ânsia de não esquecer; daí, as repetições, o ir e vir de lembranças e pensamentos esgarçados, a intencional falta de vírgulas e pontos da narração que, num jato contínuo, visa a acompanhar o fluxo da memória das personagens e de Zito.

Concluímos, observando que Manuel Rui e Boaventura Cardoso, mais uma vez, inovam, construindo romances, que, o tempo todo, surpreendem o leitor. Ao longo da narrativa, literatura, fatos históricos, imaginação, ironia se mesclam e se tornam estratégias de narrar não só memórias, mas os meandros da história, assim como o incomensurável da vida..., da guerra, da morte... e do tempo.

Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Reis e Gláucia Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. 395 p.

BARTHES, Roland. A câmara clara. 2. ed. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 185 p.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 2. Ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984. 253 p.

CARDOSO, Boaventura. Noites de vigília. São Paulo: Editora Terceira Margem, 2012.

COLLOT, Michel. “Do horizonte das paisagens ao horizonte dos poetas”. Tradução de Eva Nunes Chatel. In: ALVES, Ida Ferreira e FEITOSA, Márcia Manir Miguel (Org.). Literatura e paisagem: perspectivas e diálogos. Niterói: EDUFF, 2010, pp. 191-218.

DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru: EDUSC, 2002.

GIDDENS, Antony. A transformação da intimidade. Trad. Magda Lopes. SP:  Ed. UNESP, 1993. 228 p.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Laurent Leon Schaffter. São Paulo: Vértice, 1990.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1996.

NOVAES, Adauto. “De olhos vendados”. In: ___ (Org.) O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 9-20.

RICOUER, Paul. La mémoire, l'historie, l'oubli. Paris: Seuil, 2000.

RUI, Manuel. “Da escrita à fala”. Texto inédito, policopiado, apresentado na mesa-redonda intitulada “A prosa e a sociedade: estórias de nossa terra”, nas JORNADAS DO LIVRO E DA LITERATURA. Luanda: Ministério da Cultura, 25 de abril de 2003.

__________. Travessia por imagem. Luanda: Editorial Kilombelombe, 2012. 316 p.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978. 212 p. 

SELIGMANN, Márcio e NESTROVSKI, Arthur (Org.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000.

Notas

[1] Texto publicado na Revista VIA ATLÂNTICA, São Paulo, N. 27, 45-56, Jun/2015.

[2] Entrelugar: conceito cunhado, pela primeira vez em 1978, pelo crítico literário brasileiro Silviano Santiago; usado também, depois, por Bhabha para definir sociedades oriundas de diversas mestiçagens culturais.

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* Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco é Professora Titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora 1B do CNPq e da FAPERJ. Tem doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e Pós-Doutorado pela Universidade Federal Fluminense, com estágio na Universidade Politécnica de Moçambique (2009-2010). Publicações: A magia das Letras Africanas (2003); Paulina Chiziane: Vozes e rostos femininos de Moçambique (2013) em coautoria com Maria Geralda Miranda, Afeto& poesia (2014), Pensando o cinema moçambicano (2018), CineGrafias moçambicanas (2019), dentre outros.

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