Na curva oblonga do tempo, uma alegórica parábola...1

              Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco*

 

A especulação sobre o tempo é uma ruminação inconclusa,
à qual só responde a atividade de narrar.

Paul Ricoeur2

1. Pepetela: um contador da história e das estórias angolanas

A ficção de Pepetela se caracteriza por um constante e lúcido olhar sobre a história de Angola. Uma história a contrapelo, transfigurada por uma escritura alegórica que investiga os interstícios e não-ditos do que ficou reprimido nos desvãos do imaginário social angolano. Seus textos se tecem por um intenso trabalho com a linguagem, o que impede que haja uma transparência em relação aos fatos históricos.

As estratégias narrativas usadas pelo autor conjugam elementos da modernidade e da tradição, recuperando dessa última os aspectos culturais fundamentais, ao mesmo tempo que põem em questão as heranças negativas ainda presentes na sociedade angolana. Pepetela é um contador da História e das estórias angolanas, havendo em seus textos uma constante visão crítica tanto acerca do contexto social de seu país, como da própria arte de narrar e escrever.

Desde a primeira obra, Muana Puó, sua ficção opta por caminhos alegóricos, denunciando figuradamente os atos autoritários do colonialismo português, representado nesse livro pela metáfora dos corvos. O título refere-se a uma máscara tchokuê, usada, na tradição, nos rituais de circuncisão. O texto, metaforicamente, se faz corte, incisão na pele da história de opressões que marcou o imaginário angolano, reprimido por uma colonização silenciadora das religiões e dos cultos africanos. Mitopoeticamente, a narrativa, através da aprendizagem existencial da dor, reflete sobre o ritual da arte, ao mesmo tempo que encena ritos ancestrais essenciais à recuperação da identidade cultural angolana a ser reconstruída.

Mesmo nas obras escritas durante as lutas pela libertação de Angola, segundo os cânones revolucionários orientadores dos ideais políticos do MPLA, as narrativas de Pepetela não perdem a perspectiva crítica, a visão dialética em relação ao processo histórico angolano.

Em As aventuras de Ngunga e em Mayombe, a par do centramento ideológico do momento histórico em que essas obras foram escritas, é tecida uma reflexão a respeito dos problemas enfrentados pelos guerrilheiros. Ngunga, por exemplo, é o singelo herói fundador de uma Angola libertária. Sua viagem representa a travessia de iniciação dos que lutaram pela Independência.

Como os heróis lendários, Ngunga desaparece ao final sem explicações, mas, ao contrário dos velhos mitos,  não reforça todos os costumes da tradição; critica, por exemplo, o alembamento, isto é, o hábito dos dotes exigidos nos casamentos tradicionais em diversas etnias angolanas; questiona também a usura de certos sobas (chefes tradicionais das aldeias angolanas) e os ressentimentos tribalistas – fomentados, em grande parte, pelo próprio colonialismo – que motivaram, no passado remoto e mais  recentemente, tantas guerras em Angola.

O romance Mayombe inicia-se com uma sugestiva e metafórica dedicatória: Aos guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses, abrindo um caminho na floresta obscura, vou contar a história de Ogum, o Prometeu africano. Contaminando com a figura africana de Ogum a mitologia ocidental, a voz enunciadora abala os valores culturais impostos pelo colonialismo, buscando, em antigos mitos da África, as raízes identitárias esfaceladas pela conquista. Invocando Ogum, deus da guerra, orixá do ferro e das batalhas, o discurso enunciador conclama os guerrilheiros à luta.

Mayombe denuncia ódios tribais dilaceradores do corpo social angolano, mostrando como estes foram incentivados pelo colonialismo e, em alguns casos, pelos próprios partidos que lutaram pela Independência de Angola. Chamando atenção, ainda, para dramas individuais e existenciais que ultrapassam o puramente ideológico, esse romance levanta a questão de a história de Angola não poder ser lida apenas por um maniqueísmo redutor que opõe os “Tugas” (portugueses) aos “Turras” (terroristas angolanos).

A modernidade de Mayombe reside no plurifoco narrativo, formado pelo depoimento de nove narradores que tecem um painel multifacetado da guerra colonial angolana. O epílogo do livro, constituído pela voz do Comissário, teoriza acerca da existência e sobre o próprio ato de escrever, concebido este último como recriação da vida e da morte. O escrever torna-se metáfora de uma luta solitária do escritor que corta a pele da linguagem e a veste para melhor refletir sobre as mudanças sociais e existenciais, discutindo a aprendizagem social e humana da guerra, de onde não podem estar excluídos nem o amor, nem a amizade.

Há, na maior parte dos textos de Pepetela, o procedimento frequente de investigar o presente a partir de um jogo especular com o outrora mítico e histórico. No romance Lueji, ele se apropria de versões da lenda de Ilunga e Lueji que contam a história da Lunda, recriando-as para refletir criticamente acerca do passado e de suas correlações com questões atuais da sociedade angolana.

A construção romanesca se passa em dois tempos: narra a história da rainha da Lunda, Lueji, que viveu há quatrocentos anos, e a história de Lu, sua descendente, que reside em Luanda e é bailarina do Balé de Angola. A história de Lu transcorre a poucos meses do ano 2000 e reencena a lenda da ancestral. Especularmente, uma narrativa espelha e inverte a outra, repensando, de modo crítico, tanto os tempos atuais, como a tradição. A metáfora do balé perpassa por toda a narrativa que se arma como uma complexa coreografia escritural que efetua uma profunda releitura da História. Dança e ficção se enlaçam, numa reflexão constante entre o outrora e o presente, entre o palco e o real histórico recriado. Lueji é um “romance em abismo”, em que a história encenada pelo balé atualiza a tradição e alegoriza situações do presente de Angola.

O romance Lueji, além de discutir as questões do poder tanto no passado, como na época atual, desenvolve um trabalho metaficcional. Rompendo com a linearidade do enredo, a voz enunciadora cede a palavra a vários narradores, personagens tanto da estória de Lu, como de Lueji. Na narrativa do presente, há o escritor que se insere no texto e conversa com o leitor, expondo suas dúvidas e teorizando sobre a escritura romanesca. Há o historiador e o crítico de arte que também discutem, respectivamente, novas concepções da História e da Literatura. O balé, a música, o romance, reinventando as tradições e problematizando o presente, efetuam, pois, um jogo de descolonização, porque trazem a consciência da descaracterização imposta aos africanos pela colonização europeia, ao mesmo tempo que tecem ficcionalmente a diferença angolana, representada pelo bailado autenticamente montado de acordo com as raízes populares dos cultos e crenças locais.

Em seus romances escritos após 1990, Pepetela insiste na clave de reescrever Angola. Só que o faz pelo viés das distopias sociais, alertando para a crise que destruiu o país. Em A Geração da Utopia, faz um balanço dos vinte anos de Independência, mostrando como as guerrilhas entre a UNITA e o MPLA dilaceraram ainda mais a nação.

Esse romance se divide em quatro partes que se referem a tempos históricos determinados: a primeira focaliza a geração da utopia, dos jovens angolanos da Casa dos Estudantes do Império que, em Lisboa, nos anos 1960, urdiram as bases para as lutas contra o colonialismo; a segunda relembra os anos de guerra em Angola, na década de 1970; a terceira focaliza Luanda, nos anos 1980, após a Independência; finalmente, a quarta se ocupa de Angola, nos anos 1990, criticando os esquemas e a perda dos valores éticos dos tempos revolucionários. O discurso enunciador alerta para o perigo dos fanatismos e denuncia o vazio comunicacional, a corrupção, a burocracia, os privilégios das elites.

Em O desejo de Kianda, exacerba essas críticas, fazendo o retrato alegórico da Angola atual, devastada pela guerra civil fratricida que se desencadeou após o resultado das eleições presidenciais realizadas em 1992. A ação romanesca se desenvolve no ano de 1994 e o cenário é a cidade de Luanda. O romance principia com o casamento das personagens principais, João Evangelista e Carmina Cara de Cu, e com a queda inexplicável do primeiro prédio. A ruína é a imagem catalisadora do universo romanesco. Os desmoronamentos apontam para a deterioração dos valores éticos, para o vazio dos antigos sonhos e utopias. Os deslizamentos alegorizam a entrada do capitalismo transnacional, alertando, como ensinou o velho Marx, que tudo que era sólido desmancha no ar.

As núpcias dos protagonistas representam a aliança de ideologias antes inconciliáveis. João Evangelista, o noivo, de origem protestante, encena a figura do acomodado, que aceita passivamente tudo para não se indispor e não perder os privilégios. Carmina, a noiva, ateia, de temperamento forte e combativo, mantém ligações com o governo, mas, embora tenha sido militante do Partido, como muitos companheiros, se beneficia, agora, do poder, esquecida dos princípios que engendraram a luta política do MPLA. João Evangelista é o exemplo do alienado no trabalho e no casamento, fugindo constantemente através do computador diante do qual fica horas a se distrair com um jogo que revive a queda do Império Romano. Aprisionado no imaginário eletrônico, em um país onde falta tudo, até energia elétrica, Evangelista “vive”, na tela, a decadência de Roma, sem perceber a que o rodeia e desmantela seu próprio lar e seu próprio país. A modernidade do discurso de Pepetela reside justamente nessa ponta de ironia corrosiva a desvelar as contradições presentes. O jogo do computador funciona, pois, na narrativa, como um duplo irônico e alegórico das guerras que destroem Angola.

O interessante é a solução romanesca encontrada para expressar a revolta e a sensação de avaria que define a realidade angolana do fim dos anos 1990. Em contraponto ao discurso cético do narrador e à desesperança dos diálogos travados pelas personagens, emerge, em itálico, o canto mágico de Kianda, a deusa angolana do mar, alegorizando as identidades perdidas, a impossibilidade atual do retorno às origens. O final do romance, em aberto, com a imagem de Kianda, livre, fugindo para o alto mar, remete, ambiguamente, para o esfacelamento das utopias, mas, entretanto, acena para uma trilha talvez possível: a do universo mítico-literário, espaço de reflexão crítica e denúncia. A fuga de Kianda configura, assim, não só a impossibilidade de os antigos ideais socialistas persistirem, mas se constitui como alegoria de uma esperança latente e desesperada de rebeldia.

No romance Parábola do cágado velho (1996), conforme analisaremos mais detidamente no item 2 deste artigo, Pepetela continua na linha alegórica e mítica de repensar a história de Angola. Em A Gloriosa família: o tempo dos flamengos, essas estratégias também estão presentes. A narrativa desse último romance trata do século XVII em Angola, focalizando, em especial, os sete anos (de 1642 a 1648, inclusive) em que os holandeses (aqueles que conquistaram o Brasil) foram buscar escravos em Luanda. Daí o subtítulo: o tempo dos flamengos. Ao recriar episódios da História geral das guerras angolanas, da autoria de António Oliveira Cadornega, o romance se erige também como homenagem a esse historiador que, em 1680, já incorporava em sua linguagem palavras das línguas africanas como o quimbundo, por exemplo. É em Cadornega que Pepetela encontra referência a Baltazar Van Dum, em quem se inspira para escrever A gloriosa família. Não é, entretanto, sob a ótica dessa personagem que a narrativa se constrói. Dando ênfase à história dos vencidos, Pepetela elege o escravo de Van Dum para narrar, embora este seja mudo e analfabeto. O interessante é que esse narrador assume um ponto de vista múltiplo e subjetivo, apresentando diversas versões interpretativas do presente narrativo (que, em relação ao momento atual, é já passado). A opção por esse plurifoco narracional se manifesta também em outros romances de Pepetela, nos quais a "re-visão" da História procede sempre de forma dialética, buscando dar visibilidade aos conteúdos sombrios e sem glória, silenciados pelos discursos oficiais.

Em A montanha da água lilás, uma fábula para todas as idades, é tecida, também de modo alegórico, uma lição: a de que Angola não pode deixar secar a água lilás, fonte e metáfora de suas tradições e poesia:

O Lupi-poeta fez então muitos poemas. Contavam a estória dos lupis e da água lilás. Também da desgraça que se abateu sobre eles e o seu destino.
Foram talvez esses poemas que chegaram ao conhecimento dos avós dos nossos avós, quando eles compreendiam a linguagem dos lupis. E nos contaram à noite, na fogueira, para transmitirmos às gerações vindouras. Aprenderão elas com a estória? 3

A pergunta fica no ar, o livro termina em aberto. A resposta, entretanto, pode ser depreendida das entrelinhas do texto: soa como um ensinamento fabular para as novas gerações angolanas, que só aprenderão com essa estória, se souberem preservar o fluir lilás da liberdade e o respeito pela palavra, pela vida e pelo ser humano.

Nos romances Jaime Bunda: o agente secreto (2001) e Jaime Bunda e a morte do americano (2003), Pepetela, embora pareça ter abraçado o gênero policial, cria narrativas, na verdade, "antipoliciais". Essas, ao subverterem a clássica estrutura dos romances de aventura e suspense, prosseguem na linha crítica de repensar Angola, reafirmando, assim, o lugar privilegiado que o autor escolheu para sua ficção, tecida sempre num espaço entre a Literatura e a História. Também no romance Predadores (2005), o escritor segue esse viés, traçando um retrato mordaz da sociedade angolana dos anos 2000. Essas três obras de Pepetela apresentam uma visão inteiramente distópica, carnavalizada e melancólica de Angola dos tempos neoliberais. Dando prosseguimento ao modo crítico de olhar a história do país, esses romances, como os anteriores, se constituem como narrativas de interrogação sobre a memória, a identidade e o tempo angolanos. Esse tipo de discurso, objeto por excelência da História, é recorrente na ficção do autor que demonstra plena consciência de que qualquer temporalidade só pode ser alvo de aguda reflexão, se estiver inscrita como linguagem. Ao invés de discutir a construção do tempo e da memória primeiro na história e, depois, no mito e na literatura, a enunciação ficcional dessas obras cruza as três instâncias, relativizando a veracidade tanto dos relatos históricos, como da inventividade da imaginação literária.

No livro Parábola do cágado velho que escolhemos para analisar a seguir, as temporalidades histórica, mítica e ficcional são amplamente problematizadas. Entrecruzando fragmentos da história angolana recriados ficcionalmente e aspectos míticos da concepção ancestral do tempo africano, o referido romance deixa em aberto, ao final da leitura, uma reflexão acerca da necessidade de, no presente, haver uma reinvenção do tempo _ questão que, atualmente, também inquieta vários filósofos e estudiosos da Filosofia como, por exemplo, Jeanne Marie Gagnebin, autora de vários ensaios sobre a obra de Walter Benjamin:

(...) hoje, quando não podemos mais acreditar com a mesma certeza tranquila que o Outro de nosso tempo seja a eternidade divina, como conseguir, porém, uma compreensão diferenciada, inventiva da temporalidade – e da história! – humana em suas diversas intensidades?4

2. A sabedoria do silêncio e as ruminações do tempo e da memória

O cágado não ensina a espera. Os homens é que esperam. Escrevo para
acordar Nzambi e os homens.5

O romance Parábola do Cágado Velho (1996), do escritor Pepetela, ao dar voz aos homens do campo que mais sofreram com as guerras, continua na mesma clave de repensar, a contrapelo, a história de Angola. Ao adotar a parábola como estratégia narrativa, evoca, no plano ficcional, por comparação, realidades históricas vivenciadas, em diferentes tempos, pelas populações do interior. Entrelaçando o fictum e o factum, constrói uma textualidade cifrada, que também penetra a esfera mítica, à procura das origens fundadoras da cultura e da história angolanas.

A parábola (do grego parabolé), movendo-se no mesmo espaço retórico da fábula e da alegoria, se avizinha da primeira por encerrar uma moral e, da segunda, por se constituir como um discurso que faz entender outro. A narrativa de Pepetela, portanto, ao focalizar alegoricamente a estória de amor entre Munakazi e Ulume, bem como a inimizade entre os irmãos Luzolo e Kanda, narra, na verdade, uma história subjacente de ódios ancestrais. A animosidade entre os filhos de Ulume alegoriza, em última instância, a guerra fratricida travada pela UNITA e pelo MPLA, após a Independência.

Oscilando entre a parábola, a fábula e a alegoria, o texto de Pepetela apresenta uma estrutura dramática bem tecida, capaz de enfatizar os conflitos histórico-sociais vividos por Angola, ao mesmo tempo que conjuga características próprias a cada uma dessas formas literárias: como a parábola, é protagonizado por seres humanos e veicula uma lição metafórica e hermética, acessível apenas aos iniciados; como a fábula, passa um ensinamento, apresentando uma personagem do reino animal – o cágado velho, símbolo do saber e do tempo angolanos; como a alegoria, opera com uma linguagem sobredeterminada, que aponta para os conteúdos encobertos e silenciados.

Atentando-se, ainda, para o outro significado de parábola – do grego parabálio, figura traçada de um lugar plano dos pontos equidistantes de um ponto fixo e de uma reta fixa de um plano (HOLANDA: 1976, 1041) –, percebe-se que a narrativa descreve um traçado oblongo, semelhante à forma geométrica de uma parábola, tanto que o texto se abre e se fecha tendo por cenário um mesmo local, a montanha da Munda, onde Ulume sobe para assistir à paragem do tempo e poder observar, desse local fixo, os pontos equidistantes do passado para, assim, efetuar uma profunda reflexão a respeito da história de seu país.

O discurso enunciador do romance funciona como uma espécie de antena parabólica capaz de captar imagens de tempos e espaços diversos e distantes, fazendo com que o outrora e o presente dialoguem, numa releitura crítica, fundadora de uma nova historicidade. A trajetória de Angola é, então, revisitada a partir de cinco planos temporais: o do antigamente, tempo primordial, da oratura, das tribos, dos sobas6; o do outrora colonial, tempo das guerras de kuata-kuata7, em que se apanhavam escravos; o do passado da Revolução contra o colonizador e da paz aparente que reinou logo após a Independência; o do passado recente com a guerra civil desencadeada entre o MPLA e a UNITA; e, finalmente, o do presente dilacerado, após tantas lutas mutiladoras do corpo social angolano. avaliar

A enunciação romanesca comanda os entrecruzamentos desses planos temporais. A voz narradora em terceira pessoa, utilizando-se do pretérito imperfeito, traz todas essas memórias inconclusas. Valendo-se, também, em alguns momentos, de interrogações, põe em questão certos costumes da tradição e dos tempos atuais, reavaliando, assim, a história de Angola, segundo uma temporalidade múltipla e dialética. O percurso rememorativo traçado enfatiza que o processo histórico angolano sempre foi pontuado por guerras. Primeiro, as étnicas, entre sobas, inscritas no campo do sagrado, motivadas pela disputa de espaços e alimentos. Depois, as guerras por braços escravos, caracterizada pela exploração dos brancos, pela prepotência dos colonizadores. A seguir, registra a grande revolta que dizimou tantas aldeias, mas que culminou com a Independência e ocasionou um período de paz, embora curto, porque, logo após o 11 de novembro de 1975, veio a guerra civil, moderna, cuja ação nefasta, fratricida espalhou fome, doenças, miséria e desencanto por toda parte do país.

Parábola do cágado velho busca reaquilatar os conflitos da realidade angolana, cujas identidades, em grande parte, se diluíram, tendo em vista a perda da memória cultural por tantas lutas e contradições que deixaram no esquecimento a sabedoria dos mais velhos. Adotando um viés próximo ao da chamada literatura de fundação, a Parábola se assume como um romance de regresso e procura das origens (PAZ: 1972, 125). Mesclando o mythos e o epos, reinventa o passado, repensando as guerras, a partir de um mergulho nos labirintos do inconsciente social, histórico e cultural de alguns dos povos de Angola.

Essa obra de Pepetela se estrutura como uma “epopeia moderna” das guerras angolanas, ou melhor, como uma anti-epopeia, porque não são a heroicidade e o ufanismo históricos que são cantados, mas os sofrimentos e a resistência dos povos do campo. O romance apresenta uma invocação, entretanto, esta não apela, como ocorre nos cantos épicos tradicionais, aos deuses para auxiliarem o artista em sua criação; clama, ao contrário, para acordar Nzambi 8, no sentido de fazê-lo enxergar as desgraças acontecidas. Não espera a ação messiânica de divindades; questiona, sim, a resignação ensinada pela tradição angolana:

Até hoje, os homens, parados, atónitos, estão à espera de Suku-Nzambi. Aprenderão um dia a viver? Ou aquilo que vão fazendo, gerar filhos e mais filhos, produzir comida para os outros, se matarem por desígnios insondáveis, sempre à espera da palavra salvadora de Suku-Nzambi, aquilo mesmo é a vida?   (PEPETELA: 1996, p. 9)         

As constantes indagações da voz narradora instigam a consciência do leitor, transformando a invocação em um clamor aos homens para que, ao invés de esperarem pelos desígnios divinos, despertem e tentem mudar o curso da história.

A narração mitopoética dessa obra de Pepetela faz recordar o outrora e a natureza. Re(cord)ar, no sentido etimológico de repor as imagens perdidas no coração do humano, resistindo, desse modo, às contradições cúmplices da ganância, da opressão e do poder que geraram, em Angola, a discórdia entre povos e partidos irmãos. Esta é a grande parábola do romance.

A preocupação com as origens e a discussão do processo de formação da nacionalidade angolana estão presentes em vários romances de Pepetela. A referência mítica aos gêmeos Namutu e Samutu, saídos da Serpente-Mãe, já se encontra no romance Lueji, com o qual há uma clara intertextualidade, cuja função principal é reafirmar a proposta de diálogo crítico com os elementos fundadores do processo identitário em Angola. A figura mítica e simbólica do cágado, como sustentáculo da Lunda, também aparece nos dois romances. Em Parábola do cágado velho, esse animal é portador dos ensinamentos ancestrais, sendo uma alegoria do tempo, do saber e do próprio olhar sobre a história. É a partir dele que Ulume consegue suspender o tempo para refletir sobre a tradição e a modernidade. O cágado lhe ensina a ruminação dos silêncios (PEPETELA: 1996, 38), a capacidade contemplativa capaz de o fazer compreender o inefável que reside além das fronteiras das palavras (BOSI: 1983, 107).

Ao ver o cágado sair da gruta e beber a água do regato que origina o rio Kwanza, Ulume se desliga da rotina de sua vida na aldeia e ingressa nas fontes míticas do outrora primordial, percebendo que:

(...) o ser vibrante do silêncio não depende só da voz precedente: esta dá o estímulo, mas não é tudo. O outro momento, aquele que mantém a intersubjetividade, o momento da atenção, ponta extrema e fina do espírito, é que traz à consciência social o sentido vivo do silêncio. (BOSI: 1983, 107)

A Munda e a gruta habitada pelo cágado funcionam na narrativa como espaços míticos matriciais através dos quais Ulume reencontra as águas da infância (PEPETELA: 1996, 180), as águas da memória, as águas restauradoras do outrora. O cágado é o interlocutor-mudo que apenas tem o poder de despertar-lhe a consciência, por intermédio da apreensão de um silêncio profundo capaz de inquietar sua subjetividade prenhe de angústias bloqueadoras dos desejos.

Uma outra alegoria presente na narrativa, a da granada, assinala grandes desequilíbrios a acontecerem na história de vida do protagonista e na de sua aldeia. Aviso dos antepassados, a explosão traz a Ulume a revelação de um novo amor: por Munakazi, uma jovem quase da idade de seus filhos. Os pés convergentes da moça o atraem de forma arrebatadora. Munakazi representa o novo, a modernidade, o erotismo de que Ulume precisava para rejuvenescer. Entretanto, carrega uma misteriosa melancolia nos olhos, que vem avivar em Ulume o sentimento de perigo já há algum tempo pressentido no ar.

Interessante notar que, ao apresentar Munakazi, o discurso narrador deixa a terceira pessoa e usa a primeira do plural, o nós, acumpliciando-se também com o leitor, a quem instiga à decifração do enigma narrativo.

O romance, cujo fio central narra a história do novo amor de Ulume, se arma pelo encaixe de vários casos e cenas de tempos diversos que, sem obedecerem a uma cronologia factual, vêm e voltam à memória do protagonista, fazendo-o tecer analogias entre o presente e o passado de Angola.

Antes de Munakazi, houve muitos outros tempos. A voz narradora chama atenção para o fato de que há sempre um tempo antes do tempo (PEPETELA: 1996, 22). Suas perguntas vão pontuando o que é importante, o que deve ser repensado pela personagem principal e pelo leitor.  Assim, vai efetuando um contraponto às lembranças de Ulume, mostrando que a luta pelo poder sempre existiu, desde os avós dos avós (PEPETELA: 1996, 20). Critica os sobas que usavam a religião e a crença nas divindades para justificarem suas lutas por mais espaços, ao invés de pensarem no povo. Denuncia o soba-cazumbi9 que vendia os negros para as roças de café dos brancos e utilizava como castigo o Bruco, buraco enorme, onde mandava atirar quem o desobedecesse (PEPETELA: 1996, 27). Recorda, depois, o tempo dos impostos e a fundação de Calpe, a cidade dos sonhos também presente nos seus livros O cão e os calus e Muana puó, sendo que nesse último a simbologia, como na Parábola, está relacionada às utopias libertárias que culminaram com a grande revolta que determinou não só a saída dos brancos, mas também, nos anos seguintes, a disseminação de outros ódios e violências. Segue-se, então, a memória de um tempo de convivência entre Ulume e a Muari, a primeira mulher. Tempo da criação dos filhos, do povo renascendo da Munda, da inexistência dos impostos, do trabalho a dois no campo, da produtividade das plantações, embora houvesse ainda um prenúncio de perigo no ar, para o qual a voz enunciadora, sempre atenta, alerta: a paz era definitiva? (PEPETELA: 1996, 26). Após esse curto período de trégua, sucedeu o tempo da separação que foi o da divisão de várias comunidades étnicas e da família, o da implantação do capitalismo, o da modernidade. Tempo que levou para a cidade, em um carro, os filhos de Ulume, Luzolo e Kanda, indo cada um lutar em campo diferente, o que, alegoricamente, evidencia a cisão política de Angola.

A explosão da granada marca o ingresso nesses novos tempos de separação e dor. É a ocasião em que Ulume se apaixona por Munakazi e deixa em segundo plano a Muari. O desejo pela jovem representa para Ulume a busca do erotismo vital que se extinguia nele em função das perdas sofridas com as guerras e com a partida dos filhos. Cabe, de novo, chamar atenção para o fato de que o que mais o atraía na moça eram os pés convergentes, com dedos grandes levantados (PEPETELA: 1996, 15). Essa preferência erótica pelo pé é bastante significativa. Entre várias etnias africanas, há muitos mitos a isso relacionados:

(...) para os dogons, por exemplo, o dedão do pé é símbolo de sexualidade, representando a idéia de força vital. Entre os bambaras, atribui-se à mulher, cujo vão entre o dedão do pé e o dedo seguinte é bem grande, uma forte tendência aos apetites sexuais. (CHEVALIER: 1988, 327-328 )

Para os bambaras os pés são também um instrumento iniciático de chegada e de partida, de iluminação e de descoberta (CHEVALIER: 1988, 694-696), significando a chave de um enigma a ser resolvido. Nas crenças dessa etnia, os pés, entretanto, nada podem sem a cabeça, pois são sempre comandados por esta.                 

Em Parábola do cágado velho, os pés convergentes de Munakazi admitem, por analogia, várias interpretações: não só conotam a eroticidade que Ulume buscava para atenuar suas angústias, como também se fazem signos representativos de partida e chegada, de cisão e reencontro. A curva oblonga que desenham atraem Ulume e deixam, no leitor, a curiosidade de um enigma a ser desvendado.

Munakazi se casa com Ulume, porém, de modo semelhante aos filhos dele, foge para Calpe, local das utopias revolucionárias. A intertextualidade com os romances Muana puó e O cão e os calus, obras anteriores de Pepetela em que Calpe também está presente, é evidente. Só que, em Parábola do cágado velho, essa cidade surge não mais como espaço dos sonhos, mas como lugar de pesadelos, distopias, misérias e desencantos:

Olhou para o lado da gruta e viu o animal, mas não a sua cabeça, tapada pelo capim. Estaria também o cágado a olhar para o mesmo sítio de onde ele não conseguira tirar os olhos? Nunca o saberia. E, no entanto, naquele momento achou que isso era inevitável. Quem sabe até era o cágado a causa do estranho fenômeno? Não são eles o alicerce do mundo, as bases de todos os tronos, a forma de Mussuma, a capital lunda? Sabedorias antigas, hoje desprezadas pelos jovens que correm atrás de carros e modas, na busca ansiosa de Calpe e dos prazeres.  (PEPETELA: 1996, 39) [grifos nossos]

Ulume sofre com a partida de Munakazi, mas essa nova perda o abala mais profundamente, pois o atinge também em seu machismo. A desorientação que lhe invade o âmago o leva ao desespero existencial. A dor, entretanto, instiga-lhe a consciência e ele, buscando o reequilíbrio, passa a efetuar reflexões importantes que são de ordem social e histórica. Confronta, então, os tempos antigos aos contemporâneos, percebendo certas semelhanças entre o terror exercido pelos sobas, no outrora, e o medo pelo clima tenso provocado pelas guerrilhas, nos tempos da pós-independência. Relacionando os ressentimentos entre os filhos, Luzolo e Kanda, e os partidos políticos do país, o MPLA e a UNITA, Ulume descobre que, em última instância, essa animosidade assinala o descompasso reinante entre as palavras antigas e as atuais:

Os antigos diziam as palavras eram tudo, eram força. Pode ser, no passado. Quando se usavam as palavras exactamente para se dizer o que se pensava e não como arma para confundir os outros. Para criar uma ponte entre Luzolo e Kanda não bastavam palavras, tinham mesmo de ser barrotes, troncos fortes e largos como os da mulemba ou mafumeira. E bem amarrados por cordas de mateba ou lianas. Aquela raiva toda ia alguma vez passar? Além dos troncos e das lianas, era preciso tempo, muito tempo. Mas havia uma pergunta que há muito lhe perfurava a cabeça e resolveu fazê-la a Kanda:
_ Tu sempre foste esperto, por isso podes me explicar. Quem ganhou com esta guerra? Tu talvez tenhas ganho, pelo menos parece pelo aspecto. O teu irmão não tem nada. Quem ganhou, eu não sei. Quem perdeu, isso eu sei, fomos nós todos.    (PEPETELA: 1996,162) [grifos nossos].

Essa lucidez em relação às perdas que, no contexto das guerras angolanas, afetaram mais os camponeses e os já oprimidos, ilumina a compreensão histórica de Ulume, anunciando-lhe um tempo de novos reencontros. Luzolo regressa, Munakazi também, mas o peso das tradições machistas e o orgulho do amor próprio ferido o impedem de aceitá-la, embora se apiede dela pelos sofrimentos terríveis por que, em Calpe, a moça passara. Sente, então, a necessidade de retorno à Munda. Nesse momento, a curva da narrativa converge, oblonga, em forma de parábola, para o mesmo ponto fixo com que o romance se iniciara –o da paragem do tempo:

Ulume deixou o animal beber e foi à entrada da gruta depositar fuba de milho. Depois foi ele próprio beber a água da sua infância. E uma alegria muito calma começou a preencher todos os seus vazios, com a pureza da água, com a mensagem do cágado, com o mundo voltado ao normal.       (PEPETELA: 1996, 180)

Ulume reencontra a paz e, finalmente, decifra o enigma do cágado velho, cuja lição, alegoricamente construída, é a seguinte: só as tradições, a água da infância, ou seja, as águas míticas da memória, podem significar mais para os seres humanos que o tempo agressivo da história contemporânea, preocupada, principalmente, com questões de poder e progressos materiais.

Em Parábola do cágado velho, o fundamental é a crítica feita não só ao caos existente no presente de Angola, aos estragos advindos da guerra civil, mas também às contradições do antigamente, sem, entretanto, desacreditar do trabalho da memória, uma das formas ainda possíveis de resistir e de recuperar os vários rastros identitários formadores do tecido multicultural de que se constitui o imaginário social angolano. Descrevendo uma curva oblonga por várias épocas históricas, a narrativa penetra as dimensões míticas da memória, sugerindo, como estratégia para uma compreensão mais profunda dos vazios e lacunas da História, as ruminações do tempo e do silêncio. Ruminações inconclusas, que, não obstante, trazem à consciência social o sentido vivo do silêncio e alimentam a própria atividade de narrar.

Referências

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Notas

[1] Texto publicado como capítulo do livro: SECCO, Carmen Lucia Tindó. Na Curva Oblonga do Tempo, uma Alegórica Parábola... In: CHAVES, Rita; MACÊDO, Tânia. Portanto Pepetela... . Luanda: Ed. Chá de Caxinde, 2002. pp. 177 -195.

[2] RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983. I. p.21.

[3] PEPETELA. A montanha da água lilás. Lisboa: Dom Quixote, 2000. p. 163.

[4] GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1997. pp. 78-79.

[5] Trecho da palestra proferida pelo escritor Pepetela, na UFF, em 25/6/97.

[6] Palavra que significa chefes tradicionais das sanzalas angolanas.

[7] A expressão é traduzida por “agarra-agarra”, significando as guerras em que eram apanhados os escravos, nas aldeias.

[8] Deus supremo, nas religiões angolanas.

[9] Cazumbi significa espírito. Soba-cazumbi era o apelido desse chefe.

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* Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco é Professora Titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora 1B do CNPq e da FAPERJ. Tem doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e Pós-Doutorado pela Universidade Federal Fluminense, com estágio na Universidade Politécnica de Moçambique (2009-2010). Publicações: A magia das Letras Africanas (2003); Paulina Chiziane: Vozes e rostos femininos de Moçambique (2013) em coautoria com Maria Geralda Miranda, Afeto& poesia (2014), Pensando o cinema moçambicano (2018), CineGrafias moçambicanas (2019), dentre outros.

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