Luuanda ou minha estória da colonização

(Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e esses casos se passaram nesta nossa terra de Luanda)1

 

Gustavo Henrique Rückert*

Resumo: A institucionalização de uma narrativa da história da colonização revelou-se, durante séculos, um eficiente dispositivo para a consolidação dos processos de dominação impostos pelo ocidente sobre o oriente. Assim, a detenção de uma versão oficial desse processo, que passou pelo silenciamento das demais versões, acabou por legitimar uma representação do africano que o submetia ao europeu. No caso da narrativa da história da colonização portuguesa, representar essa alteridade passava pela negação identitária do outro, reduzido à negação dos aspectos de civilidade e humanidade que cabiam à autorrepresentação lusa. Nesse sentido, a intensa produção literária dos escritores angolanos na década de 60 é de fundamental importância para o rompimento da hegemonia do discurso colonizador. É nesse contexto que Luandino Vieira, em 1963, produziu os três contos que foram reunidos sob o título Luuanda. É a partir de uma linguagem viva, que carrega em si as marcas da oralidade dos musseques de Luanda, que a obra apresenta três narrativas representativas do cotidiano angolano. Se a narrativa histórica oficial, com seu inerente mecanismo de lembrança/esquecimento, tinha descartado a história dos pequenos fatos, das comunidades e das pessoas comuns, Luandino tratou de recuperá-los por meio da literatura e, com o poder da ficção, ameaçar a hegemonia de uma narrativa oficial.

Palavras-chave:: Luuanda; colonização; história; narrativa; discurso.

Abstract: The institutionalization of a narrative of the history of colonization has been used for centuries as an effective device for consolidating the processes of domination imposed by the West over the East. Thus, the restriction to an official version of this process, which silenced other versions, legitimized a representation that subjected African to European. In the case of the narrative of the history of Portuguese colonization, the representation of otherness used the identity negation of the other, which was reduced to denial of aspects of civility and humanity that composed the Lusitanian self-representation.  In that sense, intense literary creation of Angolan writers in the 60s is fundamental to breaking the hegemony of the colonizer discourse. In this context, Luandino Vieira has produced three short stories that were organized under the title Luuanda in 1963. This work presents three narratives representing the Angolan daily with a living language, which itself carries the marks of orality of musseques in Luanda. If the official historical narrative had discarded the story of little facts, communities and the simple people with its inherent mechanism of memory / forgetting, Luandino recovers it through literature and threatens the hegemony of an official narrative with the power of fiction.

Key-words: Luuanda; colonization; history; narrative; discourse.

 

Narrar. Verbo que carrega em si basicamente o sentido de expor sequencialmente um acontecimento, real ou fictício. Contar histórias e estórias é uma técnica que acompanha o ser humano desde o domínio das formas de linguagem, sejam elas quais forem, permitindo a partir da organização dos acontecimentos conferir sentido à própria vida.

História e Literatura têm em comum, nos seus princípios mais elementares, esta característica tão cara ao ser humano, que em linguagem re(a)presenta sua trajetória e a si mesmo, a narração.

No entanto, como ensinou Bakhtin, não há autodefinição ou autossignificação na linguagem (nesse caso, na narrativa) sem alteridade. A trajetória de um eu não se faz sem a presença do outro. A própria noção de um eu está impregnada do outro, só sendo possível a subjetividade a partir da intersubjetividade.

Nos séculos XV e XVI, a necessidade de uma narrativa que conferisse um novo sentido à existência dos povos europeus, o sentido dos Estados-Nação Modernos, ganhou força. Não à toa, era a época em que as navegações propiciaram o conhecimento de outros mundos além do pequeno mundo, total e fechado, da Europa. Conhecimento que, no entanto, ficou desarticulado da compreensão dessa alteridade. Coube a esses outros mundos, com suas culturas, crenças, valores e estruturações, na narrativa europeia apenas ser o eixo negativo de uma oposição binária que revelaria a identidade que o ocidente queria ver em si, autoafirmando a própria cultura, crença, valores e estruturações e ignorando a dos demais.

Para Boaventura de Sousa Santos, Portugal utilizou suas colônias africanas para despejar nelas toda a carga negativa que ele próprio recebia em narrativas de outros países europeus. Na grande epopeia camoniana, ao se lançar ao desconhecido, ao outro, o poeta se questiona, na altura de Moçambique, “que gente será esta?” (p.31). No canto quinto, canto em que há maior contato com os africanos, lança mão de um dispositivo narrativo que afirma em si a identidade de povo civilizado e escolhido por Deus, definindo o africano como “selvagem” e “bruto”. Jerónimo Corte-Real em sua epopeia, quando narra as errâncias de Sepúlveda e seus homens em solo africano, também na altura de Moçambique, descreve a terra como misteriosa e fantástica, e seus habitantes como manadas de cafres.

Toda narrativa segue um princípio básico que é o do recorte. Não é possível contar uma história senão delimitando um recorte de seus elementos (personagens, cenário, tempo). Pois narrativa da história da África, para o ocidente, foi recortada tomando como ponto inicial a colonização, ignorou-se todo o passado desconhecido pelo colonizador. Da mesma forma, toda narrativa funciona como dispositivo de memória do passado, reorganizado a partir do presente para conferir-lhe sentido. Mas cabe ressaltar que toda lembrança pressupõe esquecimentos. Transformar alguns dados em arquivo é também não transformar outros. Nesse sentido, histórias, culturas, práticas, crenças, sistemas dos africanos foram ocultados em favor de uma narrativa oficial da colonização, que definia o outro como um ser em estado de natureza para justificar os abusos de um eu em nome da nobre missão de levar a civilização e salvá-lo desse estado de selvageria.

É nesse sentido que as estórias contadas pela literatura sempre foram especialmente perturbadoras e necessárias, trazendo à tona e expondo os traumas ocultos do passado e do presente. Uma narrativa outra, às margens da institucionalidade, sem pretensões do poder da legitimação de uma verdade, é espaço fecundo para as vozes daqueles excluídos pela hegemonia de uma narrativa única, hipomnésica, excludente, atuante em favor de uma significação que serve a um propósito bastante específico.

A literatura nos países africanos assumiu, assim, no século XX principalmente o papel de terreno fecundo para a luta libertária dos países colonizados. E o início da segunda metade do século, com a intensificação da resistência em Angola, o desenvolvimento da luta armada, dos partidos, da consciência política, das livrarias, dos teatros é acompanhado também pela literatura. A luta contra as injustiças do sistema colonial é encabeçada também na escrita. E nesse sentido, Luandino Vieira destaca-se junto com nomes como Agostinho Neto, Castro Soromenho, Pepetela, entre tantos outros.

O autor, nascido em Portugal, mas que passara sua infância nos musseques de Luanda, assume para si o sentimento de pertença a Angola e a responsabilidade da atuação no movimento contra o colonialismo. Literariamente, sua contribuição é especialmente importante, pois sua obra abre espaço para uma estética híbrida, que se utiliza da tradição dos gêneros literários ocidentais e da língua portuguesa, mas para subvertê-los com os gêneros populares orais e com o kimbundo. Não há como se desvencilhar das marcas da colonização, a cultura literária escrita e o português pertencem também ao angolano, mas é a cultura literária e o português renovados, reinventados, enriquecidos pela inevitável presença material da cultura local que constituem a identidade angolana.

É com a ideologia dessa estética que Luandino publica Luuanda em 63. Uma obra que apresenta três contos ao estilo popular, dois com marcas textuais explícitas revelando a figura do tradicional contador de histórias no narrador. Se a história oficial, institucionalizada, tratou dos grandes marcos produzidos pelos grandes nomes, figuras centrais na disputa por poder, Luandino conta a história do cotidiano dos moradores dos musseques de Luanda, histórias de sofrimento, angústia, fome, violência, disputa, preconceito, mas também amor, amizade, compreensão, sendo perceptível assim os efeitos dos grandes marcos históricos nos pequenos marcos do dia a dia. 

Se na maior parte da década de 60 o autor esteve preso pela PIDE, sua força intelectual circulou amplamente, com Luuanda recebendo prêmios entre Portugal e Angola, e revelando uma outra narrativa sobre a colonização. Luandino estabeleceu com Luuanda um novo ponto de contato entre os países de língua portuguesa, refez pela contação de histórias, pelo manejo com a linguagem, o trajeto feito pelos portugueses pelo mar. No entanto, essa nova colonização foi uma colonização de narrativa plural, não hegemônica, de ensinamentos e de aprendizados. Nomes que vão desde Mia Couto a José Saramago valorizam sua importância na consolidação da literatura angolana. Lídia Jorge ressalta o outro lado importante da extensão da obra de Luandino, considerando-o marco revolucionário pela liberdade de expressão em Portugal. Luuanda colonizou toda a comunidade de língua portuguesa, mesmo seu colonizador, para mostrar que há narrativa outras, periféricas, marginalizadas pelos grandes processos históricos, assim como os donos de suas vozes.

Em um dos contos de Luuanda, “Estória do ladrão e do papagaio”, Xico Futa, personagem prisioneiro em Angola, ensina a Lomelino dos Reis, caboverdiano que vivia no país, tem mulher e dois filhos e rouba patos “porque não lhe permitem trabalho honrado”, os princípios do narrar, por meio da metáfora do cajuzeiro (bem antes da publicação de Mil Platôs e de Mal de Arquivo, por exemplo), ao se perguntar se há como isolar uma ação, se o seu fio não leva à outra e mais outra sucessivamente...Eis a reflexão:

É assim como um cajueiro, um pau velho e bom, quando dá sombra e cajus inchados de sumo e os troncos grossos, tortos, recurvados, misturam-se, crescem uns para cima dos outros, nascem-lhes filhotes mais novos, estes fabricam uma teia de aranha em cima dos mais grossos e aí é que as folhas, largas e verdes, ficam depois colocadas, parece são moscas mexendo-se, presas, o vento é que faz. E os frutos vermelhos e amarelos são bacados de sol pendurados. As pessoas passam lá, não lhes ligam, vêem-lhes ali anos e anos, bebem o fresco da sombra, comem o maduro das frutas, os monandengues roubam as folhas a nascer para ferrar suas linhas de pescar e ninguém pensa: como começou este pau? Olhem-lhe bem, tirem as folhas todas: o pau vive. Quem sabe diz o sol dá-lhe comida por ali, mas o pau vive sem folhas. Subam nele, partam-lhe os paus novos, aqueles em vê, bons para paus de fisga, cortem-lhe mesmo todos: a árvore vive sempre com os outros grossos filhos dos troncos mais-velhos agarrados ao pai gordo e espetado na terra. Fiquem malucos, chamem o tractor ou arranjem as catanas, cortem, serrem, partam, tirem todos os filhos grossos do tronco-pai e depois saiam embora, satisfeitos: o pau de cajus acabou, descobriram o princípio dele. Mas chove a chuva, vem o calor, e um dia de manhã, quando vocês passam no caminho do cajueiro, uns verdes pequenos e envergonhados estão a espreitar em todos os lados, em cima do bocado grosso, do tronco-pai. E se nessa hora, com a vossa raiva toda de não lhe encontrarem o princípio, vocês vêm e cortam, rasgam, derrubam, arrancam-lhe pela raiz, tiram todas as raízes, sacodem-lhes, destroem, secam, queimam-lhe mesmo e vêem tudo fugir para o ar feito mitos fumos, preto, cinzento-escuro, sinzento-rola, cinzento-sujo, branco, cor de marfim, não adiantem ficar vaidosos com a mania que partiram o fio da vida, descobriram o princípio do cajueiro... Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tábua de caixote, em frente do candeeiro; deixem cair a cabeça no balcão da quitanda, cheia do peso do vinho, ou encham o peito de sal do mar que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um pequeno bocado, no cajueiro. Então, em vez de continuar descer no caminho da raiz à procura do princípio, deixem o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio, e vão dar encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido. Mais ainda: se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterrada doutro pau. Nessa hora o trabalho tem de ser o mesmo: derrubar outro cajueiro e outro e outro... É assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem não podem ainda fugir sempre para trás, derrubando os cajueiros todos; nem correr sempre muito já na frente, fazendo nascer mais paus de cajus. É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas. (VIEIRA, 2008, p. 70-72)

O que Luandino faz com Luuanda, tomado como representativo de toda sua obra, é começar da raiz de um cajueiro que não o da história oficial, apresentar ao mundo o emaranhado vegetal da história da colonização a partir de uma árvore outra, perdida, escondida a um canto, mas que também é um dos fios desse processo. Parafraseando o narrador do último conto, “Estória da galinha e do ovo”, essa é a história da colonização de Angola por Luandino, se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e esses casos se passaram nesta nossa terra de Luanda.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2008.

CHABAL, Patrick. What is Africa? Interpretations of post-colonialism and identity. In: ROSA, Victor Pereira da; CASTILLO, Susan (orgs.). Pós-colonialismo e Identidade. Porto: Edições da Universidade Fernando Pessoa, 1998.

CORTE-REAL, Jerônimo. Naufragio, e lastimoso successo da perdição de Manoel de Sousa de Sepulveda e dona Lianor de Sá, sua mulher, e filhos, vindo da India para este reyno na náo chamada o galiaõ S. Joaõ, que se perdeo no Cabo de Boa-Esperança, na terra do Natal ... Disponível em: <https://archive.org/stream/naufragioelastim00cortuoft#page/n1/mode/2 up>. Acesso em 20/12/2013.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Sampaio. São Paulo: Loyola, 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e interidentidade.  In: __________. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. (Coleção Para um novo senso comum – v.4). São Paulo: Cortez, 2010. p. 227-276.

VIEIRA, José Luandino. Luuanda. Lisboa: Editorial Caminho, 2008.  

Notas

[1] RUCKERT, Gustavo Henrique.  Luuanda ou Minha Estória da Colonização (Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e esses casos se passaram nesta nossa terra de Luanda). In: V Encontro de Professores de Literaturas Africanas, I Encontro da AFROLIC, 2014, Porto Alegre.

[*] Professor Adjunto de Literaturas em Língua Portuguesa na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), onde atua nos cursos de Graduação em Letras e Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas. É vice-presidente (2019-2022) da Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos (AFROLIC). É vice-coordenador do Grupo de Estudos em Literatura, Arte e Cultura (UFVJM/CNPq).  Seu principal interesse de pesquisa envolve as relações entre literaturas contemporâneas de língua portuguesa e pós-colonialismo.

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