De favelas e musseques:

o espaço como resistência da memória em Conceição Evaristo e Luandino Vieira1

Gustavo Henrique Rückert (UFVJM)*

Cristina Arena Forli (UFRGS)**

 

Resumo: Se a colonização impôs a desagregação entre presente e passado ao violar os espaços sociais africanos, a representação literária de favelas e musseques em Conceição Evaristo e Luandino Vieira torna a aproximá-los. Este trabalho pretende então analisar o espaço nas obras Becos da memória e Nosso musseque. Para isso, toma a relação entre espaço e memória comunitária como aspecto comum às manifestações culturais oriundas da diáspora africana.

Palavras-chave: Espaço; memória; África.

Saudosa maloca, maloca querida
Di onde nós passemo
Os dias feliz de nossa vida
(Adoniran Barbosa)

1.1 Violência colonial, território e memória

Em palestra realizada na Oxford University, a romancista nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (2009) refletiu a partir do poeta palestino Mourid Barghouti que iniciar uma história pela expressão “em segundo lugar” é capaz de abalar a versão única e oficial que se tem de determinado assunto, ressaltando que genealogia, narração e poder são elementos indissociáveis na manipulação da memória social. Iniciamos assim ressaltando que, em segundo lugar, com as chegadas das primeiras caravelas na costa litorânea africana, deu-se início uma série de violações aos sujeitos africanos.

Para Jane Tutikian (2006, p. 93), a violência colonial pode ser entendida por duas faces: a violência explícita (casos de práticas de violência física) e a violência implícita (casos de prática de violência cultural, com a imposição da cultura europeia). Entendemos, contudo, que são duas faces complementares de uma mesma violência – o colonialismo, uma vez que o apagamento das diferenças (o outro visto como ausência de fé, razão e civilização) leva às práticas de sobreposição, sejam elas físicas ou culturais.

No âmbito das práticas coloniais, entendemos a violação dos espaços sociais dos povos colonizados como um dos principais instrumentos de concretização de sua violência. Para Félix Guattari e Suely Rolnik (1996, p. 323),

O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos.

No que se refere às culturas africanas, o território é um importante meio de articulação entre presente e passado, visto que a memória se manifesta em elementos dos espaços comunitários. Daí a desintegração causada pela desterritorialização (Guattari; Rolnik, 1996) forçada pelo colonizador. Nesse sentido, dois fatos históricos se destacam na história colonial portuguesa: a escravidão e a imposição de novos limites territoriais aos moldes do estado nação.

A necessidade de mão de obra na sua maior colônia, o Brasil, fez com que Portugal estimulasse o mais lucrativo e menos ético negócio da modernidade ocidental: a captura de sujeitos de suas colônias na África para posterior comercialização na condição de escravos na América.

De veiculação oral, a memória de diversas comunidades africanas dá-se pelo pertencimento do sujeito em seu espaço social. É somente por meio da integração no espaço comunitário que se tem acesso à palavra ritualizada dos mais velhos e à presença de seus antepassados em elementos simbólicos, como em determinadas árvores sagradas, por exemplo. Dessa forma, a população escrava do Brasil era constituída pela imensa pluralidade de culturas, de línguas e de cosmovisões presentes nos mais variados povos africanos. Se, por um lado, há a evidente desarticulação das tradicionais memórias africanas para aqueles sujeitos levados à força para terras brasileiras; por outro lado, o próprio continente africano vê as suas relações espaço/cultura desarticuladas pelo sistema escravista. Um exemplo claro disso é a formação da população humana no arquipélago que deu origem a Cabo Verde, formada essencialmente por escravos doentes ou rebeldes, abandonados à própria sorte nas ilhas desabitadas antes da travessia oceânica dos navios negreiros. 

A formação dos estados nacionais é outra violação do colonizador à integração dos sujeitos e seus espaços. Os limites territoriais nacionais africanos foram definidos entre os anos de 1884 e 1885 na Conferência de Berlim, na Alemanha. As fronteiras coloniais traçadas na reunião dos principais líderes europeus ignoram as fronteiras já existentes na organização social do espaço africano. Assim, a frágil unidade do estado nação é imposta como novo elemento político e cultural de articulação entre os africanos e seu espaço. Perder ou descentrar o espaço ancestral, nesse sentido, é mais uma vez perder a morada da memória, pois é nestes territórios que residem os antepassados. O território é assim elo entre o passado e o presente dessas culturas, sendo capaz de unificar a vida de seus membros em torno de um significado transcendental.

Dessa forma, abordamos a produção literária de Conceição Evaristo e Luandino Vieira como atos de resistência em relação à violação colonial das memórias africanas pela desarticulação entre os sujeitos e seus territórios. Tendo no espaço elemento fundamental, as favelas brasileiras e os musseques angolanos não são apenas panos de fundo para personagens e ações de suas obras, mas sim elemento estruturante delas. A urbanização de Brasil e Angola no século XX, com a crescente especulação imobiliária, marginalizou espacial e socialmente os sujeitos negros e pobres nas periferias dos grandes centros urbanos, podendo ser entendido como um novo episódio de desarticulação de sujeitos e espaços, violando a memória social.

1.2 A memória entre becos

Becos da memória, romance publicado em 2006 pela brasileira Conceição Evaristo, tem como narradora Maria-Nova, que apresenta ao leitor diversas histórias de moradores da favela em que habita e que não é denominada no romance. Essas narrativas se entrelaçam e não têm uma sequência ordenada, uma vez que são conduzidas pela memória da personagem. O cotidiano das personagens tem em comum o violento processo de desfavelamento, que ameaça a permanência de todos no local. Considerando o espaço como ponto de práticas sociais que moldam e formam os sujeitos, ele está, de forma muito estreita, relacionado às identidades.

Já de início somos mobilizados a pensar sobre essa questão com o questionamento que inicia a narração da história de Tio Totó: “Quem disse que o homem não gostaria de ter raízes que o prendessem à terra?” (EVARISTO, 2013, p. 31). Totó, já velho, fica inconsolável por ter de mudar-se novamente, “num momento em que seu corpo pedia terra” (EVARISTO, 2013, p. 31), conforme nos conta a narradora. A personagem nasceu após a Lei do Ventre Livre, mas carrega consigo o sofrimento de seus antepassados. Seu envelhecimento é progressivo e justificado por Maria-Nova devido à perda de esperanças, à falta de vontade de recomeçar e por, ao fazer um balanço de sua vida, ver a morte como única saída possível. Nesse sentido, com o processo de desfavelamento, essa personagem tem arrancado de si o que representava estabilidade em sua vida, a certeza de que permaneceria até sua morte onde enterrara seu umbigo, de que morreria no lugar onde tinha o sentimento de pertença, evidenciando a violência que essa prática colonial impõe a esse sujeito.

O desfavelamento ocorria enquanto os moradores ainda habitavam a favela. Eram fornecidas duas opções às pessoas: material, tábuas e tijolos para se construir um barraco em outro lugar ou uma quantia simbólica de dinheiro. Esta última opção era muito pior, pois o dinheiro, por ser tão pouco, acabava sendo gasto no local mesmo. Maria-Nova afirma que todos sabiam não ser a favela um paraíso. Contudo, estava localizada próximo ao trabalho da maioria. Muitos moravam no local há mais de meio século. Além disso, a presença de tratores e de buracos imensos, feitos a fim de aterrar o terreno, tornava perigosa a permanência no local. A saída era, então, imposta, de forma a não proporcionar condições mínimas para a realocação das pessoas nem para a permanência na favela até encontrar um novo lugar para viver.

Há uma pausa obrigatória no processo devido à morte de dois jovens, acidentados ao andar em um dos tratores, e devido às fortes chuvas, que tornavam o chão escorregadio e, portanto, impossibilitavam o trabalho dos tratores. Com essa pausa e o terreno muito escorregadio, as crianças conseguem tábuas para brincar de deslizar. Entretanto, se não conseguissem desviar, bateriam diretamente nos tratores parados. É o que ocorre com o menino Brandino, que acaba voltando do hospital paralítico. Esses acidentes geram um trauma ainda maior nos moradores, que vivem não só a violência de ter de sair do seu lugar de origem, mas também de ter de ver os que amam mortos ou com sequelas devido a esse processo. Impelidos pela revolta em relação ao que ocorreu com o menino, os moradores se mobilizam a fim de pedir a retirada das máquinas. No entanto, o que ocorre é a chegada de novos tratores para intensificar o trabalho, que estava parado. Com essa retomada, mais barracos são destruídos:

Maria-Nova andava pelos terrenos recentemente desocupados com poeira-tristeza-lágrimas nos olhos. No local onde estavam os barracos dos que tinham ido pela manhã, agora só restava um grande vazio. Era como um corpo que aos poucos fosse perdendo os pedaços. [...] Cada pé que afundava no macio da terra, sentia no peito o peso de nada. (EVARISTO, 2013, p. 123)

A favela assume, nesse trecho, o valor de corpo que vai perdendo os pedaços, que vai sendo aniquilado pouco a pouco. À medida que o espaço da favela é esvaziado, há também o esvaziamento da narradora e das demais personagens, que vão perdendo seus sentidos de ser. Em seguida, esse espaço-corpo assume novos contornos e passa a ser lar de novas criaturas, como o Buracão e os tratores-bichos, ambos com fome e ferozes.

O Buracão parecia mais feroz ainda. Antes, quando ele tinha barracos pendurados ao redor, a sua boca parecia um pouco menor. Agora os barracos já haviam desaparecido e as famílias também. O bicho pesadão havia aplainado toda a área ao redor do Buracão. Às vezes, vinha tão próximo que dava a impressão de que despencaria pelo precipício abaixo. (EVARISTO, 2013, p. 211)

A animalização do espaço e da máquina aponta para a representação da impotência do sujeito diante da violência dessas criaturas - o ser humano é coisificado a partir de uma lógica colonial, de subjugação do outro. Entretanto, esses sujeitos resistem, não se conformando com a situação. O inconformismo dos moradores gera outra forma de violência, que é a incitação do ódio entre os semelhantes como um meio de desarticulação popular. Negro Alírio, um dos moradores da favela, se dá conta disso: “[...] os grandes, os fortes, os que estavam do lado de lá, queriam que todos os do lado de cá fossem realmente fracos, bêbados e famintos. E o pior, eles queriam dirigir o nosso ódio contra nós mesmos [...]” (EVARISTO, 2013, p. 197). A imposição da desterritorialização causa, porém, o efeito contrário ao desejado, uma vez que cria a consciência da necessidade de se escrever uma nova história, tendo como sujeito enunciador quem foi oprimido, de se perpetuar a memória desses sujeitos. Nesse sentido, é por meio da escrita que se dá a reterritorialização.

Já no início do romance há um esclarecimento quanto ao motivo norteador da escrita de Maria-Nova e que indica a relação dessa personagem com o espaço:

Escrevo como uma homenagem póstuma à Vó Rita, que dormia embolada com ela, a ela que nunca consegui ver plenamente, aos bêbados, às putas, aos malandros, às crianças vadias que habitam os becos de minha memória.

[...]

Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela. (EVARISTO, 2013, p. 30)

A necessidade de narrar surge como uma forma de homenagear seus parentes, vizinhos e amigos, bem como de perpetuar essa história. A escolha lexical do verbo “amontoar” remete à disposição de coisas na favela, que é também a forma como a memória dessas pessoas se organiza na interioridade da própria personagem. Na medida em que Maria-Nova reivindica para si o direito à escrita e, portanto, à memória da desterritorialização por que passara seu povo, ela reivindica também, como mulher, negra e moradora de uma favela, um novo espaço, o espaço da reterritorialização (GUATARRI; ROLNIK, 1996), do reconhecimento dessas narrativas e desses sujeitos enquanto sujeitos históricos.

1.3 A memória entre missosso, conversas, cadernos e jornais do musseque

O romance Nosso musseque, publicado em 2003 pelo angolano Luandino Vieira, traz como narrador uma primeira pessoa sem nome e idade definidos. Esse narrador, homodiegético, conduz o foco narrativo para diferentes personagens com suas diferentes impressões e pontos de vista sobre a história de musseque que não é nominado. Essas estórias (“Zeca Bunéu e outros”; “A verdade acerca do Zito” e “Carmindinha e eu”) vão sendo narradas a partir das desordenadas idas e vindas da memória que o narrador vai compondo com suas pesquisas acerca de sua infância no musseque. Suas pesquisas têm como fonte cadernos de anotações, jornais e, sobretudo, os relatos orais dos mais velhos, seja em conversas informais ou nos tradicionais missosso.

Da mesma forma como para Maria-Nova, narrar surge então como tarefa de trazer à tona a memória formada pela pluralidade de vozes que compõem o espaço comunitário rememorado: “Talvez agora com as coisas que os anos e a vida mostraram, vindas de muitas pessoas diferentes, eu possa pôr bem a história do Xoxombo” (VIEIRA, 2003, p. 17).

Um dos casos mais significativos que é narrado ao se recuperar a história do local diz respeito a um quintal comunitário que existia no musseque. Repleto de árvores frutíferas, ele era um bem coletivo. Todos respeitavam o tempo de maturação das frutas e não as retiravam além de sua necessidade. Para as crianças, de um modo especial, tinha um importante valor, pois era o terreno preferido para as brincadeiras, visto que além das sombras e das frutas, o local ainda proporcionava a presença massiva de pássaros. No entanto, a chegada de sô Luís, branco, policial, pôs fim à alegria compartilhada pela vizinhança. Próximo à cubata que estava construindo, o quintal foi logo cercado e anexado à propriedade dele. “[...] as marteladas de sô Luís doeram no coração dos miúdos: sentiam que lhes roubavam, já não podiam ir mais brincar, descansar nas sombras, espreitar os pássaros” (VIEIRA, 2003, p. 38). Dessa forma, a apropriação do terreno coletivo pelo policial é bem representativa do colonialismo português, visto que os africanos possuíam suas formas de organização social e viram a noção moderna ocidental de propriedade privada lhes ser imposta por um sistema de espoliação em que Portugal simplesmente tratava de extrair o máximo possível de recursos das colônias para proveito próprio.

Se no nível individual sô Luís representa o português que toma os espaços comunitários africanos para si, no âmbito coletivo isso é representado pela especulação imobiliária no desenvolvimento urbano de Luanda. A partir da década de 1940, a alta do café promoveu intenso crescimento urbano em Angola. Assim, com a expansão imobiliária na capital, houve a expulsão dos moradores das zonas mais centrais para as periferias da cidade. Desse modo, a interação entre a sociedade e seu espaço na comunidade do musseque passou a ser ameaçada com os despejos, episódios trágicos na memória do narrador por ver sua articulação entre identidade e espaço ameaçada:

O tractor gritou alto, cuspindo fumo e rapidamente, com a faca bem afiada onde o sol batia, a máquina correu para a cubata e encostou-lhe, gemendo e bufando. Sentiam-se as paredes a resistir, o barro vermelho e as canas de mãos dadas a aguentar, gemendo baixinho, mas, depois, tudo era só um grande barulho e bocados de barro e canas e poeira vermelha subindo no ar, com o vento do mar a enxotar para longe e a máquina amarela a correr maluca com o tractorista a tossir. (VIEIRA, 2003, p. 81)

Da mesma forma que na obra de Conceição Evaristo, o trator, símbolo de desfavalemento e despejo, é representado de forma animalizada, revelando a desumanidade da violência praticada na violação dos espaços. A realidade da desterritorialização forçada, imposta pelo sistema colonial, acabou como contrapartida reforçando o sentimento de pertença comunitária ao espaço do musseque. Assim, a resistência daqueles que lutam pelo seu direito à territorialização cresce, pois o espaço do musseque está estreitamente ligado às identidades de seus moradores:

Nga Xica nem parecia a senhora que a gente conhecia. Todas as veias do pescoço e dos braços se viam debaixo da pele e a vassoura fazia voltas de ameaça. As mulheres murmuravam, umas insultando, outras pedindo o favor de deixar ficar uns dias até arranjar outra casa. [...] o tractorista, num minuto, estava cercado por um grupo ameaçador de mãos fechadas e bocas gritando. (VIEIRA, 2003, p. 78)

Por fim, o pertencimento do narrador à comunidade periférica do musseque em desmonte ou, de maneira mais ampla, a Angola (uma vez que o espaço híbrido do musseque é bastante representativo da realidade do país) é confirmada pela sua simbólica união afetiva com Carmindinha, personagem cuja descrição é permeada pelos aspectos físicos do local. Dessa forma, o narrador, que não nascera no musseque, representa-se a partir da condição de morador do local, tomando o território como produto da apropriação simbólica do espaço, sendo assim humanizado ao mesmo passo que humaniza. Na poética cena que reproduzimos abaixo, percebe-se não a simples inserção, mas a plena interação entre os sujeitos e o espaço, na qual ambos se significam:

Era já em baixo do muxixeiro, atrás da casa de don’Ana e aí senti o capim duro nos nossos pés, um cheiro de erva pisada vestindo os nossos corpos lavava nossas roupas despidas. As minhas mãos procuraram, cafofas, e um cheiro forte e bom, feito de todos os cheiros das casas e dos capins de nosso musseque e do calor da noite, saía nas pequenas mãos de Carmindinha. (VIEIRA, 2003, p. 185)         

Relacionar-se com a personagem, portanto, é fixar-se na comunidade e sentir-se pertencente a ela. O narrador ainda relaciona Carmindinha à estrela da ponta da constelação do Cruzeiro do Sul. Sabe-se que a constelação é visível somente no hemisfério sul do planeta, que em geral é marcada por territórios submetidos ao jugo colonial dos países do norte. Dessa forma, Carmindinha simboliza a direção do sul, ou seja, da insatisfação e da consequente luta contra a opressão colonial que o narrador e os demais personagens devem tomar. Direção essa que marcaria as décadas seguintes na história de Angola, com uma nova articulação entre espaço, memória e resistência, reivindicando a unidade entre todos aqueles que vivem “nos bairros escuros do mundo”, como escreveu Agostinho Neto (2008) no poema “Noite”.

1.4 O território da literatura

Guattari e Rolnik (1996) defendem que todo processo político de desterritorialização ocasiona, inevitavelmente, uma contrapartida de reterritorialização por parte dos sujeitos violados. Apropriar-se de seu espaço, humanizá-lo e significá-lo nos centros ocidentais de produção sentidos, caso da literatura, é descolonizar o espaço e, mais do que isso, descolonizá-lo da imaginação do colonizador, tomando-o novamente como espaço (sagrado) seu. Por isso, há uma latente preocupação com o território nas literaturas africanas e afrodescentes.

Dessa forma, a pluralidade de culturas, de línguas e de cosmovisões que a violência colonial juntou nos espaços de periferia urbana encontrou no espaço marginal oportunidade de reterritorialização, portanto nova articulação entre sagrado e profano, antepassados e sujeitos, passado e presente. Para o estudioso da memória oral Michael Pollack (1989, p. 2), são as memórias subterrâneas “que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à ‘Memória oficial’, no caso da memória nacional”. Assim, Conceição e Luandino afrontam as memórias oficiais, nacionalistas e imperiais ao trazer à tona as memórias subterrâneas, caracterizadas pela oralidade e pela pluralidade. E se essa nova memória, que aqui denominamos memória comunitária, uma vez organizada e resistente à memória hegemônica da nação, passa a ser mais uma vez ameaçada com os processos de desfavelamento, ambos autores encontram no espaço ocidental sagrado e letrado da literatura mais uma possibilidade de reterritorialização, assim como encontrou Maria-Nova. Por mais que durante cinco séculos o espaço, morada da memória africana, sofra com a violência colonial, ele continua teimosamente a viver, resistindo, agora, nas páginas da mais valorizada tradição cultural europeia, apropriada e transformada no contato com as tradições orais africanas em instrumento de memória e resistência para os sujeitos da África e da América. Desse modo, a literatura do espaço de Conceição e Luandino torna-se espaço da literatura. Espaço onde a voz, corpo da memória, encontra e permeia a terra das páginas.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma única história. (Apresentação na Universidade de Oxford em 9 de julho de 2009). Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=D9Ihs241zeg&feature=related>. Acesso em: 20/10/2016.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2013.

GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996.

NETO, Agostinho. Sagrada esperança. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1988.

POLLACK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, v. 2, n. 3. Rio de Janeiro, 1989.

TUTIKIAN, Jane. Velhas identidades novas: o pós-colonialismo e a emergência das nações de língua portuguesa. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2006.

VIEIRA, Luandino. Nosso musseque. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.

Notas

[1]  RUCKERT, Gustavo Henrique; FORLI, Cristina Arena. De favelas e musseques: o espaço como resistência da memória em Conceição Evaristo e Luandino Vieira. Anais do I Congresso Internacional e III Nacional Africanidades e Brasilidades. Vitória: UFES, 2016.

* Doutor em Literaturas Portuguesa e Luso-Africanas pela UFRGS; Professor Adjunto da Faculdade Interdisciplinar de Humanidades da UFVJM. Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

** Doutoranda em Literaturas Portuguesa e Luso-Africanas pela UFRGS. Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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