Mestre Tamoda: artimanhas discursivas e contrapontos linguageiros1               

Maria Nazareth Soares Fonseca*

Simplesmente fui e sou o apanhador e apontador daquilo que li na face, no sacudir dos ombros, no pestanejar dos olhos e nas mímicas de gente que me quis segredar o que lhe vai no íntimo e não consegue sacá-lo cá para fora com o medo, inexperiência e falta de jeito de dar o grito de aflição. (XITU, 1990)

A palavra humana tanto pode criar como destruir a paz. É como o fogo.


Hâmpâté Bâ
1993

A literatura angolana sempre teve, entre seus escritores, aqueles que mais se empenharam em ressaltar traços específicos da cultura, procurando fortalecer, no espaço da poesia ou da prosa, as vinculações entre a literatura e o contexto sócio-político, sempre atenta aos recursos da linguagem literária e aos costumes tradicionais transmitidos pela palavra oral. A presença de referências culturais nas literaturas dos jovens países africanos de língua portuguesa não enfraquee a capacidade de os textos assumirem feições próprias da elaboração artística, embora, muitas vezes, essas se apresentem entrelaçadas com motivações que precisam ser entendidas no campo de representações que as culturas elaboram.

Os textos literários podem ser assumidos por vezes como representações culturais, como propiciadores de conhecimento, ainda que a critividade seja o impulso gerador de novos arranjos em que palavra, conforme acentua Hampâtè Bâ (1993), congrega  forças que atuam sobre as diferentes potências de ação, configurando as relações do africano com o mundo que o cerca.

Refletir sobre a força da palavra em África e sobre os modos como a literatura tenta transportar suas vibrações para o texto escrito tem sido preocupação de vários estudiosos africanos ou não. É sobre essas questões que procurarei refletir, neste texto, tomando como referência um conto do escritor Uanhenga Xitu, o “Mestre Tamoda”, tornado clássico entre os estudiosos das literaturas africanas do Brasil.

Uanhenga Xitu, nome quimbundo do escritor Agostinho André Mendes de Carvalho, será reconhecido pelos recortes emblemáticos que efetua da vida rural amgolana, das sanzalas e dos seus habitantes, cuja fala habita os textos que o escritor escreveu procurando estar mais próximo do povo. Xitu, tendo vivido grande parte de sua vida no espaço rural, trouxe para a literatura, que produziu como auto-didata, a experiência adquirida no contato com várias partes de Angola, junto ao povo e na militância política, contatos que lhe deram a certeza de que é a prática que ensina fazer. Seus livros têm, por isso, um forte sabor de autenticidade já que a inspiração maior lhes foi dada pela vida, pelos contatos com a população das zonas interioranas de Angola, onde as tradições ditadas pelos mais-velhos em línguas nativas muitas vezes misturando-se com o português num processo de transição cultural entre o tadicional e o moderno. Pode-se dizer que são as lembranças da experiência trazida das zonas rurais onde ouvia histórias, lendas e cantos, assistia a cerimônias de casamento, de óbito e participava da rotina das comunidades que constituíram o gérmen da literatura que ele começou a escrever, quando o ócio obrigatório vivido na prisão2 o fazia relembrar o contato com os habitantes de diferentes lugares que conheceu. As experiências vividas nos matos e quimbos, ouvindo os velhos que lhe passavam as histórias e os preceitos que legislavam a vida de grupos étnicos foram o elemento fundamental de sua literatura que começou como simples apontamentos de lembranças cultivadas para dissipar os pensamentos que podiam levá-lo à loucura, conforme o escritor confessa a Michel Laban em entrevista  feita em 1989, publicada em 1991.

A retomada de escritos no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde,  após sua libertação e o maior distanciamento do material anotado em papel de embrulho para “dissipar alguns pensamentos que me podiam levar à loucura, ou msmo a cometer uma asneira de sucídio” (XITU, 1991, p. 114) acabam por revelar um escritor que caminha com desenvoltura pelo meio rural e o urbano angolanos, registrando o que viu e ouviu na maoioria das vezes em quimbundo e umbundo, e “conversas raras em português” (XITU, 1991, p. 114). O registro de suas vivências, ao ser publicado, mostram um escritor que, como afirma BICALHO (2002), pode ser considerdo um dos arquivos vivos da história de seu povo. Sua obra resgata costumes que o escritor observou no próprio meio em que nasceu e cresceu e que, como profissional na área da saúde, pode melhor observar. Em seus textos, encenam-se histórias do passado, lendas, vivênvias de guerras, costumes ligadas às tradicionais, muitas vezes tendo de dissipar o receio dos mais-velhos aos “filhos que sabiam ler e escrever”e que podiam trair, na escrita, “os preceitos e usos e costumes”(XITU, 1991, p. 115). BICALHO (2002, p.3-4)3 salienta ainda o fato de a literatura produzida pelo escritor não se distanciar muito de modos de fala utilizados pelos habiants das aldeias ou mesmo dos musseques urbanos, um uso predominante da palavra falada em línguas da tera ou em português oral. Seus livros atestam que mais importante que a “bagagem acadêmica” que o escritor afirma não ter é a capacidade de estar sempre atento às tradições de seu povo, aos valores preservados pelos mais-velhos, os eternos guardiães das tradições culturais. Esse é o material de que se serviu o escritor para produzir livros em que transparece “o homem da terra que  trabalha a sua lavra e aproveita o fruto velho para fazer crescer a sementeira nova.”(XITU, 2007, p. 11).

Mesmo não se considerando escritor, UX escreveu livros e produziu um tipo de literatura que se expõe como depoimento de quem “conheceu a vida por a ter vivido, e conheceu a vida por ter escutado de outros mais velhos o relato de suas experiências” (XITU, 2007, p. 9). Através de seus livros, o leitor pode compreender algumas das peculiaridades implantadas pelo colonialismo português em Angola e observar o quanto o escritor é crítico também em relação às mazelas que o governo pós-independência herdou do colonialismo.

O fato de o escritor ter trazido para a literatura experiências concretas da vida nas sanzalas, no meio do povo que vivia no meio rural, mas também em espaços urbanos, salienta aspectos importantes da cultura do escritor, exploradas por este texto que toma como referência o livro mais conhecido do escritor, Mestre Tamoda, publicado pela primeira vez em 1974. A criação da personagem Mestre Tamoda o tornará conhecido em vários países, principalmente porque o texto é muito bem construído, tendo como características mais fortes o acento irônico e os traços caricatos urilizados na criação da personagem e na descrição do lugar ambíguo que Tamoda ocupa numa sociedade colonial bastante estratificada. 

 Interessa-nos refletir sobre a importância de alguns elementos que aparecem nesse texto famoso do autor, capazes de dar ao leitor a oportunidade de refletir sobre questões relacionadas com o modo como a língua portuguesa, veículo da colonização em espaços africanos é encenada para aludir a forças imperiosas que, acionadas pelo sistema colonial, tinham em mente a preservação do poder da cultura portuguesa e do idioma que o encaminhou aos espaços colonizados. Ao criar a excêntrica personagem, o  Mestre Tamoda, Uanhenga Xitu toca fundo na questão do poder da palavra e nos preceitos que legitimam o seu uso em diferentes regiões do continente africano. O livro ressalta o poder da escrita, mas também reitera as incomprensões criadas por ela em espaços em que a palavra oral é o veículo preponderante na transmissão dos ensinamentos básicos necessários. Para que se possa melhor compreender as estratégias utilizadas pelo texo de Xitu  para encenar o modo como a palavra é utilizada em comunidades de expressão oral para fixar conhecimentos e preservar a unidade do grupo, a opinião de alguns teóricos africanos torna-se pertinente.

Honorat Aguessy (1977), nascido no Benin, considera ter sido por meio de aquisição e transmissão orais que os valores culturais se perpetuaram, em África. Por outro lado, o malinense Hâmpaté Bâ (1993) destaca o duplo poder da palavra humana, entendida como movimento que aciona forças latentes. Para este filósofo africano, a palavra tem o poder de criar, mas também pode destruir. O poder de criação e de destruição da palavra nasce da mesma força que habita o homem.

O significado dual da palavra, criação e destruição, vida e morte, revelação e apagamento é o fio que tece a trajetória do “Mestre” Tamoda quando acredita na força das palavras que retira dos dicionários e dos livros da lei e que com essa força, conseguiria transformar a cabeça dos “petizes” nas sanzalas. Nos percursos que a personagem faz, ao deslocar-se de uma povoação tradicional, a Sanzala, em direção a Luanda e, mais tarde, retornar à Sanzala, enfatiotado, com ares de habitante da cidade grande, a questão do duplo poder da palavra se concretiza.

Ao regressar à aldeia que o viu nascer, trazendo os bens que acumulou em sua estada na cidade: “os muitos romances velhos, entre eles um dicionário usado e carcomido, algumas folhas soltas de dicionário, cadernos garatujados com muito vocabulário, um livro de Como se escrevem cartas de amor, outro de Manual de correspondência familiar e alguns volumes de leis” (p. 6), Tamoda traveste-se no “intelectual” criado pela ideologia da assimilação, moldado pela máquina colonial que almeja substituir os cultores de tradições ancestrais por repetidores de normas e preceitos que garantiriam o funcionamento do sistema implantando em África. Ao instalar o processo de assimilação, a Máquina Colonial pretendia aniquilar os valores da tradição ancestral com a promessa de ascensão social e da conquista de privilégios proporcionados pelo “bem falar”. Não é por acaso que o “Mestre” Tamoda, educado informalmente na arte da escrita, faz das palavras difíceis de serem compreendidas um emblema do conhecimento que ostentava com grande prazer.

Michel Laban4, estudioso das literaturas africanas de língua portuguesa, explica-nos que, durante o período colonial, era comum em Angola - mas a situação se dá também em outras regiões marcadas pela colonização -  a existência de “pretos” que cultivavam o dom da palavra e da escrita e serviam de intermediários entre os nativos, que só falavam as línguas locais, e os vários setores da Administração colonial. Até os primeiros decênios do século XIX, os comerciantes negros que viviam em Ambaca, por isso, ambaquistas, tinham um comércio intenso e direto com os portugueses. A região ficou conhecida não apenas por causa desse comércio entre portugueses e comerciantes africanos desde o século XVII, mas também porque, na região, foram instaladas missões religiosas que desenvolveram o ensino do português e o ensino profissional. Muitos naturais de Ambaca, por terem tido condição de amealhar dinheiro e serem donos de propriedades, adotaram o português como língua de uso e fizeram do “falar bem” uma forma de ascensão social. Esses indivíduos, porque se sentiam próximos dos brancos ou mesmos brancos, esmeravam-se no vestir e no bom uso da língua portuguesa. No entanto, embora a presença dos ambaquistas interessasse a ambas as partes, quando a colonização portuguesa em África se intensificou, na passagem do século XIX ao XX, eles foram sendo desprezados e até severamente criticados o que contribuiu para o sentido pejorativo que a palavra ambaquista passou a ter, conforme explicações dadas por Laban no texto referido: “um indivíduo palavroso, rebuscado e, talvez, um antiquado de maneiras”.

O “Mestre”, criado por Xitu à imagem desses indivíduos que durante largo tempo assumiram as intermediações entre a Administração colonial e os nativos, é uma personagem deslumbrada com o brilho da cultura letrada, embora não consiga evitar o desprezo dos habitantes mais velhos da sanzala, que viam com olhos muito críticos essas pessoas que lhes pareciam vendidas ao poder que os oprimia. No entanto, se considerarmos, como querem vários estudiosos, esses transgressores foram bastante úteis ao sistema colonial e também aos nativos, porque, além de ocuparem uma posição de certa forma privilegiada, eram admirados e mesmo bajudados. Por esses motivos, pode-se compreender porque os jovens da sanzala, no livro de Uanhenga Xitu,  admiravam tanto o “Mestre”.

Alguns detalhes da vida rural e das diferentes aldeias que o escritor percorreu no desempenho da profissão de enfermeiro sanitarista podem nos ajudar a compreender os vários lugares ocupados pela personagem na sanzala. A narrativa, ao apreender os costumes da tradição e os recursos utilizados pelo escritor para demonstrar as diferentes tensões provocadas e assumidas pela língua levada a Angola por Portugal, acaba por funcionar como um relato importante do processo de assimilação ainda que visto pelo viés da ironia e da sátira, fazendo da personagem Tamoda um ator privilegiado da tradição do ambaquismo, vista tanto pelo prestígio que adquiriu quanto pela gama de significados pejorativos que passou a legitimar.

O lugar ocupado pelos ambaquistas, marcado por fortes contradições, fica bem representado, na ficção, pela figura de Tamoda. Ao mesmo tempo em que a caracterização da personagem expõe para o leitor as peripécias vividas por aqueles que adotavam o modo de ser do português, almejando alcançar o espaço ocupado pelos brancos, o texto também autoriza uma leitura a partir do que se elabora no avesso da situação que pretende ridicularizar. Essa outra visão, também marcada por fortes traços de ironia, permite que se perceba o ridículo não apenas na personagemTamoda, mas entranhada na situação que o “Mestre” quer imitar. Essa interpretação está, de certa forma, próxima à de alguns estudiosos que se voltaram às  transgressões e inovações linguajeiras presentes em obras de escritores africanos. Dentre esses estudiosos, destacam-se, com relação à obra de Xitu, Salvato Trigo e Russel Hamilton.

Salvato Trigo ressalta a ambivalência da escrita de Uanhenga Xitu quando acentua que “UX consegue retratar a realidade de seu povo de forma irônica, calada e gozadora(TRIGO, 1982). Já Russell Hamilton salienta que “UX é inequivocamente um dos principais modernizadores da literatura angolana, ou melhor dizendo, é inequivocamente um dos maiores africanizadores da literatura angolana” (HAMILTON, 1983). O termo “africanizador”, na observação de Hamilton, indica a importância do texto que, ao contar a estória de um indivíduo vaidoso que, advindo do meio rural, se encanta com os costurmes urbanos, dentre os quais o da valorixação da escrita, pretende ressaltar as mazelas que o sistema colonialista criou na África. Por isso, é preciso considerar que Uahenga XiTu, no livro em referência, de forma irônica sempre, alude a situações em que tanto o intelectual como o político africano apoderrsm-se da escrita como uma forma de ascensão social e de ganho de poder, embora pudessem também considerar a escrita como um dos caminhos que poderiam garantir a transformação da sociedade.

Outros aspectos importantes do texto de Uanhenga Xitu revelam como o Mestre Tamoda possibilita a construção de diferentes significados que podem ser alcançados a partir do olhar cuidadoso que se lança sobre o texto. Se considerarmos, por exemplo, a importância dada aos aspectos ligados ao corpo, neste texto de Xitu, podemos inferir que detalhes do vestuário da personagem, do seu modo de andar e da maneira como ele se coloca em exibição, podem ser importantes para a compreensão de performances que fazem deslizar sentidos fixos. São teatrais os gestos de Tamoda quando retira da mala, na aldeia em que nasceu, os comprovantes de sua transformação e o atestado dos conhecimentos adquiridos com a intenção de exibi-los aos que o foram saudar. BICALHO (2002) interpreta esta atitude teatral como “o gesto inaugural da volta à Sanzala”, como um significante da transformação de Tamoda pela escrita. Entretanto, deve-se ressaltar que, na cena, a cultura da personagem se apresenta rasurada em virtude da inusitada coletânea de livros tirados teatralmente da mala: dicionários – alguns já reduzidos a folhas soltas – livros de leis, manuais de escrita amorosa e de correspondência militar.

Os bens mais importantes são formados pelos dicionários, cujas palavras o “Mestre” audacioso não se preocupa em guardar, já que o uso de termos difíceis para impressionar os moradores da sanzala não exigia explicações pormenorizadas do seu significado. Quando um aluno mais atrevido ousava pedir-lhe alguma explicação, o “Mestre” não tinha nenhuma dificuldade em explicar, por exemplo, que “o feminino de muchacho é muchachala5! “, sem se preocupar com os sentidos que os sons da palavra inventada poderiam construir em quimbundo, muito próximos de regiões do corpo que o pudor evitava nomear em público. Não por acaso a palavra provoca a irritação dos mais-velhos e faz das donzelinhas “muchachalas” objeto de troça entre os jovens.

Pode-se dizer que o texto também acena para a ocupação que o “Mestre” faz do lugar destinado em muitas culturas africanas ao griot, aos mestres da arte da palavra, tipos de contadores que,“possuindo inteligência e talento excepcionais” e conhecimento surpreendente de diferentes tradições, são os transmissores da história que deve ser preservada (ESPÍRITO SANTO, 2000, p. 33). Em muitas regiões africanas o griot é o guardião da palavra e preserva uma tradição que faz da memória o elemento mais importante para as culturas ágrafas. Também neste caso, o texto de Xitu trabalha com significados ambivalentes. Ao ridicularizar a participação do “Mestre” em rituais em que os habitantes da sanzala se reuniam para comer castanhas e contar histórias, o texto também permite que se perceba a invasão dos espaços de predominância oral por saberes registrados pela escrita, ainda que, no caso de Tamoda, as estórias não se formam com as palavras “ocas” que o “Mestre” e os seus discípulos usavam à revelia. A escrita também é ridicularizada pela forma como se mostra descontextualizada do contexto africano. Percebe-se, pelo emprego de estratégias que privilegiam sempre as ambiguidades, a intenção do texto de satirizar não apenas os vaidosos ambaquistas, mas também o sistema educacional levado às colônias e conduzido por professores que muitas vezes adotavam as atitudes de Tamoda. É através de recursos narrativos que, lúdica e maliciosamente, indicam que as ambivalências construídas pelo texto não têm a intenção de fazer de Tamoda um “bode expiatório”, mas de percebê- lo como uma espécie de “vítima sacrificável”, pois de certo modo a personagem indica um momento em que a palavra oral, guardiã das tradições ancestrais, vai sendo substituída pelos documentos, pelo registro da letra, deixando claras muitas das tensões alusivas à relação entre oralidade e escrita.

Tamoda, ao valorizar o que está registrado em dicionário acaba por deslocar a importância da escrita, pois demonstra o quanto o seu ensinamento é precário nas sanzalas. Ainda que o grosso dicionário, o ndunda, pudesse comprovar que os registros dos acontecimentos poderiam também ser feitos em outro sistema, os métodos de ensino utilizados por Tamoda, e pela professora são bastante ineficazes. A (des)valorização da escrita está de certo modo indicada pelos atos de Tamoda de distribuir “folhas soltas do dicionário para serem decoradas pelos miúdos” (p. 8) ou de insistir no aprendizado de lições que iam sendo gravadas “nas ardósias e nas capas do caderno do vocabulário” (p. 7),  sem se preocupar com a organização das idéias. O aprendizado da escrita fica abalado pelo lugar incômodo ocupado pelo “Mestre”, acossado pela chacota e pelas peraltices dos miúdos: “- Lungula, Tamoda! Lungula, Tamoda!... (p. 8).

No entanto, é preciso ressaltar que sua estratégia para conquistar os meninos tem sempre resultado muito positivo, pois a criançada adora o jeito janota deste “sô-psor” que, embora adote rituais típicos do ambaquista, não deixa de subverter também este lugar, pois imprime às lições que dá uma forma mais prazerosa de aprendizagem. Reitere-se que, ao fazer da aprendizagem uma atividade lúdica, o “Mestre” de alguma forma recupera elementos da transmissão oral de contos e lendas que ajudam a formar, nas aldeias, as novas gerações. As estratégias utilizadas pelo “Mestre” são, portanto, o ponto em que significados divergentes se produzem em tensão. Seduz as crianças, as raparigas, utiliza um linguajar que o afasta dos mais-velhos e dos defensores da tradição, mas, ao mesmo tempo, imprime uma forma de ensino que recupera a alegria e dá lugar ao prazer da convivência.  Embora vaidoso, loquaz, sua relação com as crianças é sempre muito próxima o que o faz diferente da professora da escola, sempre pronta a usar a palmatória e outras formas de repressão.

É importante, para que se destaquem as contradições que se mostram nas atitudes de Tamoda, acentuar a sua diferença com relação à professora da escola colonial. Embora sejam eles defensores dos valores propostos pelo sistema colonial, ciosos de que é preciso utilizar a língua portuguesa para se impor entre os colonizados, defendem o uso da língua a partir de métodos distintos. A professora segue o modelo proposto pela Máquina Colonial e imprime ao que ensina o rigor da obediência, castigando com a “vara e a palmatória” (p. 13) as transgressões dos alunos. Tamoda, por sua vez, está mais interessado no espetáculo proporcionado por sua figura e pelas  palavras que inventa, dando asas à sua imaginação. Sendo ambos assimilados, falam, entretanto, de lugares diversos. A professora tem como missão reafirmar as diretrizes do processo de dominação. Por isso proíbe aos alunos usarem as “palavras do português do Tamoda”, porque percebe nas atitudes do “Mestre” uma afronta à sua posição. O método “disparatado” do “Mestre” abala um lugar que, na sociedade colonial, sempre foi ocupado pelos senelhantes a ela, pelos que se submetiam aos desmandos do colonizador para alcançar um espaço de maior visibilidade. Tamoda, por estar mais preocupado com o espetáculo que exibe vestindo “calções e camisas bem brancas, meias altas e capacetes também da mesma cor do fato” (p. 8), além dos sapatos chiadores  - ié-ié, ié-íé, íé-ié - agride menos os alunos, porque, apesar de trazer de Luanda novidades que abalam a tradição, tem sempre um sorriso aberto para recebê-los:

Não faz mal, Mufula não tem cachonda – disse o “mestre sorrindo, abertamente como era seu hábito. –Vamos, meus muchacharia, perguntem à vontade. A cabeça do Tamoda é um ndunda (ah!, ah!, ah!...) (p. 11).

Em virtude de seu comportamento inusitado, Tamoda, ao propiciar o fortalecimento das várias tensões entre os costumes da cidade e os do espaço rural, ameaça tanto os ensinamentos da tradição quanto aqueles que estavam sendo incutidos pela escola. O seu estilo, uma mistura de galhofa e de caricatura, também acaba por transformá-lo em uma ameaça. Ainda que seu comportamento espelhe, de certa forma, a submissão dos assimilados, o “Mestre” estabelece outras regras de comportamento que vão desde a proposta pelo uso da kikema, fórmula de fazer frisos nos cabelos que deixou, na sanzala, muitas cabeças chamuscadas, até o uso de sapatos que riem como o “Mestre”: “... ié ié, ié-ié, ié-ié” (p. 8 ) e o andar gingado que incentiva os apupos e a gritaria: “Lugula, Tamoda!” (Idem, ibidem).

Desse modo, os costumes implantados pelo mestre caricato, se de um lado agridem drasticamente a tradição, levando os mais-velhos a denunciá-lo à Administração, por outro são também ameaça às ordens dadas pelos encarregados de policiar a população. O jeito irreverente do “Mestre” desestabiliza, portanto, espaços e poderes que se colocam em oposição. Por isso, é preciso destacar na caracterização da personagem os traços que fazem dele um transgressor não apenas do universo da sanzala, lugar do seu nascimento, mas de uma ordem mais ampla que produziu os “invejosos”6, aqueles que, conforme acentua Frantz Fanon, por serem destituídos de uma consciência crítica, só queriam ocupar o lugar dos que os oprimiam. O escritor martiniquense percebe a compartimentação do mundo colonial – através das metáforas de uma cidade saciada, a dos brancos, e de uma cidade faminta, a dos negros - como um lugar de intensos conflitos porque é geradora de um mal-estar psíquico que inibe a maturação de formas de consciência crítica e aguça o desejo de ser outro, diferente de si.

 O raciocínio de Fanon nos permite compreender o comportamento de Tamoda e as diferentes  transgressões que ele produz  quando segue os impulsos de seu desejo de levar à sanzala um novo saber que está legitimado pela escrita, não importando onde ela esteja impressa. Por isso, para que se possa perceber os diferentes sentidos provocados por essas transgressões, é preciso avaliar tanto a simpatia que a sua figura despertava entre os jovens, que recebem o novo mestre “com grande interesse” (p. 7), como o desagrado dos mais-velhos, que vêem  no comportamento do janota uma ameaça às tradições. A intensidade dos conflitos que a personagem acirra acentua as divergências intensas existentes entre o mundo urbano e o rural durante a colonização.

Mesmo tendo vivido em dois espaços, o urbano e o rural, Tamoda acaba não se inscrevendo em nenhum deles. Por esse motivo ele é sempre uma personagem marginal. Da cidade traz os destroços de uma cultura sem serventia, de que as páginas soltas dos dicionários são uma bela metáfora. Na senzala, reitera a situação dos que partem e que, quando regressam, ficam à margem, à deriva. Deve-se considerar que o homem que retorna da cidade ao mundo rural é considerado um estranho e que, para viver na sanzala, alguns de seus valores terão de ser obedecidos.

A descrição do conflito em que se envolve Tamoda, no Conselho da Administração, traz à cena uma outra personagem importante do cenário da colonização portuguesa em África: o cipaio que precisa ser também identificado para que se compreenda melhor a participação no no texto de Xiru. Os cipaios eram, nas províncias ultramarianas portuguesas, na época da colonização, africanos assimilados que assumiam diferentes funções junto à Administração colonial. Constituíam uma espécie de milícia e exerciam várias funções: eram policiais, fiscais, auxiliares da administração e também intérpretes das línguas nativas, porque os funcionários portugueses não dominavam as línguas africanas ou, em várias situações, recusavam-se a aprendê-las por considerarem-nas inferiores e próprias dos pretos.

No texto de Uanhenga Xitu, os cipaios da Administração desprezam a arrogância de Tamoda. Por isso jogam com os recursos que têm para destruir o janota que se apresentava “de calças brancas, camisa de boa popelina, casaco de seda-da-china” (p. 18) e se valia de palavras esquisitas que acentuavam a distância entre eles e o preto que falava “muito português” (p. 17). O estilo verborrágico do “Mestre” e suas atitudes teatrais comprovam a diferença deles com relação negro travestido de branco importante e instigam a curiosidade dos cipaios:

Mas o gajo põe puto tudo de dicionário. Deve ser funcionário.

Quem?! Aka mukuá fuhaa maié!... Kingilé o jiboto ojo nhí capacet’oko tuondo musumbe eko nu makoka... (alguns são pelintras, uns zé ninguéns... espere, não tarda muito que fique sem esses sapatos e o capacete a troca de mandioca”.

Não diga assim, como o rapaz está a falar não é pessoa que vai ficar na enxada ou na estrada! ( p.17).

Mais uma vez as trangressões construídas pelo comportamento de Tamoda exibem-se em complexidade. Na cena, todas as personagens ocupam lugares demarcados pelo mundo colonial, mas ficam em graus diferentes de afastamento ou de aproximação dos nativos e dos brancos. Os cipaios, por serem mais necessários ao sistema, circulam com maior desenvoltura junto ao Administrador, e sua submissão ao mais poderoso fica marcada claramente no texto: “O cipaio correu para tomar a pasta das mãos do Administrador. Antes levou a mão à pala, fazendo continência” (p. 19). Já Tamoda, embora se assemelhe a um homem-culto, a pessoa que não “vai ficar na enxada ou na estrada!” (p. 17), é visto pelo Administrador apenas como um nativo que não cumpriu a obrigação de trazer consigo os documentos exigidos por lei. Por isto a sua posição, na Administração Geral, é inferior à dos cipaios pelos quais é enxovalhado. Novamente, o caricato “Mestre” fica fora dos lugares marcados pela sociedade colonial. Mais uma vez o seu comportamento expõe a ambigüidade das leis que governavam o mundo colonizado. Não bastava vestir-se como branco ou falar como “um gajo que põe puto tudo de dicionário” (p. 17). A linha forte que separava o mundo dos brancos daquele ocupado pelos não brancos pautava-se por leis severas que a leitura dos manuais de direito e o uso das palavras dicionarizadas eram ineficazes para apagar. Por essa razão, apesar da aparência de professor e do fato de haver trabalhado “como criado do Doutor Desembargador, de generais e coronéis, de médicos de grande fama no Hospital Central de Luanda” (p. 20), Tamoda não se ajusta à classe dos “assimilados”, pois sequer pode apresentar os documentos que o identificam como tal.

 A construção da cena, ao imprimir força às falas dos cipaios e de Tamoda e valorizar os sentidos que se produzem nos entre-ditos, permite que determinados dados das relações entre negros e brancos, no mundo colonial, venham à tona. Na fala dos cipaios o que há de mais interessante talvez sejam os termos que remetem a práticas de barganhas, a pagamento de favores e a comportamentos “podres”, próprios a qualquer sistema que faz da corrupção uma moeda de troca. O diálogo que se segue demonstra esse comportamento explicitando-o nos sentidos produzidos pelos uso de termos como “bengala” e “mata-bicho”:

– Está a ver, este não dá para lhe dar uma bengala.

– “Não dá porquê, mas já lhe bateste a bengala?

– Ó nosso cabo, eu queria lhe dar mesmo o kitukulu, mas tem a língua muito depressa, puto menha. Quando o nosso cabo vê um preto falar muito português na Administração não dá para lhe pedir mata bicho, pode-se queixar a Administração, é perigoso. Vale mais pedir um branco. O nosso cabo não lembra mais que passou com nosso Kambengala”? ( p.30)

Como se depreende do trecho citado, “bengala” e “mata bicho” são marcas do discurso das relações entre pretos e brancos, no mundo colonial, e relacionam-se com as práticas de corrupção aprimoradas pelos que têm trânsito entre os dois espaços porque dominam a língua do colonizador e também as africanas. Esse lugar privilegiado não é ocupado, na cena, nem por Tamoda e nem pelo Administrador. O Administrador, pelo que nos informa o texto, não domina a língua dos pretos. Tamoda só fala o português dos dicionários, tão incompreensível para os brancos como para os negros que compreendiam a língua dos colonizadores. Logo Tamoda se expressa em  uma língua que não passa pelos caminhos da sanzala e nem pelos meandros da Administração. Sua língua, fossilizada nos dicionários, não estabelece elos comunicativos e, como se vem afirmando, marca o sem-lugar da personagem, que, apesar de suas várias máscaras, não consegue alcançar os espaços ocupados por aqueles que, pertencentes a uma sociendade altamente hierarquizada, sabem que o domínio da língua do poder consegue diminuir as distâncias que os separam das vantagens que esse mesmo poder distribui.

A esse respeito BICALHO (2002) argutamente observa:

O absurdo da situação (expressa pela cena) nos leva a perceber a intenção de denúncia do texto. Ao explicitar a exclusão dos negros em sua terra, como também a incapacidade do colonizador de valorizar aqueles que, cumprindo o Estatuto Colonial, poderiam até ser cooptados a seu serviço, UX expõe a insanidade do poder colonial. Por outro lado, o saber de Tamoda, com as distorções apresentadas no uso da língua portuguesa, torna ridícula a dominação. Pelo viés da ironia e da caricatura, o texto mostra que a assimilação acentua a separação entre a sanzala e a Administração. Cada uma se manteve isolada ao longo da colonização, reafirmando a sua língua. A língua intermediária, que feria em muito os brios do colonizador, é, no entanto, uma realidade e a figura de Tamoda, ao utilizá-la, coloca-se como ameaça ao sistema que oficializa a compartimentação.7

A observação da estudiosa salienta meandros que fazem com que a figura caricata do Mestre Tamoda se preste a produzir sentidos que extrapolam a simples caricatura ou a crítica àqueles que, como ele, deixaram-se seduzir pelo mundo das letras fixadas em folhas de papel, afastando-se da comunicação viva que o universo da oralidade legitima. As várias contradições da personagem encenam as do mundo colonial e também aquelas que, passados os tempos difíceis da colonização, ainda se mantêm em África.

Uanhenga Xitu, insistindo em imprimir ao seu texto recursos narrativos advindos da observação direta de diferentes situações que a vivência no mundo rural o habituou considerar, constrói uma personagem emblemática que nos dá condição de melhor compreender a circulação da palavra em determinados espaços africanos dominados pela colonização e os esforços que a literatura, arte da palavra escrita, desenvolve para encenar os conflitos motivados por diferentes formas de cerceamento de ações e energias vitais para o africano e para o ser humano em geral.


Notas

[1] A versão original deste texto foi publicada, em Luanda, no livro O homem da Quijinga, organizado por Dario de Melo e Jacques dos Santos, da Editora Chá de Caxinde, em 2007. Na versão atual, foram feitas atualizações de dados e datas e algumas alterações.

[2] O escritor esteve preso no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, por motivos políticos, de 1962 a 1970.

[3] Depoimento dado pelo escritor no Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, USP, São Paulo, 1983. Apud BICALHO, Solange. Voz, letra e exclusão em três obras de Uanhenga Xitu. (2002)

[4] A informação dada por Michel Laban sobre os ambaquistas consta do texto “Ambaquista e literatura”, disponibilizado pelo site da União dos Escritores Angolanos, incluído nas referências, no final do texto.

[5] Segundo o texto, o termo “muchachala”, porque tem som próximo de “muxaxala”, poderia ser entendido com os sentidos que a palavra tem em quimbundo:  “sulco nadegueiro ou via retal” (p. 9).

[6]  - Refiro-me à observação de Fantz Fanon sobre a “doença” provocada pela colonização, mundo dividido em dois, que leva o colonizado a desejar ocupar o lugar do colonizador. Cf. “Da violência”. In: Os condenados da terra  (1979, p. 29).

[7]  - O termo é utilizado por Frantz quando se refere ao sistema de compartimentação legitimado pelo Estatuto Colonial, FANON (1976).

Referências

AGUESSY, Honorat. Visões e percepções tradicionais. In: SOW, Alpha I. et al. Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 95-136.

BICALHO, Solange de Oliveira. UANHENGA XITU: VOZ, LETRA E EXCLUSÃO. Belo Horizonte: PUC Minas (Dissertação de Mestrado – inédita).

ESPÍRITO SANTO, Carlos. Tipologias do conto maravilhoso africano. Lisboa:  Cooperação, 2000.

FANON, FRANTZ, Os condenados da terra. Trad. Osé Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Mestre Tamoda: artimanhas discursivas e contrapontos linguajeiros. In: MELO, Dario de; SANTOS, Jacques dos. O homem da Quinjinga. Luanda: Chá de Caxinde. 2007, p. P. 113 – 128.

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Palavra africana. Correio da UNESCO, ano 21. n. 11, nov. 1993. p.16– 26.

LABAN, Michel. Encontro de Escritores: Angola. V. I. Porto: Fundação Engenheiro Antônio de Almeida.1991.

LABAN, Michel “Ambaquista e literatura”. In: www.ueangola.com/críticas-e-ensaios/item 146-ambaquista-e-literatura. Acesso em maio de 2003 e abril de 2021.

RUSSELL, Hamilton. Literatura africana: literatura necessária. V. I. Lisboa: Edições 70. 1983.

TRIGO, Salvato. Ensaios de literatura comparada afro-luso-brasileira. Lisboa: Vega {s.d.}.

XITU, Uanhenga. Mestre Tamoda & Kahitu. São Paulo: Ática, 1984.

XITU, Uanhenga.O ministro. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1990.

XITU, Uanhenga. O que Uanhenga Xitu falou. In: MELO, Dario de;  SANTOS, Jacques dos. O homem da Quijinga. Luanda: Chá de Caxinde, 2007.

 

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* Maria Nazareth Soares Fonseca é Professora Aposentada UFMG. Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995 – 2018. Pesquisadora 1D do CNPq. Coordenadora Grupo de Estudo Estéticas diaspóricas desde 2010. Autora dos livros: Brasil Afro- Brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas Africanas de Língua Portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos (2008), Mia Couto: espaços ficcionais (2008). Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Coorganizadora do volume 4 da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011).

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