João Vêncio: os seus amores

– narrativa e tessitura de um colar de missangas1

Luciana Brandão Leal*

Mas um dia eu terei a asa como vocação,
irei buscar aquela pronúncia nua
e interior das alturas
quando dizemos pássaro ou ave
ou gravitação.
Há uma ambição paciente neste modo de estar,
de querer tocar a vida por cima
como se nela houvera um cume
ao qual nos é vedado chegar. 

Eduardo White

 

Resumo:

Este artigo propõe uma leitura da obra João Vêncio: os seus amores, do escritor angolano Luandino Vieira. Busca-se compreender a metáfora do "colar de missangas" como representativa da construção do discurso e da tessitura de memórias da personagem João Vêncio. Para tanto, propõe-se uma reflexão sobre a modalidade discursiva inovadora sugerida pelo autor nesse romance, que subverte a língua portuguesa padrão, privilegiando a oralidade, os provérbios e outros aspectos que aproximam tais memórias ficcionais do texto poético.

Palavras-chave: “João Vêncio: os seus amores”, Luandino Vieira, literatura, história, memória, oralidade.

Abstract:

This paper proposes a reading of the book “João Vêncio: os seus amores”, by the Angolan writer Luandino Vieira. It seeks to understand the metaphor of the "colar de missangas" as representative of the construction of the discourse and the tessitura of memories of the character João Vêncio. For that, a reflection on the innovative discursive modality suggested by the author in this novel is proposed, which subverts the Portuguese standard language, favoring orality, proverbs and other aspects that bring such fictional memories closer to the poetic text.

Keywords : “João Vêncio: os seus amores”, Luandino Vieira, literature, history, memory, orality

 

Os narradores de Luandino Vieira são “griots” no cenário da produção literária angolana. Como se sabe, os “griots” eram os contadores de histórias que guardavam tradições de seus povos. Nessa missão, eles transitavam pelos espaços africanos, fortalecendo relações comerciais, transmitindo cânticos e danças tradicionais ao som de instrumentos como Agogô e Akoting. Na antiga África, os “griots” tinham a missão de ensinar sua cultura e disseminar tradições ancestrais, por meio das narrativas orais e pela tessitura de “colares de missangas”. Nesse empenho, eram eles responsáveis por transmitir os “ritos”, os “mitos”, os “cânticos” e as “narrativas” da tradição para crianças e jovens.

Pela voz de seus narradores, Luandino Vieira, como “griot” contemporâneo, articula a oralidade, as oralidades, tornando-se, sem dúvida, um dos grandes ficcionistas das Literaturas de Língua Portuguesa nos séculos XX e XXI. Motivado pela paixão por Angola e, especialmente, por Luanda, declara seu pertencimento a esse espaço, incorporando o nome da cidade ao seu próprio nome. Com dez livros publicados, traduzidos para várias línguas, sua obra tem sido seguidamente reeditada. Os prêmios acumulados comprovam o destaque desse ficcionista e atestam a sua relevância no cenário da literatura contemporânea escrita em Língua Portuguesa. Podemos citar, entre outros títulos: Luuanda (1964); A vida verdadeira de Domingos Xavier (1974); Velhas estórias (1974); No antigamente, na vida (1974); Nós, os do Makulusu (1975) e João Vêncio: os seus amores (1979). Boa parte dessas "estórias" foram produzidas no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, onde o autor ficou preso, assim como outros intelectuais e escritores envolvidos nos movimentos de luta pela libertação colonial. Sobre o período em que esteve preso e sua participação no movimento de combate, Luandino Vieira afirma:

Fui preso e fui condenado a catorze anos de cadeia, por tanto [sic], minha participação foi buscando nas cadeias a conscientização junto de milhares e milhares de angolanos que tiveram esse destino durante os catorze anos da luta armada. Quando saímos das prisões e da guerrilha, todos estavam irmanados e sacudidos pela luta do exílio. Do exílio interior e do exílio exterior. Tudo isto era a marca dos combatentes. Sem grandes discriminações entre os combatentes de luta armada e os outros combatentes, são todos combatentes, e isso já é um conforto. (VIEIRA apud SANTOS, 2007, p. 102)

Como ocorrera em outros espaços cindidos pela violência da colonização, a produção literária de Angola está imbricada, nos mais diversos níveis, com a luta pela independência do país. As palavras de Luandino Vieira atestam seu empenho em atuar no grande movimento de luta anticolonial em Angola; seu comprometimento com a conscientização e o combate, como ele próprio nos define, amplia-se e se desdobra sobre o processo de independência de outros espaços africanos. Instrumento de afirmação da nacionalidade, a literatura é também um meio de encenar histórias não contadas ou mal contadas. A marca da Literatura Angolana, sobretudo a que foi produzida a partir de 1940, é a resistência, cunhada pelo objetivo de se construir a verdadeira identidade desse povo.

Em 1950, surge o "Movimento dos Novos Intelectuais de Angola" que possibilita a criação da revista "Mensagem - a voz dos naturais de Angola", com a proposta de uma revolução decisiva nos parâmetros da sociedade colonial dos fins da década de 40. Em documento assinado pelos escritores angolanos, que bem define o projeto literário desse país a partir de então, pode-se ler:

A história de nossa literatura é testemunho de geração de escritores que souberam, na sua época, dinamizar o processo de nossa libertação, exprimindo os anseios profundos de nosso povo, particularmente o das camadas mais exploradas. A literatura angolana surge assim não como simples necessidade estética, mas como arma de combate pela afirmação do homem angolano. (apud CHAVES, 2005, p. 70).

Dentre tantas rupturas impostas pelo colonizador, o afastamento do colonizado de sua língua de origem pode não ser a mais drástica, mas é, sem dúvida, a mais simbólica. Neste momento, impõe-se uma fissura de caráter irreversível, pois, como explica Rita Chaves, "seu universo fica comprometido pelo risco da incomunicabilidade, que levaria à morte de toda e qualquer forma cultural" (CHAVES, 2005, p. 52). É no plano da linguagem que se principia a subversão, seja no campo semântico, lexical ou sintático. Ana Mafalda Leite reitera os apontamentos de Rita Chaves, ao afirmar que na ficção de Luandino Vieira “a língua torna-se, além de estratégia verbal, ela própria ‘tema’, uma vez que nela começa o trabalho ficcional, a captação rítmico-cultural da angolanidade”. (LEITE, 2016)

Ana Mafalda Leite argumenta, ainda, que Luandino Vieira propõe um “experimentalismo linguístico” que resgata os sons e a cadência próprios da angolanidade. Suas estratégias textuais reverberam ecos de outros escritores que também propuseram “inaugurar palavras”, como Guimarães Rosa. As obras João Vêncio: os seus amores e o Grande Sertão: Veredas são tecidas a partir de longas falas dos narradores diante de seus respectivos interlocutores. Luandino Vieira, em entrevista a SANTOS (2007), justifica os ecos do Grande Sertão em seu romance, que é também uma longa fala que nunca está expressa, mas é a própria interrogação de quem fala que pressupõe a pergunta de quem está a ouvir. Como ele mesmo nos diz: "Sinceramente, é caso mesmo de influência direta no processo narrativo que é um processo antigo também na literatura, a narrativa na primeira pessoa..." (VIEIRA, apud SANTOS, 2007, p. 102).

Na narrativa do escritor “angolano”, João Vêncio tece as histórias de seus amores, seus azares, "miondona"... rememorando os fatos que o levaram à prisão, denominado 'lombrosiano" e considerado criminoso pelos doutores da lei, cujos motivos ele não entende muito bem. "Que sou lombrosiano, o juiz já falou. Puto dele que eu ainda não engoli. O muadié esclareça-me" (VIEIRA, 1980, p. 19). No diálogo com “muadié”, que estabelece um jogo especular com o leitor, João Vêncio pede explicações sobre os códigos e as condutas sociais instituídas, que ele não entende bem. São reiteradas as tentativas de compreender tais códigos sociais: "Necessito sua água, minha sede é ignorância" (VIEIRA, 1980, p. 13). Em seguida, o narrador convoca o seu companheiro de cela a ironizar o poder e as normas que o legitimam: "Muadié, veja agora, clarevidente: o amor é o'tidiano, é jornal? (...) Agora o senhoro ria comigo nesses putos do tribunal, alínea bê que não sei quê..." (VIEIRA, 1980, p. 28).

A frase que inicia o romance pressupõe um diálogo anterior com muadié, cuja voz não fica explícita, é apenas sugerida pelo monólogo do narrador delirante: "Este muadié tem cada pergunta!... Porquê eu ando quionga?..." (VIEIRA, 1980, p. 13). As estratégias textuais reforçam o desejo de se construir o discurso com a participação efetiva desse interlocutor/leitor. Para esse trabalho conjunto, Luandino Vieira, pela voz do seu narrador, cria uma belíssima metáfora:

Tem a quinda, tem a misssanga. Veja: solta, mistura-se; não posso arrumar a beleza que eu queria. Por isso aceito sua ajuda. Acamaradamos. Dou o fio, o camarada companheiro dá a missanga - adiantamos fazer nosso colar de cores amigadas. (VIEIRA, 1980, p. 13).

A feitura do “colar de missangas” é a metáfora da narrativa, do discurso e do próprio encontro especular entre o autor/narrador/personagem/leitor. No processo de interlocução, João Vêncio cita Padre Antônio Vieira, “aprendi com senhor sô padre Viêra este truco de responder pergunta” (VIEIRA, 1979, p. 13), resgatando a articulação engenhosa dos Sermões e a peculiar capacidade de Padre Antônio Vieira de elaborar o discurso argumentativo com as premissas, réplicas e tréplicas. Esse processo também que resgata o “colar de missangas”, cada interlocutor contribui para formação do discurso.

Quando Antonio Candido escreve sobre “A natureza da metáfora”, define que “a liberdade e a amplitude da metáfora decorrem do caráter subjetivo da relação que ela estabelece entre os objetos. Outros tropos, como a metonímia, se fundam em relações objetivas determinadas pela própria natureza do objeto” (CÂNDIDO, p. 24). Para ele, é da natureza humana formar imagens para “dar vazão a necessidades profundas, e elas são carregadas de um valor simbólico que escapa ao seu elaborador” (CÂNDIDO, p. 31). Como fora sugerido, Luandino Vieira estabelece um “colar de missangas” como metáfora da narrativa. Existe um fio condutor para o enredo, embora as “contas”, “missangas”, se misturem conforme as ações do autor e do leitor. “Acamaradados”, empenhados em construir a beleza composta no fio da narrativa.

É certo que as vadiagens amorosas, "rabóias de quilapanga" (VIEIRA, 1980, p. 13), foram a razão da prisão do protagonista, já que tais comportamentos controvertiam as leis que regem o estatuto moral do ocidente. Há, também, a acusação de um “homicídio frustrado”, que o narrador questiona insistentemente. Os amores que serão descritos no decorrer do romance formam uma “estrela de três pontas”. Numa ponta, a barona, mulher do "doutoro"; na outra, Màristrêla; e Mimi, "a terceira ponta da estrela que é a primeira" (VIEIRA, 1980, p. 20). Aqui, também, pode-se inferir os apontamentos de Antonio Candido, que afirma que “a imagem significa, então, um tipo de expressão simbólica condensada de experiência humana (CÂNDIDO, p. 31). Para Lúcia Castelo Branco, "trata-se, aqui, de um infindável relato de envolvimentos amorosos, de uma reincidente evocação do amor, de seus descaminhos e seus desvãos" (CASTELO BRANCO, 1993, p. 23). A constante evocação do amor é também o mote para a narrativa das memórias de João Vêncio, que resgata não somente sua história particular, mas a história coletiva das relações no espaço colonial angolano.

A estrela de três pontas se desdobra em outros significados, articulando com rigor o “problema da natureza da linguagem poética figurada” (CANDIDO, p. 32). Essa configuração sugere, ainda, outras metáforas: uma delas é a metáfora da própria língua, expressão da subjetividade do narrador. Em uma ponta, está a Língua Portuguesa, idioma oficial do colonizador; em outra, o quimbundo, um das diversas línguas faladas em Angola e, por fim, o próprio narrador, que ocupa a terceira ponta da estrela. As memórias ficcionais de João Vêncio, escritas em Língua Portuguesa, idioma padrão, são completamente rasuradas pelo quimbundo, língua da afetividade, língua “pátria”, ou seja, da casa dos pais. Como se sabe, o processo de rememoração, mesmo quando se pretende fiel aos acontecimentos, é atravessado pela ficção, pela afetividade. Em sua escrita “ambaquista às avessas”, João Vêncio enreda também um registro histórico de seu povo. Na estrela de três pontas, também cabem as figuras do autor, do leitor e da própria narrativa. Instâncias fundamentais para tessitura desse colar de missangas: com a quinda e a missanga, narrador e leitor constroem o “colar de cores amigadas”. Assim, na ficção de Luandino Vieira, os sentidos se multiplicam e se entrecruzam fazendo com que o leitor esteja embrenhado nessa teia de memórias ficcionais.

No livro "A espécie fabuladora" (2010), Nancy Huston explica que a narrativa confere ao homem uma dimensão de sentido que nos diferencia dos outros animais. Citando as palavras da autora: "O Sentido humano se distingue do sentido animal pelo fato de que ele se constrói a partir de narrativas, de histórias, de ficções". (HUSTON, 2010, p. 18). A narratividade e a fabulação se desenvolveram em nossa espécie como forma de sobrevivência. Assim, afirma Nancy Huston:

Penetrando no nosso cérebro, as ficções o formam e o transformam. Mais do que nós as fabricamos, elas nos fabricam - arranjam para cada um de nós, ao longo dos nossos primeiros anos de vida, um ego. Não se nasce alguém, mas passamos a sê-lo. O eu é uma construção custosamente elaborada. (HUSTON, 2010, p. 23)

Metáfora da tessitura da narrativa, o colar de missangas alegoriza também a própria vida. "Por isso pergunto depoimento do muadié: vida de pessoa não é assim a missanga sem seu fio dela, misturada na quindinha dos dias?" (VIEIRA, 1980, p. 13-14). Assim, João Vêncio questiona o seu desejo em busca de um saber de totalidade; nas franjas dos conceitos determinados, alinhava seus fragmentos para forjar a construção de sua identidade e, ainda não satisfeito, segue questionando: "missangas separadas no fio, a vida do homem?" (VIEIRA, 1980, p. 89). A todo momento, João Vêncio tenta resgatar o fio, a linearidade da narrativa, entretanto, não tem êxito, pois as contas do colar se misturam e se espalham cada vez mais. Sobre essa ilusão de totalidade, Lúcia Castelo Branco afirma:

É nesse movimento de busca do todo e de abertura para o não-todo, que o texto de João Vêncio mais uma vez se feminiza e, ao se feminizar, traz à superfície outro saber. Um saber que admite que a incompletude, o vazio e o fragmento podem construir outro tipo de verdade - a verdade literária - e um outro tipo de engajamento - o engajamento com a linguagem. (CASTELO BRANCO, 1993, p. 29)

A busca da identidade é latente nesta narrativa. João Vêncio se empenha em construir sua própria identidade e, como desdobramento, termina por construir vieses da identidade angolana. Para Laura Cavalcante Padilha, “toda a fala de Vêncio é uma forma de exorcizar a morte, não apenas no nível do indivíduo, mas principalmente a morte dos ritos e mitos que desenham a face da alteridade angolana” (PADILHA, 2002, p. 50). A formação entrecortada que João Vêncio se atribui é prova disso. Por exemplo, o fato de se dizer "branco, cruzado" já marca a pluralidade desta personagem, o que fica evidente no próprio discurso, como é possível constatar no fragmento abaixo:

Juvêncio – com u, xié, ngana. João Vêncio também – e outros... João Capitão, aliás, Francisco do Espírito Santo, aliás... O doutoro juiz chama-me é o <<Aliás>>. Para fugir a polícia, responsabilidades? Balelas! (...) Eu gosto muito de mudar de nome. Eu penso que gosto é de mudar de vida. Eu não posso viver muito tempo na mesma casa, na mesma rua, no mesmo sítio. Sempre mudo o meu quarto de dormir - cacimbo e chuvas. Sempre mudo as mobílias na casa. Uso e desuso bigode. Mulher também [...] E mudo a cor do cabelo. (...) Tive um cão, mudava o nome dele a cada mês – ele abanava o rabo, alegrias. (VIEIRA, 1980, p.2-63).

No romance João Vêncio: os seus amores, a incrível capacidade de fabulação define o narrador e suas memórias. Ele passa o tempo todo ordenando, associando, articulando, selecionando, excluindo, esquecendo; ou seja, construindo, fabulando. Como interpreta Maria Nazareth Soares Fonseca: “Diferentemente do resgate da memória que se configura pela linearidade, Luandino nos apresenta um texto crispado, que insiste numa infinidade de linhas de fuga, em giros, em interrogações”. (p.162)

A feitura de um colar de missangas também evoca o trabalho do narrador-artesão, que conta suas experiências enquanto realiza atividades manuais. Um trabalho coletivo, já que é necessário ter alguém que segure a outra ponta do fio. Fios e missangas que metaforizam um contar artesanal, já perdido na modernidade, como afirma Walter Benjamin (1985). Por certo, Benjamin não escapa ao tom nostálgico quando evoca as comunidades de outrora nas quais a memória, as palavras e as práticas sociais eram compartilhadas por todos.

As experiências de João Vêncio são partilhadas através da história que se aproximam da oralidade e trazem os provérbios como reveladores de um saber que se inscreve numa temporalidade comum a várias gerações. Uma das formas típicas da cultura oral, já que, por meio do ritmo e da sintaxe cadenciada, e sem o auxílio do registro escrito, se torna conhecimento pronto para ser memorizado e resgatado sempre que preciso. O provérbio, como se sabe, possui caráter anônimo e é marcado pela experiência e pela sabedoria popular, revelando, muitas vezes, resumos de longas e persistentes reflexões.

Os provérbios e aforismos, neste romance, trazem os mais diversos tipos de ensinamentos. Sobre a justiça e suas relações, o narrador aconselha: "A-mu-beta kua mundele, kufundilé kua mudele" (Se um branco te bater, não te queixes a outro branco) (VIEIRA, 1980, p. 14); sobre os comportamentos sociais, ele ressalta: “meu pai deu-lhe a mão, ele pegou o pé” (VIEIRA, 1980, p. 58) e “mais velho, mais siso, menos riso” (VIEIRA, 1980, p. 85); sobre o destino dos homens (que ele acredita ser pré-determinado), afirma: “No ovo já está o pintinho, cada cor é o ar com is” (VIEIRA, 1980, p 18); dos aspectos negativos da natureza humana, como a soberba e a difamação: “Quem sobe, sombra dele é quimbriquito de muita gente, mas escurece...” (VIEIRA, 1980, p. 59) ou “Calúnia é rabo de sardão – cortado ainda, vive... Recresce!” (VIEIRA, 1980, p. 60); sobre alguns sentimentos nobres, como a amizade e o amor, declara: “Amizade é chuva-de-caju... boa é na seca, boa é na esperança de março de chuva. Amor...” (VIEIRA, 1980, p. 25) e "O amor é assim, muadié, me diga então: desforra de qualquera coisa?” (VIEIRA, 1980, p. 25).

Os fragmentos transcritos são exemplos de provérbios e dizeres que recriam a tradição oral na narrativa. Torna-se evidente a vontade de reencontrar a tradição, recuperando a possibilidade de intercambiar experiências, burlando a incomunicabilidade dos tempos modernos. A prosa cunhada na oralidade torna o discurso de João Vêncio mais expressivo, mais poético. As memórias encenadas no livro resgatam saberes que persistem; referem-se a uma realidade intacta e contínua, à capacidade de recuperar algo que foi esquecido ou sufocado pelos discursos oficiais.

Logo na primeira página do livro, chamam-nos a atenção os seguintes dizeres: "uma tentativa de ambaquismo literário a partir do calão, gíria e termos chulos" (VÊNCIO, 1980, P.12). O termo "ambaquismo" faz referência à região da Ambaca, um município da província do Cuanza Norte, em Angola. Tem sede na vila de Camabatela, fundada pelos portugueses em 1611. Pela fundação, tal região é marcada pela cultura ocidental e, por isso, detentora de notório prestígio social. Os ambaquistas, empenhados em mostrar quão bem dominavam a língua portuguesa, usavam palavras difíceis, linguagem rebuscada, com a finalidade de melhor reproduzir o idioma do colonizador. Para promover o saber cultural angolano, começando pelo idioma, João Vêncio se torna um ambaquista “às avessas". Irônicamente, assegura: "Sim, ambaquista, mukua-Ngulungu" (VIEIRA, 1980, p. 23), natural do Golungo Alto, ou seja, aquele que se identifica com gente do interior e traz como marca do discurso a angolanidade. Discutindo a forma como Luandino Vieira manipula a linguagem, Rita Chaves sugere (2005):

A nacionalização da língua, portanto, não pressupõe apenas a inclusão de palavras novas, provenientes do quimbundo. Mais complexa, a operação solicita uma lógica especial, fazendo com que a economia discursiva se nutra de experiências em latim, de neologismos, de construções metalinguísticas, de todos os meios que permitem questionar o senso do absoluto que o colonialismo cultua. (CHAVES, 2005, p. 37).

Em João Vêncio: os seus amores, a língua portuguesa do colonizador é rasurada e misturada ao quimbundo. Por exemplo: “Ana ami, an'a jingongo jami...tambulenu” (Meus filhos, filhos do meu sofrimento...Tomem". (VIEIRA, 1980, 38) ou “Tambi ia mon’a mukuenu, b’o telu dia mujinha” (O óbito do filho alheio é lugar para fiar algodão; a dor dos outros não nos incomoda). (VIEIRA, 1980, p. 46). Não sabemos exatamente em que medida esses registros reproduzem a fala coloquial dos angolanos e o que é produto da invenção do escritor. Fica claro, entretanto, que esta é uma tentativa de resgatar o idioma e a tradição, como o próprio narrador esclarece: “Minhas festanças, dores dos outros – os óbitos. Cair num bom óbito, bem chorado, choro de velhotas, as meninas de agora não sabem honrar defunto com suas lágrimas, que é a indecência” (VIEIRA, 1980, p. 46).

O sincretismo entre voz e letra, diz Ana Mafalda Leite, “parece configurar, efetivamente, uma das dimensões da angolanidade literária, que se define pela confluência de géneros e pela modalização de formas”.

Povoam a fala de João Vêncio as imagens de Luanda, dos musseques e seus signos mais marcantes. Nos espaços evocados pelo narrador transitam personagens socialmente excluídas: negros, pobres, imigrantes da metrópole ou das outras colônias. Ao falar dessas questões, o tom do discurso é amoroso, Luanda ganha corpo e é quase personificada. Como interpreta Rita Chaves, o narrador "é enfático na paixão pela cidade 'à beira mar azul'" (CHAVES, 2005, p. 22). Em diálogo com Muadié, ele rememora:

Muadié: eu gramo de Luanda - casas, ruas, paus, mar, céu e nuvias, ilhinha pescadórica. Beleza toda eu não escoiço. Eu digo: Luanda - e meu coração ri, meus olhos fecham, sôdade. Porque eu estou cá quando estou longe. De longe que se ama. (VIEIRA, 1980, p. 81)

Por outro lado, João Vêncio ironiza e questiona os poderes legitimados. Do interior da cela, denuncia um quadro desumanizador, tentando contrapor o silêncio que a ordem colonial busca instituir. Vários discursos são parodiados: o discurso religioso, o discurso jurídico, o discurso literário, os registros históricos. A intenção primeira é dessacralizar os saberes instituídos e não questionados. "Incapaz de ordenar o caos, o discurso passa a refleti-lo" (CHAVES, 2005, p. 38). O fragmento abaixo mostra como João Vêncio se opõe às convenções e ao pensamento autoritário, neste caso, dos tribunais:

Veja: o puto escalavrado, helênico bacoco que eles me etiquetaram - sexopata, na alínea dê. Isto é palavra de gente civilizada? Fiz mal para me xingarem assim com uma palavrona de abrir-boca? Esses muadiés da justiça, doutoros delegados e a curibeca toda deles são surdos. Se eu fosse defensor tribuno eu só ia usar as belas palavras: se não é crime feio, então elas acasalam; se é crime feionga, elas servem para absolver a humana natura. (VIEIRA, 1980, p. 71).

O narrador de Luandino Vieira defende a magia da transformação, tanto que, na forma, o romance ignora as fronteiras de gêneros e se aproxima da poesia. Assim, contesta a univocidade dos poderes legitimados pela ordem social. Ataca, principalmente, uma verdade soberana da colônia, proclamada em: "Um só Deus, uma só lei, uma só língua". Esta ideia está clara na passagem: "Doutoro, juiz, delegado e outros maiorais das leis, eles só veem a linha recta, não sabem a porta estreita" (VIEIRA, 1980, p. 48).

Cingido em suas ações, por estar preso numa cela exígua e pelos diversos meios coercivos da sociedade colonial, João Vêncio se liberta através da linguagem e de suas memórias. Sobre este processo de manipulação linguística, diz Rita Chaves: "Libertar a língua significa, pois, apropriar-se dela e moldá-la de forma que ela possa ser a expressão desse universo pleno de marcas, valores símbolos, medidas crenças anteriores à sua própria chegada" (CHAVES, 2005, p. 43).

Retomando uma ideia já trazida no início deste texto, privar o colonizado de sua língua de origem é uma violência drástica. Quando Luandino Vieira subverte e deforma a língua portuguesa, evidencia sua identificação com o universo dos excluídos, dos quais a colônia tirou quase tudo. O universo fragmentado é reproduzido no discurso de João Vêncio, pelas elipses, invenções de palavras e outros recursos estilísticos que vão "despedaçar a língua" (CHAVES, 2005, p. 42). Plural em sua posição e combatente por autodefinição, o escritor busca a riqueza que advém da multiplicidade do povo Angolano e da própria linguagem literária.

Referências

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica: arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Obras Escolhidas I. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica: arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Obras Escolhidas I. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CASTELO BRANCO, Lúcia. João Vêncio: suas femininas alíneas amoráveis. Boletim do Centro de Estudos Portugueses CESP. Belo Horizonte: UFMG. v. 13. n. 15. Jan/Jun 1993. p. 106 -111.

CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. Cotia: Ateliê, 2005.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Imagens de nação em afrodicção literárias. In: Revista do Centro de Estudos Portugueses. 1999. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cesp/article/viewFile/6810/5804 p. 155-168.

HUSTON, Nancy. A espécie fabuladora. Trad. IIlana Heineberg. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

PADILHA, Laura Cavalcante. Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Coleção Memórias das Letras. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2002.

SANTOS, Joelma. Entrevista com José Luandino Vieira, realizada em 02/11/2007. Disponível em: http://www.revistainvestigacoes.com.br/Volumes/Vol.21.1/a-literatura-se-alimenta-de-literatura_entrevistado_Jose-Luandino-Vieira_art.16ed.21.pdf . Acesso em 02/04/2015.

VIEIRA, José Luandino. João Vêncio: os seus amores. Lisboa: Edições 70, 1980.

Notas

[1] LEAL, Luciana Brandão. João Vêncio: os seus amores - narrativa e tessitura de um colar de missangas. Revista Araticum. Dossiê Leitura Literária. v. 19, n1, 2019. p. 103-114. Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/araticum/article/view/130

* Luciana Brandão Leal é Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas. Atuou como investigadora visitante na Universidade de Lisboa, com bolsa CAPES de doutorado-sanduíche. Professora Adjunto II da Universidade Federal de Viçosa (atuando no campus Florestal). Coordena projetos de pesquisas “Poesia moçambicana do século XX” e “Corpo e territorialidade em Maureen Bisiliat e Marcel Gautherot”, ambos registrados na Universidade Federal de Viçosa (2020-2022). Membro do grupo de pesquisas GEED – Grupo de pesquisas em estéticas diaspóricas, coordenado pela profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca. Publicou, em 2019 e 2020, dez artigos em revistas acadêmicas nacionais e internacionais com estudos sobre poesias das literaturas de língua portuguesa, além de artigos sobre a obra de Machado de Assis.


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