A escrita movente de valores civilizatórios de sociedades negro-africanas em Rioseco de Manuel Rui1

Wellington Marçal de Carvalho2

 

Resumo: O presente trabalho objetiva verificar como o narrador expressa, em seu narrar, alguns dos valores civilizatórios africanos, no romance Rioseco, do escritor angolano Manuel Rui. Para pensar a mundividência dos espaços regulados pelo oral, ou, pela oralidade, a presente proposta lançará mão, notadamente, de excertos da primeira parte do romance nos quais podem ser tecidas aproximações do que Fábio Leite elenca como marcas constituintes desses agrupamentos sociais. Ao fim pretende-se encaminhar a discussão para aspectos da narração performática e aquele tipo de narrativa que, no passo de Luiz Costa Lima, apresenta uma possibilidade de dar a conhecer uma aproximação do real, via processo mimético. Conclui-se que o gesto criativo do escritor angolano Manuel Rui, em Rioseco, presta-se, também, a mimetizar, poderia-se dizer, as singularidades caracterizadoras dos valores civilizatórios que desenham a sobrevivência histórica de uma outra matriz de gestação das relações entre pessoas; entre pessoas e o mundo e, não menos importante, de interpretações cosmológicas desse mesmo mundo.

Palavras-chave: Ficção angolana. Crítica e interpretação. Literatura e sociedade. Matriarcado. Mulher e poder – aspectos culturais. Energia vital.

Introdução

“Onde há palavra, há deus. Onde nasce a palavra, nasce deus.

Todos os outros lugares são ermos sem dignidade.”

(MÃE, 2013, p. 70)

Haveria a possibilidade de existência de outra forma de se conceber o ser/estar no mundo, alternativo aos eixos gestados pela batuta europeizante? Um espírito mais dado ao ceticismo tenderia a dizer, quase apaticamente, que não. E conclusão dessa ordem não poderia ser refutada muito facilmente sob pena de não se sustentar num contraponto à altura. E por quê!? Talvez esse diagnóstico, com sua aparente indiscutível obviedade, fosse o único plausível de ser proferido se observar-se, modo geral, o percurso formador da história dos povos na era contemporânea. O que sobrexistiu ao motor alienante, à bandeira aviltante de alguns “desbravadores” europeus? Lançaram, o quanto tiveram fôlego para tal, seus tentáculos a toda parte possível do globo e reproduziram, durante sua instalação, as várias facetas de sua constituição: o modo de ocupar a terra; o encadeamento de cada uma das engrenagens do conviver em relação; a concepção do acesso ao sagrado; o quê fazer diante do incomensuravelmente inexplicável (inclusive ao decretar o que seria englobado na categoria das coisas sem explicação pelo humano); o papel a exercer cabível a cada indivíduo; a predominância “natural” do masculino em todo o espectro das coisas cotidianas, do mais diminuto ao mais aparentemente complexo; etc.

Mas... lembra o poeta que é o “mundo, mundo, vasto mundo”3 e, diga-se de passagem, seria conveniente acolher a sugestão de um poeta, artífice da palavra, hábil para incutir, a quem se interessar, em outros mergulhos na geografia natural e humana, municiado de outras próteses oculares, com diferentes usos do gesto de ler e criticar esse mesmo mundo. Parece razoável a empreitada. A justifica o desejo de formatação contrapontística, a localização, aqui e ali, de moldes cambiantes de organização societal. Trilhar essa senda poderá iluminar ambiências que não sejam, mais uma vez, a louvação de uma visão eurocêntrica.

Retomando parte do pensamento de Walter Benjamin, para quem, em tempos do pós-guerra, no continente europeu do século XX, a figura do narrador teria seus dias contados, vez que o atravessamento dos conflitos belicosos solapara a experiência comunicável, vale tentar pensar em que medida situação semelhante pode ser aplicada para as matrizes sociais que sobrevivem na periferia da dispensa europeia. Voltando ao início desta reflexão: haveria matéria narrável em outros espaços desse vasto mundo? Em caso positivo, haveria fôlego para as grandes narrativas, os romances, a partir desses lugares?

A literatura produzida na África de língua portuguesa pode fornecer o terreno para a presente reflexão. Mais especificamente, a literatura angolana emerge e permite aquilatar uma cosmogonia própria, uma cosmologia diversa, dimensões filosóficas e ontológicas para interpretações outras e, nesse ínterim, colabora para o apaziguamento quanto à suposta fratura da capacidade do narrador de intercambiar experiências.

Nesse sentido, o presente trabalho objetiva verificar como o narrador vivo expressa, em seu narrar, alguns dos valores civilizatórios africanos, no romance Rioseco, do escritor angolano Manuel Rui. Seria curioso trilhar esse percurso principalmente pensando como Walter Benjamin, para quem “escrever um romance significa, na descrição de uma vida, levar o incomensurável aos seus últimos limites”. (BENJAMIN, 1994, p. 199).

Isso porque, de acordo com o escritor Manuel Rui, em comunicação apresentada no Encontro Perfil da Literatura Negra, em 1985, o seu “texto tem que se manter [...] oraturizado e oraturizante”. Pois, “se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta. Ah! Não tinha reparado. Afinal isto é uma luta. E eu não posso retirar do meu texto a arma principal. A identidade”. (MONTEIRO, 1985).

Ao tratar sobre o desenvolvimento da literatura africana moderna, Ali Mazrui explicita que a temática abrangida pelos seus escritores ocupa-se, dentre outros fatores, do dilema “entre desenvolvimento e autossuficiência, entre uma evolução econômica rápida sustentada por ajuda estrangeira, por um lado, e um progresso mais lento porém autônomo, por outro”. (MAZRUI, 2010, p. 678).

As falas de Noíto, uma personagem central do romance de Manuel Rui, relacionam-se com a reflexão teórica de Stelamaris Coser que, ao retomar Bhabha, adverte que em oposição aos que apontam para a opressão e o dilaceramento que caracterizam a condição subalterna no colonialismo, os nativos em sistemas coloniais aproveitam-se de interstícios do poder para apresentar suas próprias “exigências interculturais, híbridas”, com que “ao mesmo tempo desafiam as fronteiras do discurso e modificam sutilmente seus termos”. (BHABA apud COSER, 2010, p.174-175). Dissolvendo binarismos puros e distinções estanques, o polêmico teórico “está não apenas falando de hibridismo, mas fazendo uma teoria híbrida”. (COSER, 2010, p. 174-175).

Esse protótipo de “marco regulatório”, a partir do qual o movimento criativo de Manuel Rui se faz, sua escrita movente se performatiza, não o dissocia da cartela temática problematizada, no texto literário, pelos demais integrantes do conjunto de escritores da literatura moderna.

Em linhas gerais, “a narrativa Rioseco, escrita em fins da década de noventa do século XX, (re)coloca em cena um autor comprometido com a vida política e cultural de Angola no período que se segue à independência desse país” (PINTO, 2009, p. 1). Para a mesma pesquisadora, que investigou a linguagem utilizada por Manuel Rui, nesse romance

o narrador sabe penetrar na alma e, fluido, misturar-se ao universo narrado, engravidando uma terra estéril: Angola. Engendra um discurso que envolve amnioticamente a fala e pari um texto, ou ainda, (re)encena o oral em uma maiêutica (parto) da escrita. (PINTO, 2009, p. 3).

Muito embora não se concorde com a pesquisadora em sua conclusão equivocada a respeito de uma esterilidade da terra angolana, a ideia de um narrador fluido, espraiando-se pelo texto do romance parece pertinente e autoriza a sua aproximação à síntese do enredo construída por outra pesquisadora, Maria Pacheco, sobretudo quando esta última explicita o caráter solidário, tão presente na cena enunciativa.

Sobre a trama Maria Cristina Pacheco sublinha:

Quanto aos rios, são evocados nas conversas (e nos nomes dos meninos Kuanza e Kunene), já que o espaço privilegiado para o decorrer da ação é uma ilha de pescadores (Mussulu?), situada ao largo de uma grande cidade (Luanda?) e sem rio, isto é, onde apenas existe “rioseco”. Nesta ilha, através dos diálogos e memórias das personagens que nela habitam ou que vão aparecendo a visitá-la, todo o complexo mosaico angolano vai ser convocado: gentes da cidade e do “mato”, do litoral e do interior, originalmente de culturas, regiões, línguas e costumes diferentes, marcada ou não pelos vários estigmas da guerra, mas conseguindo, apesar de tudo, esbater barreiras e levar à prática o ancestral hábito africano da solidariedade e da partilha dos parcos bens materiais que possuem! E tudo isso – eis a grande novidade do romance – filtrado pela visão e vivência da personagem principal, uma mulher recém-chegada, uma “mais velha”, Noíto, que, embora com “cautelas de sulana do planalto”, mas magnífica de sabedoria, sensibilidade, experiência e entendimento do mundo, se vai adaptando às diferenças, agindo, inventando, apreciando os pequenos “nadas” que a vida lhe oferece e que, por isso, acabará por merecer gradualmente o respeito e a admiração de todos os que a conhecem. (PACHECO, 1999, p. 274 – destaques da autora).

Para melhor encaminhamento dessa reflexão, seria prudente retomar excerto das considerações de Rita Chaves, crítica literária brasileira que estuda a formação do romance angolano e destaca interessantes aspectos acerca da efabulação romanesca daquele país:

Contando apenas com o sujeito que fala (escreve) e a possibilidade de um outro que um dia possa ouvir (ler), a experiência de narrar vai procurar formas de se materializar superando os limites e as interdições condicionadas por cada momento, até chegar ao romance, que é, na percepção de Walter Benjamin, o gênero literário capaz de anunciar “a profunda perplexidade” da vida humana. Associado ao isolamento do indivíduo (o que escreve e o que lê), o romance, se em princípio poderia parecer incompatível com a nostalgia da comunhão que as grandes cisões fazem nascer, por outro lado se mostrará adequadíssimo à necessidade de remexer o sentido da vida quando impera a consciência de que o exercício da sabedoria – medular na velha arte de contar “estórias” – está impossibilitado pelos estatutos que ora regem as relações entre os homens e o seu mundo. (CHAVES, 1999, p. 20 – destaques da autora).

Poderia ser dito, na esteira de Benjamin, revisitado por Chaves, que a “profunda perplexidade”, sobretudo em sociedades em situação limite (como é o caso daquelas nações em fase de libertação da rédea colonizatória), estrategicamente pode ser extravasada através da letra do escritor Manuel Rui. O seu gesto criativo é pleno de sentido e, habilidoso, tentará carregar para seu construto a “velha arte” da contação de estórias travestida para esse novo lugar. Se considerado nessa perspectiva, o romance, sem recair em nenhum paradoxo, traduziria a plausibilidade do exercício da sabedoria mesmo nos momentos de cisão nas regulações do cotidiano social. Apostar no seguimento dessa reflexão, no molde até aqui sinalizado, parece indiciar a pertinência de reunir tal exercício de sabedoria como mais um ato de natureza performática, como é teorizado por Terezinha Taborda Moreira:

A narração performática é pensada aqui como resultado desse processo de substituição instaurado pelo “papel com rabiscos”. (...) A princípio, esse processo poderia parecer ameaçador para os valores tradicionais representados pela palavra que veio dos antepassados (...). Porém, o ato performático em que a narrativa se caracteriza, sendo resultado da voz em movimento, acontecimento figurado na e pela escrita, aponta-nos para a capacidade de sobrevivência desses valores tradicionais quando em contato com a transformação trazida pela escrita. (MOREIRA, 2005, p. 66-67 – destaque da autora).

Ainda sobre esse mesmo ato, assinala Moreira:

A chave para compreender o trabalho da performance dentro da cultura consiste em considerar o processo de substituição uma operação entre culturas diferentes. Ou seja, é necessário compreender a forma pela qual sociedades confrontadas com circunstâncias revolucionárias inventaram-se a si mesmas performando seus passados na presença umas das outras. Isso faz da performance uma forma de transmissão e disseminação de práticas culturais através das representações coletivas. Ao restaurar ações da memória cultural, a performance insere o passado no presente, inscrevendo um comportamento do passado na contemporaneidade dessa cultura e garantindo a sua sobrevivência. (MOREIRA, 2005, p. 68-69 - destaque da autora).

Para pensar a mundividência dos espaços regulados pelo oral, ou, pela oralidade, a presente proposta lançará mão, notadamente, de excertos da primeira parte do romance Rioseco nos quais podem ser tecidas aproximações do que Fábio Leite, em seu texto teórico “Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas”, elenca como marcas constituintes desses agrupamentos sociais. Nessas sociedades negro-africanas “a abrangência de que se revestem certos fatores manifestados na diversidade constitui universo privilegiado para a apreensão das propostas de organização do mundo articuladas por essas civilizações”. (LEITE, 1996, p. 1). Os apontamentos de Fábio Leite estão circunscritos

prioritariamente e muito sinteticamente a três sociedades da África ocidental – Yoruba, Agni (grupo Akan) e Senufo – civilizações agrárias que, entretanto, se distinguem fortemente em virtude de suas organizações políticas, pois que, enquanto os Yoruba e Agni se constituem em sociedades dotadas de Estado, entre os Senufo essa figura não se caracteriza. Apesar de que os exemplos relacionam-se basicamente, em suas generalizações, com os grupos citados, junto aos quais desenvolvemos pesquisas de campo durante alguns anos, parece certo que são aplicáveis, com a cautela devida às individualidades, a um número não negligenciável de sociedades negro-africanas, como o demonstra a bibliografia pertinente e os dados de pesquisa. (LEITE, 1996, p. 1).

Fábio Leite apresenta considerações sobre os seguintes valores civilizatórios: força vital; palavra; homem; socialização, morte; ancestrais e ancestralidade; família; produção e, por fim, poder. Desse conjunto pretende-se trabalhar, a partir do que o texto literário de Manuel Rui parece solicitar, os valores “força vital”, “família” e “poder”.

A força vital, de acordo com Leite refere-se “àquela energia inerente aos seres que faz configurar o ser-força ou força-ser, não havendo separação possível entre as duas instâncias, que, dessa forma, constituem uma única realidade.” (LEITE, 1996, p. 1). Deve ser ressaltada a imbricação entre essa energia e o elemento do preexistente, como advertido por Fábio Leite:

Um aspecto que demonstra ser a força vital instrumento ligado à estruturação da realidade consubstancia-se na figura do preexistente, que é tomado como a fonte mais primordial dessa energia, dela servindo-se para engendrar a ordem natural total dentro de situações ligadas especificamente a cada sociedade, que, assim, define seu próprio preexistente. (...) No relacionamento existente entre força vital e preexistente na elaboração do mundo, embora aquele se encontre na base das ações primordiais da criação, geralmente não se ocupa da totalidade do processo nem de seus desdobramentos, atividade que confia a certos demiurgos – entes por ele concebidos – e ao próprio homem. De fato, uma vez ocorrida a doação da vitalidade que faz configurar a vida individualizada dos seres, estes são complementados pelos demiurgos, o que também explica parte da dimensão sagrada de que é portadora a natureza: quando ocorre o ato de complementação, uma parte da vitalidade desses entes passa a integrar a constituição mais íntima dos seres, manifestando-se como dimensão específica de sua materialidade. Mas a elaboração contínua do mundo é também tarefa do homem nesse intercâmbio privilegiado entre natureza e sociedade, exercendo ações transformadoras ao criar o ser humano no âmbito de sua competência, assim como aqueles elementos ligados à organização da sociedade. (LEITE, 1996, p. 2, 3).

Outro dos valores estudados por Fábio Leite, que interessam amiúde para os fins do presente trabalho, diz respeito à “família”. Segundo Leite

a família negro-africana típica em sociedades agrárias, conhecida pela denominação de família extensa, é constituída por um grande número de pessoas ligadas pelo parentesco. Nas sociedades de organização matrilinear, figura que aqui serve de exemplo, o parentesco formula-se pelos laços uterinos de sangue, razão pela qual a mulher é a única fonte de legitimação das descendências. Estas constituem assim, o núcleo fundamental que define a família, sendo que em suas bases encontram-se as ancestrais-mulheres que lhes deram origem. (...) Esses pressupostos são válidos também para a sucessão nas chefias. (...) Essa fórmula tende a preservar o patrimônio genético estabelecido pela mulher para fins institucionais, pois que na organização matrilinear uma proposição básica é a de que nenhum homem pode provar que é o pai de seus filhos, os quais, entretanto, contém obrigatoriamente o sangue de suas mães. (LEITE, 1996, p. 9).

Por fim, as constatações coligidas por Fábio Leite acerca do valor “poder” também serão fundamentais para o encaminhamento deste trabalho e, portanto, a seguir são resumidas:

Nas sociedades sem Estado o exercício do poder é fortemente concentrado em relação às unidades de produção – as famílias pactuadas com a terra, dotadas de auto-suficiência e que fazem configurar a família-aldeia - , mas difuso quando colocado em relação com a sociedade global, formada pelos grupos integrantes de um determinado complexo cultural. (...) Nelas, a trama ancestral nascida do parentesco configurado através dos laços uterinos de sangue faz emergir o papel fundamental exercido pelas mulheres na divisão do poder, pois, devido a essa edificação das descendências e, consequentemente, das linhagens, elas interferem decisivamente nos processos de sucessão, inclusive na sucessão do rei, quando é o caso. Como a sociedade é dirigida por homens, parece haver aí uma contradição. Mas, ao contrário, essas instâncias são complementares. As mulheres constituem fontes de legitimação na medida em que apenas elas fazem configurar as descendências e as posições dos indivíduos na estrutura da família para fins de sucessão e conseqüente acesso ao poder. (LEITE, 1996, p. 12, 13).

Na esteira de Fábio Leite, esses três núcleos de valoração sustentariam o funcionamento desses agrupamentos sociais através de similaridades na parametrização daquilo que se constituiria a própria identidade desses povos. Certamente, esses são aspectos interessantes para serem observados no campo literário. As articulações operacionalizadas pelo viver em sociedade também estão perspectivadas na cena enunciativa. Arrisca-se dizer que nesse contexto, a prática da oralidade, por se fazer presente em vários momentos, seria um mecanismo, da tradição, de agenciamento de um percurso de rede comunicativa, que corta e atinge cada uma dessas sociedades e, notadamente, encontra-se em azeitado funcionamento na proposta literária de escritores angolanos, inclusive na de Manuel Rui. Como principal fruto desse processo se vê, de forma acentuada, na cena narrativa, o narrador movente, como teorizado por Laura Cavalcante Padilha. Sobre a arte da oralidade, Laura Padilha atesta que:

A milenar arte da oralidade difunde as vozes ancestrais, procura manter a lei do grupo, fazendo-se, por isso, um exercício de sabedoria. (...) A oralidade é, desse ponto de vista, o alicerce sobre o qual se construiu o edifício da cultura nacional angolana nos moldes como hoje se identifica, embora tal cultura não seja um todo monolítico e uniforme. Praticá-la foi mais que uma arte: foi um grito de resistência e uma forma de autopreservação dos referenciais autóctones, ante a esmagadora força do colonialismo português. (PADILHA, 2007, p. 35, 37).

Ao fim pretende-se encaminhar a discussão para aspectos da narração performática e aquele tipo de narrativa que, no passo de Luiz Costa Lima, apresenta uma possibilidade de dar a conhecer uma aproximação do real, via processo mimético. Para o teórico

A mímesis diz, portanto, de uma decisão que nos define. Ser capaz de mímesis é transcender a passividade que nos assemelha a nossos contemporâneos e, da matéria da contemporaneidade, extrair um modo de ser mutável, o próprio da conquista da forma é fixar esta dinâmica no produto, a obra poética, que a apresenta. Como decisão, mímesis é escolha de permanência; como decisão efetuada sobre uma matéria cambiante, é uma permanência sempre mutante. O ato da mímesis, em suma, suporia uma constância e uma mudança. (...) A mímesis, supondo uma semelhança com o real considerado como possível, é um meio de reconhecimento da comunidade consigo mesma, ou seja, um instrumento de identidade social. (LIMA, 1980, p. 3, 21).

Assim repertoriado, convém encaminhar a entrada no texto de Rioseco para iluminar alguns momentos em que se evidenciam, por meio da narração performática, valores civilizatórios agenciadores de identidade social via ato mimético.

Mímesis dos valores civilizatórios em Rioseco

“A tradição africana não corta a vida em fatias.”

(HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 175)

Como já mencionado, ancorado no estudo de Fábio Leite, a presente seção discutirá como se presentifica, em excertos da primeira parte do romance Rioseco, os valores “força vital”, “família” e “poder”. Embora pareça haver um desejo de fragmentação, ele não se efetivará e, portanto, ao refletir sobre um dos valores acabar-se-á tocando em aspectos que caracterizam outro. Essa miscelânea é esperada, principalmente ao se tratar da tradição angolana, a qual, por ser africana, não pode ser cortada em fatias, como advertira o escritor malinês Amadou Hampaté Bâ. Cumpre dizer que o sistema de pensamento angolano, de acordo com Laura Cavalcante Padilha

tem dois pilares de sustentação: o animismo e a certeza de que tudo se liga à força vital. (...) No quadro geral do ethos do pensamento angolano, marcado pelo princípio da força vital, não representam as ordens natural e sobrenatural forças excludentes, mas, ao contrário, as duas faces do mesmo fenômeno. (PADILHA, 2007, p. 44-46).

Como se vê, o ethos angolano, ou melhor, “a tradição africana não corta a vida em fatias”, o que poderia significar uma ratificação do vaticínio de Hampaté Bâ pela crítica literária brasileira Laura Padilha. Nas cenas iniciais do romance é possível ver como Noíto maneja, com destreza, o domínio de diversos falares:

“Então a tua mulher é quioca, não é?”
“Te enganaste. Não é quioca. Só que fala quase todas as línguas. Viajou muito. Sabe mumuila, umbundu, kikongo... só português e kimbundo é que quase nada e compreende muito pouco.”
(...)
“Sabes muitas coisas. Nem percebo como vieste parar aqui. Mas está bem. Fico muito contente de viajar convosco. Vocês, a falar tanta coisa, podem perceber todas as conversas dos outros. Eu se soubesse não dizia nada a ninguém.” (MONTEIRO, 1997, p. 14).

Neste trabalho se preferiu trazer, o quanto antes, esse excerto para ressaltar a singularidade do papel desempenhado por Noíto ao longo da saga a ser narrada no romance. Ela não é uma mulher, e o seu comportamento o demonstra, gestada no seio patriarcal. Mais acertadamente ela parece afiliar-se às mulheres dos agrupamentos estudados por Fábio Leite, tamanho o protagonismo de vários de seus atos. A fluência de diversos falares/idiomas é apenas um exemplo de sua estratégica condução e imersão na sua célula comunitária. Basta notar que somente ela e seu marido Zacaria é que sabiam de sua proficiência idiomática, até o momento em que o condutor do barco, Mestre Mateus, percebe aquela situação.

A força vital manifesta-se, ou, melhor dizendo, é percebida com certa estranheza por Noíto quando da oferta, solidária, de alimento para ela e seu marido recém-chegados à ilha:

“Já comi uma vez e chegava. Como é possível! Zacaria é que anzolou a sorte por cima e por baixo de todo este mar que me assustou e que eu agora agradeço. Ao mar como se fosse Deus e quem sabe se Deus não andará por aí disfarçado nessa água tão grande que faz o que quer? Ora se levanta e parece anunciar o fim do mundo, ora se deita como agora e uma pessoa acredita em qualquer coisa boa que vai suceder.” E a mão esquerda dela, morna de se abrir sob o fundo do prato. (MONTEIRO, 1997, p. 34).

Os movimentos do mar que provocam tanta perplexidade para Noíto fazem-na considerá-lo como sendo parte de algo da ordem do sobrenatural, do incomensurável, do divino. Todavia, africana que é, busca na tradição, na concepção filosófica de matriz tradicional, a compreensão que unifica o sagrado ao seu problema da esfera do existir cotidiano. Essa lente de observação do mundo, da qual Noíto é exemplo, referenda que a “noção de força vital não se limita às instâncias das formulações abstratas, situando-se materialmente no interior das práticas históricas e da explicação da realidade”. (LEITE, 1996, p. 3).

A propósito, a ilha assumia para Noíto um caráter de síntese de uma cosmogonia. Sob essa perspectiva o excerto adiante pode funcionar como ilustração:

O ar adensava-se cada vez mais e o calor, marventoso, untava a pele dos corpos de uma espécie de gordura salitrada que o suor mais intenso não conseguia diluir. Mas era bom estar. Porque o rigor com que os dias se seguiam na aparente repetição do sol e da noite, emaranhava-se nos mistérios mais essenciais da vida. E sempre a partir de coisas tão simples que permitiam, derrepentemente, a Noíto, incluir mais uma página interrogativa no livro da existência. A ilha, ao cabo, tinha a vantagem do resumo. Kwanza, por exemplo, daquela idade, sabia o resumo de tudo. Porque tudo era um resumo. O seu registo quase não se perdia pela dispersão. Pessoas e seus nomes, peixes e suas manhas em rejeitar a isca, vontades do mar se agitar ou não e, mesmo antanhos assuntos ele sabia. Sua memória não se desperdiçava sobre incompletas milhentas referências. Só sabia daquilo e dali. Como se fosse o mundo todo inteiro. Um mundo galáxio e distraído a desgastar o tempo que também não se cansava, em sua distracção, de repetir o ciclo dia-noite. Mas era aí que Noíto ponderava a ilha como o mar igual mas sempre diferentes. (MONTEIRO, 1997, p. 134).

A ilha parecia sintetizar a explicação de todas as coisas do mundo. Aquele pedaço de chão, aquela parcela do mundo, paradoxalmente, aos olhos de Noíto, ao mesmo tempo era o belo e o terrível, a clareza e a mais incompreensível das coisas da natureza. Deixava-a perplexa diante de sua potência de existir como uma exegese do todo cosmogônico das coisas. Não pode ser menosprezado o ardil dessa mulher em buscar numa criança, a condensação dessa energia formadora do mundo. O menino Kwanza, assim como a ilha, “tinha a vantagem do resumo”. Poderia-se dizer que os três, Noíto, a ilha e Kwanza constituiriam um ser híbrido, sem limites tangíveis, um veio através do qual a energia, a força vital, trafegava.

Se mirada mais de perto, a conexão entre Noíto e os elementos da natureza parece fluir maciamente e, sabedora dessa sua capacidade de leitura de mundo, a personagem assumirá, em várias ocasiões, papel fundamental na saga do casal e dos ilhéus pela sobrevivência. Para ela “tudo aquilo se traduzia numa espécie de exercício secreto esse de demandar a água debaixo daquele chão, quiçá detectar um lençol subterrâneo e, com ele, modificar por completo a fisionomia do lugar, a sua própria existência e felicidade”. (MONTEIRO, 1997, p. 76).  Como se pode ver na cena em que os habitantes da ilha garimpavam por água potável, não sem antes terem de reconhecer a capacidade de Noíto em prospectar as coisas hídricas, acima ou abaixo da terra:

Não resistiram à tentação de, imediatamente, procederem à escavação sobre a areia. Zacaria conseguira a pá e a enxada com a esquebra de mais um balde. Noíto escolhera, o local, nas traseiras da casa. Ela tinha um sexto sentido muito apurado para prospectar coisas como água debaixo da terra ou adivinhar a chuva. E convenceu o marido que a pá e a enxada fossem desde logo utilizadas. Tomara a iniciativa. Agora era Zacaria quem cavava. Noíto removia com a pá. (MONTEIRO, 1997, p. 76).

As reflexões do teórico Fábio Leite parecem abarcar, com precisão, o olhar cuidadoso de Noíto para com sua família. Tanto é assim que “meninas, enfileiradas, viraram para cima e vieram lhe cumprimentar”. (MONTEIRO, 1997, p. 110). Tão logo as pequenas assomam à sua porta, ato contínuo, tomam contato com a sapiência da velha mulher:

“Levem para o caminho.” – Despejou duas canecas de farinha musseque sobre o balaio de oferta, juntou três colheres de açúcar bem medidas e misturou com os dedos da mão direita. “Vão, minhas filhas, sempre no caminho que os mais velhos vos ensinaram. Caminho que vos dê sorte, para não sofrerem o que eu sofri. Gosto muito desta nossa terra. Quando fizer a minha lavra, semear o milho e ele aguentar o vento e o mau-olhado, vou assar maçarocas aqui, para vocês comerem. E ainda, se vocês quiserem, vou-vos ensinar estórias e cantigas bem lindas que aprendi na minha mãe que ela tinha aprendido na minha avó.” (MONTEIRO, 1997, p. 110-111).

Ao aconselhar as meninas a seguirem pelo caminho que os mais velhos ensinaram, importa salientar o detalhe de esse ensinamento ter partido de uma “mais velha” e não de um ancião. A cadeia de veiculação das explicações do mundo, no caso em exame, tem a ponta do fio em Noíto, mas remonta à sua mãe e avó. Sempre mulheres. Mais uma vez, reflexões de Fábio Leite, sobre o valor “família”, nas três sociedades por ele estudadas, auxiliam no entendimento dessa nuance. Como já sublinhado neste trabalho, essas sociedades devem ser pensadas tomando como princípio que são de organização matrilinear. Na base dessas famílias, “encontram-se as ancestrais mulheres que lhes deram origem”. (LEITE, 1996, p. 9). Em alguma medida, esse marco teórico dialoga com a enunciação de Rioseco. A singularidade do papel desempenhado por Noíto naquele tecido social é digna de nota. Tende-se a pensar em um estágio larval de instauração de um matriarcado. Como se nota ao longo do romance, a ordem dos acontecimentos cotidianos, em que sob alguma medida essa mulher intervém para o desenlace, acaba por configurar-lhe como detentora de poderes de outra natureza. Curiosamente, denotando o estranhamento da comunidade em administrar a polivalência de Noíto, os moradores acabarão por nomeá-la Kambuta, como se vê a seguir:

Kwanza é que deu a novidade:
“A avó não sabe que lhe andam chamar a Kambuta?”
E ela ficou a saber. Que falavam sim da Kambuta, uma espécie de mulher com boa estrela favor da Kianda. E diziam que ela, a Kambuta, mulher do carpinteiro, conseguia tudo e trouxera para a ilha aquela ideia tão simples de aproveitar a água da chuva nos bidons. E que todos os chefes de família estavam meter canoas ao mar para demandarem, na loja do sô Pinto, tambores e chapas de zinco.
(...)
Viviam-se várias reflexões, contadas de boca em boca. A firmeza da Kambuta que até obtivera despesa sem ter cartão, que ralhara com o Cabo do Mar e já sabia pescar, ximbicar e produzir balaios que não ficavam nada a dever aos balaios de uma dona dali nata e vivida. (MONTEIRO, 1997, p. 142, 143).

Outra passagem que ilustra bem o estágio de liderança que o ardil de Noíto lhe agregara pode ser verificada na discussão sobre a posse da terra e das casas na ilha:

“Mas esse Kalala falou que a terra é de um ngueta que vai voltar.”
“É mentira.”
“Então.”
“A terra não é de ninguém.”
“Então é por isso a guerra. Desculpa mas então esta terra é tua?”
“É minha.”
“E tu tens papel?”
“Papel de quê?”
“Papel da terra. Tua terra. O Kalala disse que eu não podia receber nos cocos dos coqueiros porque não tinha papel da terra e quem não tinha papel não podia. Eles andam a dar papel?”
“Não sei. Mas se dão podem tirar no outro dia. Pior que antigamente. Uma vez vieram aqui. Na ilha toda. As mangas estavam maduras. Mas também havia verdes, ainda. Uma semana. Trouxeram homens e levaram as mangas todas.”
“Para quem?”
“Falaram estado.”
“Então com esse estado ainda me podem receber na enxada que me deste. Não. Aí não vão receber. Também, antigamente, quando os tugas chegaram aqui havia gente e eles ficaram. E ninguém daqui lhes passou papel. Também nem ainda dever ter e ainda bem. E olha só: os tugas quando chegaram na nossa terra eu é que lhes devia passar papel! Ah! Ah! Ah!” (MONTEIRO, 1997, p. 164).

Nos excertos do romance anteriormente discutidos neste trabalho evidenciou-se a multiplicidade dos estratagemas levados a cabo por Noíto, que terminou por alçá-la à condição de Kambuta. Nesse viés é perfeitamente compreensível o fato de ter sido ela, novamente, a reger o processo de interlocução entre os habitantes da ilha e o poder estatal. Como verificado por Fábio Leite, a aparente contradição de uma sociedade dirigida por homens potencializa, para uma mulher da estirpe de Noíto, a emergência do “papel fundamental exercido pelas mulheres na divisão do poder” (LEITE, 1996, p. 13), ou, melhor dizendo, no ato corajoso de proferir verdades a partir de seu lugar de, juntamente com os ilhéus, verdadeiros donos daquelas terras. E, como se não bastasse, sela a sua manifestação com uma gargalhada, como que a tripudiar a ignorância e soberba dos que se dizem representantes da coisa pública, da esfera estatal.

Contudo, as sociedades regem-se por normativas e conjuntos de virtualidades de valores essencialmente desiguais. Nessa ambiência paradoxal, encontrar-se-á, por vezes, uma Noíto em encruzilhada, mesmo sendo uma Kambuta. A refletir sobre a complexidade de vida, Noíto não saberia distinguir ao certo se o movimento empreendido por ela e seu marido seria, de fato, um caso em que considerar-se-ia feliz, ou não. Talvez por isso:

À tarde, ela sentava-se mais o Fiat e ouvia ele contar o dinheiro. Mandava dividir imediatamente. (...)
“O meu marido não precisava de trabalhar!” – pensava Noíto na sensação de ser uma mulher rica e com uma importância que jamais havia imaginado obter. Mas sempre com aquele interior receio da felicidade.
E, demandava-se naquele temor, observando os mangais enraizados por dentro da água e da terra sob o mar. (MONTEIRO, 1997, p. 216).

Mesmo se tratando de uma mulher que mandava, uma mulher rica e importante, ela não era sozinha, a sociedade constitui-se muito além da circunscrição da ilha e, de alguma forma, desse mecanismo, todos, inclusive Noíto, não se furtam conforme ânimo próprio. Mesmo o escritor confidenciaria tal situação em seu pronunciamento por ocasião do I Congresso Internacional de Teoria de Literatura e Literatura Lusófonas, em 2005, na cidade de Coimbra, Portugal:  “Ninguém em solidão é sem os outros”. (MONTEIRO, 2005).

Considerações finais

“Porque tudo era um resumo.”

(MONTEIRO, 1997, p. 134)

Acompanhar alguns momentos da saga de Noíto permite a tessitura de reflexões sobre o lugar ocupado, pelo feminino, no duro exercício da manutenção da vida em sociedade, principalmente quando esta parece equilibrar-se no fio tênue que a sustenta entre a ruína da terra natalícia e a esperança insular a que a velha mulher aportara com os restos de sua família. Desse lugar a matriarca pode ser observada:

Uma mulher é sempre uma mulher. Nem paz dos homens, nem silêncio das vozes lhe dá paragem no pensar assuntos. Seja distraída, alegre ou triste. A sua ideia voa demais, cresce, multiplica-se como o que se fermenta no útero fêmeo. Ela tem sempre de arranhar os antes e porvires. De mão na barba, fixando a mulher. E de que lado a sua terra-longe? Daquele lado mar e da terra ou do outro que não conhecia mas escutava a voz quente e forte, com laivos de paixões anunciados no cantar dos ramos de palmeira paliçados? (MONTEIRO, 1997, p. 23).

Noíto arranhou, significativamente, “os antes e porvires”, como se viu ao longo deste trabalho, o que torna plausível considerá-la ilustração das discussões de Fábio Leite, pelo menos em alguns valores civilizatórios sobre os quais foi ancorada esta reflexão. O seu estar/ser no mundo encetou o processo de construção e afirmação das identidades dos grupos sociais aos quais esteve vinculada, nos diversos momentos de sua vida. A julgar pela cena inicial do romance, quando é informado que ela e o marido estão a fugir de uma terra desolada pela guerra civil, o estatuto de sobrevivente já lhe confere um selo de audácia e fissura ante o pré-determinado por outros atores sociais, à sua revelia. Mas, mais do que isso, gestada, ao que parece, no seio de núcleo familiar com predominância matriarcal, ao aportar na ilha, seu comportamento cotidiano faz emergir e avultar a sua potencialidade enquanto liderança naquele novo lugar. O que permite a instauração, ainda que temerosa, de um novo desenho das relações em sociedade.

Esse outro lugar de fala, cujo discurso encontra em Noíto, ou no menino Kwanza, um dispositivo de resumo, de irmanação de gerações, veicula uma nova perspectiva cosmológica, uma nova cosmogonia, uma variação na elaboração de valores que perpassam todas as instâncias e agenciamentos com as coisas do humano e da natureza. A partir desse local de enunciação, nutrido pelo respeito aos saberes tradicionais, até mesmo aquele território de exceção, a ilha, pode contribuir para a manutenção da identidade coletiva. De acordo com Fonseca “a terra é o topos da identidade cultural, modelada pelos costumes preservados pela palavra dos antepassados, ensinada aos vivos desde a infância. É a ancestralidade que irmana as diferentes gerações”. (FONSECA, 2008, p. 131). O cultivo desses costumes, nucleadores dos vínculos ancestrais, corroboram as marcas identitárias e garantem a perenidade dos agrupamentos sociais. Como ressalta Fábio Leite:

Essas civilizações mantiveram e mantém a sua continuidade histórica – e não apenas a sobrevivência histórica – e nesse processo a natureza singular de seus valores civilizatórios é mecanismo de sua materialidade. (...) A natureza da dinâmica dos processos históricos dessas civilizações: elas são capazes de absorver novas propostas, oriundas de vários horizontes, e reproduzi-las com a autonomia garantida pela sua materialidade própria e criando novas sínteses. Essa capacidade sintética, que mantém a singularidade na pluralidade, permite considerar que essas civilizações não se encontram fechadas e voltadas para si. (LEITE, 1996, p. 14, 15).

Resta voltar à questão colocada no início da presente reflexão: haveria a possibilidade de existência de outra forma de se conceber o ser/estar no mundo, alternativo aos eixos gestados pela batuta europeizante? Com serenidade pode-se concluir que sim. O gesto criativo do escritor angolano Manuel Rui, em Rioseco, presta-se, também, a mimetizar, poderia-se dizer, as singularidades caracterizadoras dos valores civilizatórios que desenham a sobrevivência histórica de uma outra matriz de gestação das relações entre pessoas; entre pessoas e o mundo e, não menos importante, de interpretações cosmológicas desse mesmo mundo.

Há, sim, experiência comunicável, assim como também há fôlego para a sua transmissão. A escrita movente de Manuel Rui levou, no romance em tela, como lembrava Benjamin, “o incomensurável aos seus últimos limites”. (BENJAMIN, 1994, p. 199). Ainda resta esperança, aqui, nesse “mundo, mundo, vasto mundo.”

Referências

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Notas

[1] Artigo originalmente publicado nos Cadernos CESPUC de Pesquisa. Série Ensaios, v. 1, n. 27, 2015.

[2] Wellington Marçal de Carvalho é Pós-Doutorando em Estudos Literários pela FALE/UFMG. Doutor e Mestre em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Bibliotecário coordenador da Biblioteca da Escola de Veterinária UFMG. Integrante do Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas (GEED), desde 2011. Autor dos livros: Aquele canto sem razão: espaço e espacialidades em contos de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Boaventura Cardoso (2014) e A defesa incansável da esperança: feições da guineidade na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila (2018). É um dos organizadores do livro Deslocamentos estéticos (2020). E-mailEste endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

[3] Faz-se alusão a trecho do celebérrimo poema do escritor brasileiro de Itabira, Minas Gerais, Carlos Drummond de Andrade, intitulado “Poema de sete faces”.


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