Entrevista com Abdulai Sila[1]

Eliseu Banori[i]

Eliseu Banori: A nossa literatura teve um desenvolvimento tardio, comparada às literaturas de língua Portuguesa. Qual é a leitura que você faz da Literatura guineense nos dias atuais?

Abdulai Sila: Depois de muitos anos de letargia, devido a factores sobejamente conhecidos, a literatura guineense possui atualmente uma dinâmica extraordinária. E o mais interessante é que essa mudança de paradigma está a ser protagonizada pela juventude, o que augura não só a sustentabilidade como uma transformação qualitativa do panorama literário. Daqui a alguns anos, quando esses novos escritores atingirem a maturidade, teremos um cenário completamente diferente daquele que conhecemos no passado.

EB: Segundo a entrevista que deu a Fernanda Cavacas, Sol e Suor foi o seu primeiro livro escrito. Por qual motivo não o publicou?

AS: Acho que há aqui um mal-entendido. O que eu disse à Fernanda Cavacas é: “Há personagens que vão aparecendo nos vários livros e vão aparecer com maior evidência em Sol e suor”. Por outro lado, na última página do romance Mistida é feita referência aos dois romances que pretendia publicar a seguir, ou seja Sol e suor e Memórias SOMânticas, cujas tramas seriam uma espécie de sequencia do que tinha sido narrado em Mistida. Isso foi em 1997. No ano seguinte, como sabe, aconteceu uma guerra no país, que alterou a vida e os planos de toda a gente. Assim, só quase vinte anos depois, em 2016, é que veio a ser possível publicar o romance Memórias SOMânticas. O outro, Sol e suor, continua ainda na gaveta. Quanto ao meu primeiro livro escrito, esse vai ter que esperar ainda muito mais…

EB: A década 70 representa um grande marco para a nossa literatura. Nessa década, além de ser publicada a primeira coletânea de poesia, Mantenhas para quem luta! 1977, (uma coletânea em que a maioria dos versos foram em louvor aos combatentes de liberdade da pátria) e Momentos Primeiros da Construção, em 1979. Além dessas coletâneas publicadas, também foi publicado o primeiro livro individual de autoria guineense, do poeta Francisco Conduto de Pina, Garandesa de no Tchon (1978). Gostaria que comentasse essas publicações e nos desse a sua opinião sobre o poder das palavras como uma forma de resistênciaAS: Esses livros têm o mérito que toda a gente lhes reconhece. O país tinha acabado de sair de uma guerra devastadora, em que (re)construir era a palavra de ordem principal. A literatura tinha (e continua a ter!) um papel fundamental a desempenhar, sobretudo quando se tratava da descolonização das mentes, promoção dos novos valores morais e sociais, consolidação do sentimento de pertença à jovem nação, mobilização de todos as forças da sociedade para a construção do novo Estado, num clima de paz, solidariedade e progresso.

EB: Segundo alguns críticos literários, há uma demora na aparição de uma prosa tipicamente guineense. Só em 1952, foi publicado o primeiro conto de um guineense nato, de autoria de James Pinto Bull. Em 1994, você publicou Eterna paixão, considerado o primeiro romance guineense. Como você justifica esse surgimento tardio de produções literárias guineenses?

AS: A literatura surgiu quando estiveram reunidas as condições objetivas para ela surgir! Nem antes, nem depois. Como se costuma dizer, não se pode fazer omeletes sem ovos… Nesse quadro, é preciso lembrar que o primeiro liceu na então colônia só foi inaugurado em 1958! Antes dessa data não houve uma única instituição oficial de ensino secundário, sendo provavelmente a única colônia em África nessa condição. Isso dá uma imagem concreta do atraso a que o país foi votado pelo colonialismo português e uma dimensão clara da política de obscurantismo implementada pelas autoridades coloniais da altura.

EB: Na década de 1950, na Guiné-Bissau, não havia ainda um sistema literário. Contudo, havia criações de cunho individualista. Gostaria que você comentasse um pouco esse período.

AS: É o que disse antes: não pode haver literatura sem um desenvolvimento mínimo da literacia! Aliás, é preciso notar que, em última instância, são os leitores que sustentam a literatura. Ora, segundo os dados estatísticos a taxa de analfabetismo antes do início da luta armada de libertação nacional (1963) era superior a 90%!

EB: Na sua obra A última tragédia, observamos a sua preocupação com a situação feminina no país. As dificuldades vividas pela personagem Ndani, no romance, retratam essa preocupação. Na busca de uma vida melhor, ela vai parar na casa de um colonizador. Ali é violentada pelo patrão e tem que aceitar, posteriormente, um casamento forcado com régulo de Quinhamel, que a rejeitou depois por não ser virgem. Como você enxerga essa personagem, hoje em dia? Quais as dificuldades de consolidação de espaço de mulher na sociedade guineense, seja no mercado de trabalho, na política ou na literatura?

AS: A situação de discriminação em relação às mulheres é fato tão real quanto inaceitável. Tem as suas raízes históricas, culturais, ideológicas, que todos conhecemos. No entanto, como dizia Amílcar Cabral, não podemos falar em libertar o país sem a libertação das nossas concidadãs. Sendo um imperativo de justiça e uma condição para o verdadeiro desenvolvimento do país, a luta pela igualdade e equidistância do gênero tem que ser assumida por todos, mulheres e homens. Para a eliminação dos tabus e certos preconceitos enraizados na tradição, a literatura tem um papel de relevo a desempenhar. Ela, a literatura, pode e deve dar um contributo particular e inadiável, no âmbito da função que lhe é intrínseca de moldar o imaginário colectivo e de produzir incitamento à mudança de comportamento e atitude da parte do cidadão, individual e colectivamente tomado.

EB: A literatura guineense carece de prosadores. O que o levou a se aventurar no mundo da ficção?

AS: Paixão e tradição. Eu nasci e cresci num ambiente em que a literatura oral, em particular os contos tradicionais, tem um papel crucial na educação. Para além do aspecto lúdico, as lendas, fábulas e adivinhas constituem-se num elemento catalisador no processo de desenvolvimento da criatividade e da imaginação. Pena é que esse espaço de interação entre os mais velhos e os mais novos, e de transmissão de vectores fundamentais da identidade guineense, esteja em vias de extinção, devido em grande medida à expansão e facilidade de acesso ao audiovisual e à ausência de uma política pública adequada de preservação desse rico património. A paixão de escrever surgiu mais tarde, na sequência de incidentes que aconteceram na minha vida e que me obrigaram a procurar formas alternativas de comunicar o que me ia na alma. Quanto à questão da aparente falta de prosadores, acho que isso não é senão uma consequência lógica da ainda persistente incapacidade de expressão escrita por parte de uma boa parcela da nossa população. É que o guineense é um prosador nato, faltando somente o domínio da técnica de escrita para assistirmos a um boom desse gênero literário no país.

EB: A crítica ao abuso do poder político é um forte eixo na sua escrita. Como você enxerga a sua própria crítica num sistema público corrupto e burocrático?

AS: Se noutras partes do mundo o escritor tem tradicionalmente o dever de ser porta-voz dos que não têm voz, no nosso país esse dever é mais acentuado, sendo ao mesmo tempo moral, ético e até patriótico. A solidariedade e a fraternidade são valores fundamentais, intrínsecos à nossa tradição e cultura enquanto africanos. A corrupção e a podridão dela resultante são a negação desses valores. Há uma tendência cada vez mais acentuada, que se tem verificado de uns tempos a essa parte, no seio da elite guineense que aponta para uma mudança de atitude em relação ao que é tradicional, bem como adopção de padrões de comportamento que exageradamente privilegiam o individualismo. Isso tem incentivado a corrupção e a impunidade, obstaculizando a concretização da legítima aspiração de todo o cidadão ao progresso e bem-estar, a uma maior justiça social, à igualdade de oportunidades. Denunciar e combater esses males é um dever. Lutar para a afirmação de uma nação mais harmoniosa e solidária é uma obrigação de todo o cidadão, do escritor em primeiro lugar.

EB: Qual foi a sua inspiração para a criação de Daniel, personagem do romance Eterna paixão?

AS: Há uma situação que a minha geração enfrenta, que é muito difícil de explicar, e que justificou a inclusão de um personagem aparentemente ingênuo como é o caso do Daniel nessa narrativa. Tem a ver com o fato de nós mesmos, que tivemos o privilégio de vivenciar um momento tão transcendente da nossa História como foi o fim do colonialismo e a proclamação da nossa independência nacional, nós que fomos portadores de sonhos tão marcantes como a construção de uma “nação africana forjada na luta”, como dizia Amílcar Cabral, acabarmos por nos encontrarmos, como que por milagre ou maldição, numa situação em que já não entendemos quase nada do que está acontecendo. Nós tínhamos tudo para vencer, mas há muito tempo que temos estado a perder em quase todas as frentes. Tornamo-nos de repente pequeninos e aparentemente incapazes de alterar o curso dos acontecimentos, embora continuemos a acalentar os nossos sonhos originais, agarrados às nossas crenças na afirmação de uma sociedade e de uma nação nos moldes em que as concebemos desde sempre. Sonhos e crenças inabaláveis que todavia, vistos à luz da realidade vigente, parecem uma mera utopia. E é justamente essa utopia que encarna Daniel, um indivíduo que veio de fora, que tem motivos de sobra para continuar, sempre, a acreditar.

EB: Você tem comentado, em várias entrevistas, que o foco do livro Mistida é o roubo da memória. Nele não há um enredo contínuo. Contudo, em cada capítulo, a protagonista reaparece, com intuito de recuperar a memória roubada. No final do romance todos se unem. O que significa essa junção dos personagens ao final da obra?

AS: É a vitória do bem sobre o mal, da esperança sobre o fatalismo. É a confirmação de que ainda faz sentido, apesar de todas as dificuldades e contrariedades que possam existir, continuar a acreditar num amanhã melhor, numa sociedade onde reinem a harmonia, a justiça e a paz social.

EB: Para terminar, fazemos três perguntas: de onde vem a sua inspiração? quais são seus autores preferidos? Que conselhos daria para as novas gerações que buscam se afirmar no mundo literário?

AS: Inspiração: Vou ser muito franco e directo: não sei ao certo o que é isso de inspiração. E eu me explico: Como disse antes, faço parte de uma geração que cresceu agarrada a um sonho e que hoje vive uma realidade bastante turbulenta. Apesar de tudo, continuamos mantendo firme esse sonho, crentes num desfecho favorável. Assim, movidos por essa crença inabalável, fazemos tudo o que está ao alcance, inclusive através da literatura, para não só manter vivo o sonho, como fazê-lo cada dia mais contagiante, mais apetecível aos olhos dos demais concidadãos. É, pois, nesse contexto, tentando ganhar mais combatentes para a causa comum, que eu escrevo. Assim, porque tenho estado sempre a escrever, saltando de um gênero literário para outro, das duas uma: ou estou sempre inspirado ou não preciso de inspiração para escrever.

-Autores preferidos: Já li de tudo um pouco, desde clássicos russos a celebridades latino-americanas. Mas, para ser honesto, os meus autores preferidos, aqueles cujos livros enchem a minha biblioteca, são os autores africanos e afro-descendentes.

-Conselhos à nova geração: leiam, leiam, leiam… Leiam sempre. Ah, e não se esqueçam de ter sempre em mente uma lição muito importante da sabedoria popular: “Não se deve, logo no primeiro dia que se vai à caça, pretender abater um elefante”.

NOTAS

1 Originalmente publicada como anexo na dissertação de mestrado do entrevistador intitulada Pequena longa viagem da literatura guineense, defendida em 2019, no mestrado em Letras da UFRJ, sob orientação da Professora Dra. Maria Teresa Salgado Guimarães e coorientação da Professora Dra. Moema Parente Augel.


[i] Eliseu José Pereira Ié (Eliseu Banori) é mestre em Letras pela UFRJ. Pós-Graduado - Lato senso Especialização em Literaturas Africanas e Portuguesa pela UFRJ 2015/2016; graduado em Letras: Português-Literaturas pela UFRJ-2009/2014; Foi homenageado como Escritor do Ano na Guiné-Bissau (2021); Membro e poeta honorário do Instituto Internacional Cultura em Movimento (2021); É poeta e escritor com dez livros já publicados: Em busca do espaço Verde (Poesia), Ed. Magnífica-2011; O vento Ainda Sopra, Ed. Multifoco-2012; Memórias fascinantes: relatos que traduzem o silêncio (sociologia), Ed. Multifoco-2014; As Almas em Agonia (romance), Ed. Pod, 2015; Cantar do Galo (contos), Gramma Ed. 2017; O Rei Imbatível: Caminhos Árduos do Juju ( Biografia do músico Justino Gomes Delgado), Ed Autografia, 2019; A História que a minha mãe não me contou e outras histórias da Guiné-Bissau (contos infanto-juvenil), Ed Nandyala, 2020; Papa Negado: Uma fonte de inspiração ( biografia de Ector Diógenes Cassamá), Editora Autografia, 2022; Djarama - (contos infanto-juvenil) , Editora Globo, 2022; Nada é para sempre (contos juvenis), Editora Revista África e Africanidades, 2022. Cantar do Galo - contos ( segunda edição) pela Editora e Revista África e Africanidades. Em andamento o processo de publicação das obras literárias: Numa Manhã de Junho (romance), Memórias de guerra civil de 1998 na Guiné-Bissau, A história do rei mágico (infantojuvenil), Hoje é amanhã (infantojuvenil)., pela editora Pallas. Atualmente, é membro efetivo do PEN da Guiné-Bissau.

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