Entrevista com Moema Parente Augel[1]

Eliseu Banori [i]

Eliseu Banori: Querida Moema, eu como muitos dos guineenses que estudam literatura, te consideramos guineense de coração. Como você vê a literatura guineense hoje em dia?

Moema Augel: Em franco desenvolvimento, Eliseu. A Guiné-Bissau está passando por um momento belíssimo, com uma multiplicação de publicações, muitas delas da melhor qualidade. Além da movimentação das duas editoras, em Bissau, há autores guineenses que publicam no Brasil, em Portugal, além do recente fenômeno dos livros eletrônicos, os conhecidos e-books, postos em circulação pelos próprios autoresEB: Dos anos 2000 até o presente momento, surgiu uma nova geração de poetas e escritores guineenses. Como você enxerga a escrita desses jovens que trilham prazerosamente nos caminhos das letrasMA: Com muita alegria e esperança. Estãosurgindo novos poetas, novos prosadores, vozes femininas estão se fazendo ouvir, enfim, a vida cultural está cada vez mais dinâmica e atraente. Os meios eletrônicos têm facilitado tanto a impressão, e assim também a publicação, como a divulgação de novos títulos e faço votos que esse dinamismo instigue ainda mais esta nova geração a dedicar-se à literatura.

EB: O que falta para tornar a literatura guineense mais apreciada e estudada como as outras da sua comunidade linguística?

MA: Divulgação. É dificílimo adquirir a produção literária guineense. As editoras têm um site, é verdade, sei que as encomendas feitas por exemplo na Alemanha para a KU SI MON são atendidas com prontidão, mas esse recurso não é muito conhecido. As tiragens são limitadas, o país não dispõe de livrarias nem de organismos que se ocupem com a divulgação e a distribuição dessas produções. Não há incentivo, a qualidade da formação escolar é ainda muito deficiente, outro aspecto negativo. Ainda há o problema financeiro. Para os guineenses que estudam no Brasil, por exemplo, por questões logísticas e financeiras, é difícil comprarem livros. Cópias policopiadas circulam entre eles, quando é possível encontrar alguma. E somente uns poucos autores se tornam presentes, ficando uma maioria de textos de qualidade completamente ou quase completamente ignorada, desconhecida. São algumas das razões que me ocorrem no necessariamente curto espaço desta entrevista.

EB: Observamos na sua pesquisa a grande paixão pela literatura da Guiné-Bissau e por seus autores. Em 1996, a sua valiosa contribuição nos projetos da INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa), facilitou bastante a divulgação dos textos inéditos. Hoje, após mais de vinte anos dessa publicação, como você vê o fruto desse trabalho em colaboração com INEP?

MA: Desde 1993, quando começamos a viver na Guiné-Bissau, estou profundamente envolvida com o projeto literário desse país e desde então não parei de divulgar os autores guineenses em artigos, em palestras e em participação em congressos. Além do livro publicado em 1998, que encerrou a colecção Kebur, A nova literatura da Guiné-Bissau, publiquei no Brasil, 9 anos depois, o Desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na Guiné-Bissau. Sinto que essas atividades ajudaram a desencadear um maior interesse por parte da comunidade acadêmica no exterior e hoje em dia vejo com satisfação um número crescente de artigos e trabalhos de mestrado e mesmo de doutorado inserindo autores guineenses em suas análises.

EB: Grandes estudiosos, como Mário de Andrade e Manuel Ferreira divulgaram poucos autores guineenses nas suas antologias publicadas após independência do país. Concorda com a posição desses estudiosos da história das literaturas africanas de língua portuguesa?

MA: Na época, não havia praticamente publicações de autores guineenses. Divulgação, nenhuma. Seu trabalho de mestrado, Eliseu, que você acaba de concluir, virá trazer uma contribuição importante para o conhecimento desse pouco que já existia por volta das inquietudes libertárias da década de 1970 e mesmo antes. Vasco Cabral tem poemas datados da década de 1950. Mas esse conhecimento e reconhecimento estão se fazendo agora; na época dos estudiosos aos quais você se refere, o contexto era diferente. Mesmo assim, é digno de nota que Manuel Ferreira tenha divulgado poemas de Vasco Cabral (dez poemas) e de Hélder Proença (cinco poemas), já em 1979, na importante revista por ele dirigida, África. Literatura, Arte e Cultura, antes dos livros desses dois autores terem saído (Cabral em 1981, Proença, em 1982). A oralidade também foi por ele considerada, abrindo espaço nessa mesma revista para um artigo de Teresa Montenegro e Carlos Morais, "Uma primeira interrogação em crioulo à cultura popular oral" na Guiné-Bissau, no mesmo número (1979).

EB: A guerra civil de 1998-1999, sem sombra de dúvida, destruiu tudo que havia de ‘letras’ no INEP. Como você vê o impacto dessa destruição no processo de desenvolvimento literário guineense?

MA: Não foi uma destruição completa, mas quase. O que de fato foi queimado pelas bombas e pela depredação dos militares "aliados" foram os arquivos, de valor inestimável e uma grande parte da biblioteca que guardava livros raros e insubstituíveis. No caso da literatura, o maior acervo das publicações da nossa coleção Kebur estava na Editora Escolar. Conforme fui informada, por ter sido financiada pela Suécia, a administração teve a iniciativa de hastear a bandeira daquele país e o prédio da Editora foi poupado, salvando assim as publicações ali armazenadas.

EB: Nas décadas de 50 e 60, como se lê na história de literatura guineense, havia poucas vozes poéticas de origem guineense. Amílcar Cabral, Vasco Cabral e António Baticã Ferreira são referências desse tempo. Sabemos que na então colônia não existiam grupos que poderiam constituir em “movimentos literários”. Qual a sua avaliação desse período?

MA: Você se referiu muito bem a esse período na sua dissertação de mestrado. Há poucas vozes conhecidas, e provavelmente algumas outras que nem chegaram aos nossos ouvidos. Compreensível pelo estado de pouco uso da escrita naquela época. Mas discordo de se querer amenizar essa lacuna lançando mão de autores estrangeiros, portugueses e caboverdianos sobretudo, que escreveram romances e poemas com temáticas guineenses. Eles têm seus méritos, mas apresentam uma visão de fora, também natural, não pertencem, a meu ver, à literatua da Guiné-Bissau.

EB: Mantenhas para quem luta! A nova poesia da Guiné-Bissau (1977) foi a segunda antologia publicada, após a independência do país (1973). Foi a primeira a reunir somente poetas de nacionalidade guineense (14 poetas). Os temas poéticos dessa coletânea parecem ser um embrião da literatura guineense. Manuel Ferreira, Russel Hamilton e Fernando J.B. Martinho, autor do prefácio do livro A luta é a minha Primavera, de Vasco Cabral, discordam em relação ao marco da literatura guineense. No entanto, suas pesquisas parecem apontar o livro Poemas, de Carlos Semedo, como marco da literatura guineense. O que tem a dizer sobre essas contradições entre esses historiadores de literaturas africanas de língua portuguesa?

MA: Como publicações impressas, em livro, alguns autores o fizeram somente depois da independência; mas possuem textos datados de época anterior, como você documentou em seu trabalho de mestrado. Carlos Semedo publicou seus Poemas já antes da independência, em 1963, uma modesta, mas preciosa brochura que eu não chamaria de livro ainda, como não o foram as duas ou mesmo três primeiras antologias poéticas do país ou a Garandesa di nô tchon, de Conduto de Pina, de 1978, edição do autor, a primeira publicação poética individual depois da independência. Friso, entretanto, que essa modéstia em nada diminui a importância dessas publicações. Muito pelo contrário.

EB: Hoje em dia, não podemos negar que as suas obras são grandes referências para quem pretenda escrever sobre literatura guineense. Como você vê o interesse em torno da literatura guineense no Brasil?

MA: Relativamente grande e em franco crescimento. Odete Semedo foi reeditada em editoras brasileira e portuguesa, Abdulai Sila também, e ainda com tradução em francês, inglês e italiano do seu romance A última tragédia; ambos e também Tony Tcheka têm sido convidados com frequência por diferentes instituições culturais; professores de várias universidades trabalham e animam seus estudantes a trabalharem sobre esses e outros autores guineenses, há artigos, teses e dissertações sobre assuntos variados, não só de literatura, pelo Brasil afora, enfim, é gratificante constatar que em quase nenhum congresso de maior extensão a Guiné-Bissau está ausente. Recentemente foi defendida no Brasil uma tese sobre o cineasta Flora Gomes. Se você consultar a internet, vai se admirar das centenas de toques, referências que evidenciam a frequência e o interesse de cada um desses autores e outros também.

EB: Sabemos que você morou na Guiné-Bissau por alguns anos. Só saiu de lá às vésperas do conflito militar de 1998/1999. Qual foi o motivo da sua visita, e quanto tempo ficou por lá?

MA: Meu marido, Johannes Augel, da Faculdade de Sociologia de Bielefeld, Alemanha, foi convidado a participar no INEP de um programa das igrejas evangélicas da Alemanha (hoje "Pão para o Mundo", Brot für die Welt), direcionado para a cooperação internacional. Fui como "acompanhante" não financiada, e me interessei desde o início pela cultura local, procurando me informar sobre os escritores. Não tendo encontrado quase nada disponível, apostei na certeza de que não era possível inexistirem pessoas que escrevessem; fui procurá-las, aleatoriamente, em locais de trabalho e fui encontrando e conhecendo pessoas que me mostravam seus escritos, poesia e prosa, em cadernos manuscritos ou folhas na época quase sempre datilografadas (e quase nunca digitadas em computadores). Convencida da grande qualidade de alguns desses textos, procurei meios para financiar algumas publicações, encontrando abertura na representação da União Europeia em Bissau, na época dirigida pelo Delegado Riccardo Gambini; tive também total cobertura da parte do INEP que, apesar de estar vocacionado sobretudo para os estudos e pesquisa voltados para assuntos da sociedade e da cultura em geral, aceitou abrir espaço ao meu projeto literário. O sucesso não podia ter sido maior e até hoje sou imensamente grata pela confiança que ambas as instituições depositaram em mim. Johannes Augel teve um contrato de cerca de 3 anos, do final de 1992 a 1996; meu projeto prosseguiu e estive no país então por várias vezes por semanas ou meses até que a Páscoa de 1998, tendo retornado "definitivamente" para Bielefeld, com meu projeto finalizado com a publicação de oito volumes da Colecção Kebur, poucas semanas antes do conflito que começou em maio de 1998.

EB: De todos os países da África de língua portuguesa, a Guiné-Bissau foi o que mais sofreu em relação à divulgação dos seus escritores. Lembremo-nos de que na então colônia não havia atividades literárias desenvolvidas por guineenses, ao ponto de nascerem “movimentos literários” guineenses, como aconteceu em Angola, Moçambique e Cabo Verde. O que mais se manifestava eram expressões poéticas individuais dos poetas desse tempo. O que tem a dizer sobre essas declarações?

MA: Acho que já me referi a esse assunto aqui respondendo a outras perguntas desta entrevista.

EB: Nota-se, na maioria das antologias poéticas guineenses, desde 1973 até a última em 2010, pouca participação das vozes femininas, ou seja, a presença feminina parece apagada nessas antologias. Comente a pouca visibilidade das mulheres na literatura guineense.

MA: Na verdade, não é somente na Guiné-Bissau que se constata o quase silenciamento das vozes femininas, sobretudo no passado. A falta ou quase falta de escolaridade das meninas é certamente um doloroso e frequente fator. A mentalidade ainda predominante em muitas culturas de que o lugar da mulher é à beira do fogão, "mulher própria só vale na porta do casamento", como escreveu Félix Sigá em seu poema "Pasa ku mon".

EB: Para terminar, gostaríamos de saber de onde vem a sua inspiração. Que conselhos você daria para as novas gerações de pesquisadores das literaturas guineenses que buscam se afirmar no mundo literário?

MA: Não é questão de inspiração, Eliseu. E sim de interesse, de envolvimento, da convicção que vale a pena apostar na Guiné-Bissau, país que se tornou também meu "tchon" emocional. Para quem pesquisa sobre o país, é necessário que procurem conhecer o país em sua rica diversidade cultural sem a qual não é fácil compreender a essência dos textos que são tão impregnados dessas culturas.

NOTAS

1 Originalmente publicada como anexo na dissertação de mestrado do entrevistador intitulada Pequena longa viagem da literatura guineense, defendida em 2019, no mestrado em Letras da UFRJ, sob orientação da Professora Dra. Maria Teresa Salgado Guimarães e coorientação da Professora Dra. Moema Parente Augel.



[i] Eliseu José Pereira Ié (Eliseu Banori) é mestre em Letras pela UFRJ. Pós-Graduado - Lato senso Especialização em Literaturas Africanas e Portuguesa pela UFRJ 2015/2016; graduado em Letras: Português-Literaturas pela UFRJ-2009/2014; Foi homenageado como Escritor do Ano na Guiné-Bissau (2021); Membro e poeta honorário do Instituto Internacional Cultura em Movimento (2021); É poeta e escritor com dez livros já publicados: Em busca do espaço Verde (Poesia), Ed. Magnífica-2011; O vento Ainda Sopra, Ed. Multifoco-2012; Memórias fascinantes: relatos que traduzem o silêncio (sociologia), Ed. Multifoco-2014; As Almas em Agonia (romance), Ed. Pod, 2015; Cantar do Galo (contos), Gramma Ed. 2017; O Rei Imbatível: Caminhos Árduos do Juju ( Biografia do músico Justino Gomes Delgado), Ed Autografia, 2019; A História que a minha mãe não me contou e outras histórias da Guiné-Bissau (contos infanto-juvenil), Ed Nandyala, 2020; Papa Negado: Uma fonte de inspiração ( biografia de Ector Diógenes Cassamá), Editora Autografia, 2022; Djarama - (contos infanto-juvenil) , Editora Globo, 2022; Nada é para sempre (contos juvenis), Editora Revista África e Africanidades, 2022. Cantar do Galo - contos ( segunda edição) pela Editora e Revista África e Africanidades. Em andamento o processo de publicação das obras literárias: Numa Manhã de Junho (romance), Memórias de guerra civil de 1998 na Guiné-Bissau, A história do rei mágico (infantojuvenil), Hoje é amanhã (infatojuvenil)., pela editora Pallas. Atualmente, é membro efetivo do PEN da Guiné-Bissau.

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