Entrevista com Maria Odete da Costa Soares Semedo[1]

Maria do Socorro Vieira Coelho[i]

Vera Lúcia da Silva Sales[ii]

Maria do Socorro / Vera Lúcia: No poema Em que língua escrever”, o eu-poético aborda a questão da expressão escrita se em português ou se em crioulo. Como você lida com essa questão durante o processo de criação?

Odete Semedo: Para quem lê a poesia já feita, em livro, levanta essa questão, mas para quem escreve, na altura em que escreve, não pensa nessas coisas; é algo que está impregnado em nós, sobretudo, para quem trabalha ou para quem escreve em duas línguas. No nosso caso, na Guiné Bissau, temos uma língua, como língua materna, que é através da qual falamos, por meio da qual somos acarinhados, acarinhamos e contamos as nossas histórias; e, por outro lado, temos uma língua com a qual aprendemos a contactar o mundo exterior, através da qual atravessamos a nossa tabanca, atravessamos o nosso torrão natal e entramos em contato com outras pessoas. Nesse sentido, estamos entre dois mundos que se mesclam e se fazem um e que passa a ser o nosso mundo; por isso, na hora de escrever, muitas questões vêm à tona e no poema “Em que língua escrever” aparece esse fato, da minha vivência mesmo, porque, nesse processo, sou confrontada a escrever nessa outra língua que, agora também é minha, mas que é diferente de quando eu estou a contar uma história em crioulo.

MS/VL: Quando você escreve, escreve primeiro em sua língua e depois trabalha o texto?

OS: Não, eu escrevo em português e em crioulo; conforme sai, eu escrevo. Há, por exemplo, poemas que escrevi, inicialmente, em português e depois os transcrevi para o crioulo, e vice versa. Há uma questão muito séria nesse caso, pois, para se expressar, poeticamente, nas duas línguas, é necessário dominá-las, conhecer as várias cores, os vários sons, as várias nuances que as envolvem. Muitas vezes, eu me questiono sobre como escrever e como contar. Quando eu conto, eu sinto muito mais à vontade, contando em crioulo, porque eu falo e não tenho dores na garganta. Isso faz-me lembrar a minha filha, a do meio, pois, em casa, falamos mais crioulo, mas, há momentos, em que eu digo que nós vamos fazer uma aula de reforço, dar explicação e não sei o quê e, de repente, nós ficamos a falar português quase o dia todo e, de repente, quando uma das irmãs vem para falar com ela, ela diz: “ah! não. Fala em crioulo que eu estou cansada, já me dói o pescoço, a garganta; isso aqui está tudo doido de tanto falar português”. Ao escutar isso dela, eu disse: “mas tu falas crioulo todos os dias, a toda hora”. E ela respondeu-me: “não, mãe, mas é crioulo, vai comparar crioulo com português, não tem nada a ver”. É isso, o crioulo, para a criança, é aquele momento de sentir-se à vontade, é uma língua em que ela navega, como se costuma dizer, à vontade, com seus remos, seus instrumentos; então, ela não tem problema em falar essa língua, não lhe dói nem a garganta nem o pescoço. Já, ao falar o português, ela diz “ai mãe, não, chega, vamos falar crioulo, porque eu tô cansada”, quer dizer que, quando ela fala português, tem que raciocinar mais, tem que se lembrar das regras, dizer “ah! não, se eu falar assim, talvez eu esteja falando errado”; agora, quando ela fala crioulo está a vontade, está automatizada nessa língua, não tem essa questão de pensar e repensar.

MS/VL: E, na criação, você para para pensar?

OS: Não, na criação, eu não paro para pensar. Mesmo em português, eu não paro para pensar, eu não traduzo. Há momentos em que essa língua portuguesa, que eu domino, é transpassada pelo crioulo. Em várias situações, quando você lê o meu texto, pode considerar algumas passagens “erradas”, pode ler e dizer: ah, ela escreveu isso mal, deveria ser “para” e não “através de”, ou deveria ser, por exemplo, “por meio de”... Aparecem palavras do crioulo no português.... Não só as palavras, porque quando falo português, eu uso todas as palavras em português. O problema é a conexão entre as palavras, as ligações usadas para construir uma frase; isso, às vezes, me escapa e, então, o crioulo entra português adentro. Por exemplo, quando digo “eu acho, eu acho que”, em português, “é uma coisa assim, não tem certeza, mas acha”, mas, em crioulo, quando eu digo “mocha, mocha coma”, que eu traduzo por achar, em crioulo animocha quer dizer “meu sentimento sobre aquilo, a minha análise sobre aquilo”; agora, quando eu coloco na língua português eu acho, ou eu digo, numa entrevista, “eu acho isto”, o entrevistador entende que, pelo fato de eu achar, eu não tenho certeza. Percebe a diferença, em crioulo, quando eu digo “animocha”, eu acho, é porque eu analisei, por isso achei que é assim, já é a minha posição, eu não acho sobre o vazio; quando eu vou achar uma coisa é porque eu já me debrucei sobre ela e achei que é assim. Por isso, digo que é uma questão semântica, pois você está naquele lugar, e esse é o uso que você faz da língua, mas para o seu interlocutor não é dessa maneira; você tem que ter esse cuidado e é esse cuidado que faz doer a garganta da minha filha, quando ela fala português o dia todo, porque é um exercício de atenção redobrada; você se monitora todo tempo, “não posso dizer essa palavra”, você diz outra, se corrige, vai autocensurando. Tudo isso é questionado, quando digo “nessa língua que eu mal entendo”. Não é questão de eu não saber a língua portuguesa, mas ela sempre será a língua da qual eu me apropriei. Daí, eu dizer que “eu mal a entendo”, para as pessoas que julgam a minha realização em português; por exemplo, eu não consigo falar, espontaneamente, “carro, barril, rapaz, rosa, socorro”; quando eu falo “rapaz, socorro, ramo, rosa” é porque estou atenta e já me preparei para fazer essas realizações que não existem na minha língua.

Lembro-me que uma vez, na Universidade Nova, em Portugal, eu estava falando com uma colega de turma, e disse, “gosto de dar aula, mas o que não gosto é de “corigir” provas”, e ela disse “não gosta de quê? de “corigir”? o que é “corigir”?” E eu respondi “corrigir é, por exemplo, ler um texto que o aluno fez e lhe entregou para você verificar se está dentro do que foi solicitado”, e ela “ah! não, você não disse “corrigir”, eu entendi outra coisa. E perguntei “o que você entendeu?” “Nada, porque não existe “corigir”, só “corrigir”. E eu lhe disse: “você tem que habituar seus ouvidos para os seus interlocutores de países africanos, porque você sabe que existe essa palavra, e nós estamos a falar dentro de um contexto de dar aulas, de correções e entender que o fato de eu falar puxando ou não o “erre”, não significa que eu estou falando errado.

Os portugueses cobram muito. Quando você fala, eles ficam a vigiar “a língua portuguesa”. Acho que esse comportamento deles dificultou muito a aprendizagem e o uso espontâneo da língua portuguesa na Guiné. Esse complexo de erro desencadeia o fenômeno linguístico de hipercorreção e a pessoa passa a dizer “corração”, onde não existe o “erre”; ou seja, corrige onde não deve corrigir. Quando falo com pessoas normais, eu falo mais espontaneamente; agora com gente da academia eu tenho mais cuidado, porque ela vai me julgar pela minha fala. Sobre a questão do poema “Em que língua escrever”, traz à tona a língua na qual eu ouvi contar histórias, em que as palavras eram ditas com uma sonância, com um ritmo que eu domino. Entretanto, eu vou escrever numa língua que eu não domino, e, também, vou ler nessa língua que é de outra gente que não entende a minha. Eu me lembro que a moça que fez a revisão da minha tese disse “eu vi umas expressões em seu texto, mas não troquei, porque senti que é a sua língua materna que está lá”. Eu gostei disso, porque é o meu selo, eu não posso fugir disso e o português que eu aprendi é perpassado por essa língua que me persegue em todos os lados que eu vou: está na minha escrita, em língua portuguesa, o tom do crioulo, o som do crioulo que é a língua de casa. A língua portuguesa é a possibilidade de sair porta afora. Vários autores africanos polemizam essa questão e há, alguns mais radicais, que não escrevem em português. Nelson Morina, poeta guineense, que trabalhei em minha tese, escreve todos os poemas em crioulo e, às vezes, ele faz paródia com a língua portuguesa e escreve, como é chamada na Guiné, na língua do porto que diz “eu saber que o senhor tenente agora estar e em Lisboa, agora virou gente grande, gente importante”. Ele faz essa paródia para mostrar como, na tabanca, as pessoas falam a língua portuguesa, porque as pessoas só a usam quando aparece um interlocutor. É interessante notar que elas entendem, mas na hora de falar, “aaahi, eu tenho vergonha de falar, eu vou falar tudo errado”, e respondem em crioulo.

MS/VL: No prefácio do livro Entre o ser e o amar, você afirma que a relação com a vida, a interação entre as pessoas, os fatos e os rastros acabam por ser a sua poesia, o seu desabafo. Fale um pouco dessa relação que você faz entre vida e poesia.

OS: Para mim, poesia é vida e, quer queiramos, quer não, nossos devaneios estão presente nas nossas memórias e o caminho que fazemos, nesta vida, é um caminho cheio de atropelos, cheio de emoções. Quando você tem instrumentos – nem todo mundo tem, eu talvez tenha um pouquinho – para expressar, através de sua escrita, o sentimento que circunda não só a sua vida, mas a vida em si, é possível transformar em poesia, em palavras, essa relação que você mantém com tudo que está a sua volta. Penso que é assim, sobretudo, porque, na Guiné Bissau, a literatura é muito nova e foi quase sempre uma escrita de intervenção. Quando não foi de contestação, ela foi de sentimento, de uma lírica sentimental, mas sempre impregnada de uma mensagem. Nós utilizamos muito o escrever como um lugar de expressar o nacionalismo, a nossa história. Isso aconteceu com vários países africanos. Lembro-me que vários críticos falavam da poesia lutista de Angola, de Moçambique, da Guiné-Bissau. Realmente, houve um momento em que nossa poesia era quase a expressão dos sentimentos populares; na altura, o querer a independência, a soberania conquistada e, depois, as frustrações que vieram, pois aquilo que o povo e os artistas estavam a esperar, não acontecia de modo nenhum. Esses sentimentos aparecem na nossa poesia, mas há quem diga que a minha poesia é mais intimista. Eu não sei se é, mas ali, de uma forma muito leve, muito sutil, eu falo daqueles homens sem rosto que fazem a história e cujos nomes jamais nós conheceremos. Falo, também, de um país que suspira por um lugar à sombra, no concerto das nações. Essas questões estão presentes em meus poemas, porque acredito que cada país deveria ter um lugar de direito, mas, infelizmente, nem todos os países africanos, hoje, podem afirmar isso, porque continuam ainda lutando por coisas básicas como educação e saúde para todos. Tudo isso que é vida está presente na poesia, por isso eu digo que todos que fazem parte da nossa vida, que interagem conosco são a nossa poesia.

MS/VL: No fundo do canto é composto de partes que convidam o leitor-ouvinte a se embrenhar numa fala-escrita e se inteirar de um acontecimento da história da Guine Bissau. Como se concretiza o projeto da artista Odete Semedo para conciliar história e criação poética?

OS: Nesse livro, especificamente, eu consegui fazer uma fusão entre a Odete cidadã, a Odete mãe e a Odete mulher que está, também, na política; foram várias pessoas da minha pessoa que se conjugaram para escrever.

MS/VL: O que há em comum entre as várias, Odete?

OS: Entre as várias, há a ansiedade de ter um país livre, justo, em que o equilíbrio, os direitos fundamentais da pessoa humana estejam presentes. Esse é o fio condutor entre essas várias pessoas da pessoa da Odete, porque é a partir dele que emanam as várias vozes que saem daquela que teve a oportunidade de ir à escola, de conhecer a história dos grandes impérios africanos, de conhecer a geografia da África e, dentro dessa geografia, contextualizar a Guiné Bissau, em meio à história de seus símbolos e de seus ritos religiosos e profanos. No livro No fundo do canto, deixo transparecer o desejo de uma união de boa vontade na Guiné-Bissau. Por isso, busquei os totens para que todos eles se juntassem – concílio dos irans – e faço chegar a esse concílio aqueles que não têm voz na sociedade. Eles aparecem e dizem “não fomos convidados, mas viemos, pois foi um erro vocês não nos chamarem e se não aparecermos aqui será um outro erro ainda maior; estamos aqui, porque tivemos um sonho”. E, a partir desse momento, o poema reporta para a simbologia dos sonhos que, muitas vezes, orienta os curandeiros e os sacerdotes. Faço um junção entre as várias religiões que existem na Guiné: a católica, a muçulmana, a de matriz africana e me reporto aos irans, aos balobas, aos deuses, a Deus todo poderoso, aos santos. Junto todos em uma cerimônia em que há a voz do padre, do pastor, do balobeiro, do ancião, do almamo. Todos se juntam e, em cada dia da semana, as cerimônias são feitas, por cada um desses grupos. Na terça-feira, após o término do levantar da esteira (que é a cerimônia do choro), todos vão embora, porque terminaram as cerimônias.

Nesse poema, eu quis chamar a atenção dos guineenses, para uma união necessária, em que cada parte, unindo-se a outras, forme uma força, sem que ninguém perca sua essência, ou seja, um mulçumano não precisa deixar de ser muçulmano, quando se une ao cristão para a construção da nação guineense. Um é muçulmano, outro católico ou protestante ou animista, mas todas essas forças construirão a nação; esta é a essência da guineidade: é nessa mistura, nesse mosaico de diferenças culturais, religiosas e simbólicas que se encontra, de fato, uma união de forças.

MS/VL: Odete é Católica?

OS: Sou católica e professo, também, as religiões africanas. A igreja católica, em um de seus mandamentos, diz que você não pode professar outras religiões, mas, no meu caso, eu assumo que professo as duas abertamente. Pratico, por exemplo, as cerimônias do choro, do tocatchuro, do levantar da esteira, da cabeceira da cama que não existem na igreja católica.

MS/VL: Como é a realização dessas cerimônias?

OS: É uma infinidade que eu não posso explicar aqui, porque fugiria à proposta da entrevista. Todas elas são cerimônias típicas de raiz africana, realizadas em festas de casamento, batismo e outras. Temos dois momentos: em um, praticamos as cerimônias da igreja católica; em outro, a religião de matriz africana. Por exemplo, quando morre alguém: segundo a igreja católica, trata-se o corpo, coloca-o no caixão, celebra a missa, faz o enterro e as pessoas vão embora. A família vai para casa e, no sétimo dia, faz a missa e as pessoas se encontram novamente. Mas, na religião de minha mãe, por exemplo, quando morre alguém, antes da saída do caixão, há um porco que é imolado e o sangue é derramado; há uma comida que é feita na panelinha de barro, partida na porta, antes da saída do caixão; depois, as pessoas ficam na casa, conversando e ajudando os familiares. Depois disso, tem a cerimônia do tocatchuro em que se colocam vários bombonluns, tambores, e imolam-se bois, caprinos, suínos. Para se fazer essa cerimônia em casa, mais divindades são invocadas e são cobertas e alimentadas.

MS/VL: Quais divindades são invocadas?

OS: Invocam os espíritos dos mortos. Por exemplo, no tocatchuro de um pai ou mãe de uma família, invocam outras almas, que não as da família do morto, para estarem presentes naquele momento. A igreja católica não aceita. Se você é católico, tem que acreditar em um Deus único, todo poderoso, em Cristo e nos santos. Hoje, na Guiné, a igreja está mais tolerante, porque eles perceberam que não conseguimos ficar sem nossas raízes. Quem somos nós sem as nossas cerimônias? Se nos tirarem isso, contaremos com quem? No dia da morte do ente querido, queremos ter gente conosco em casa, que nos conforte e isso só na nossa religião de matriz africana. Na religião católica, há esse conforto no momento das cerimônias, depois as pessoas vão embora. Nós não deixamos a pessoa que perdeu o ente querido sozinha com os filhos, por exemplo; não pode, tem que estar lá, pessoas mais velhas para confortar, para falar. Muitos acham que é um gasto, que as pessoas vão lá só para comer de graça. Não pensamos assim, a pessoa tem que comer porque está lá ajudando, está chorando, como a gente diz lá. Todo mundo sabe que tem essa cerimônia, sabe que tem que cozinhar, tem que mandar gente cozinhar, mas não é a que perdeu o ente querido que vai fazer isso; são os amigos, os familiares que se disponibilizam, dão um dinheiro pra ajudar a manter aquelas pessoa que estão na casa. Não é só a pessoa que teve a perda que dá dinheiro. As outras cotizam, há uma ajuda mútua na comunidade. Cada um dá uma coisa: alguns levam lenha, outros dão um garrafão de suco de limão (como há muito limão lá, às vezes, as pessoas têm em casa um estoque de litros de suco de limão e quando há um casamento ou há um choro elas pensam “ah! vão precisar, porque vão cozinhar”), outras vezes, a pessoa tem açougue, em casa faz matança e tira a gordura do porco; nesse dia, ela leva litros de banha do porco, um pedaço de carne salgada. É assim que todo mundo contribui. Para quem está fora daquela cultura, diz “meu Deus, tanta gente aí, comendo e gastando às custas do fulano”. Não é assim, todos cotizam, porque sabem que é um ritual e todos devem participar. Quando você faz parte de uma irmandade, de uma coletividade, para além da ajuda das pessoas, a rainha dessa coletividade determina o montante para a cota e todos colocam, na cabaça, o seu dinheiro. Em seguida, a meirinha contabiliza as ofertas e ela entrega o dinheiro à pessoa. Então, há essa ajuda que alivia a pessoa dessas despesas que são enormes.

MS/VL: Você falou em tradição e No fundo do Canto aparece a Mumoa. Quem é ela?

OS: A Mumoa é uma invenção minha. Na Guiné, nós temos na sub-região a UMOA e a UEMO que é a União Monetária dos Estados da África Ocidental. Essa união nasceu por meio de uma vontade comum de criar uma região econômica; aliás, a união africana, há muitos anos, ainda no final do século XIX e princípio do sec. XX, já apresentou a ideia de uma União Africana. Não havia a União Europeia e todo mundo contestou, sobretudo, a Europa Ocidental. Essa UEMOA é um modelo antigo da união da África, mas por região, por sub-regiões. A África ficou dividida por sub-regiões, a região do Franco CFA, que é a UEMOA, que é a nossa região. Só que para você poder participar, ser parte do grupo é preciso ter quadros técnicos, infraestrutura. É uma união em que há a competição e solidariedade e você tem que pagar suas cotas em dia, para poder participar do mercado das feiras internacionais, apresentar o que tem na sua indústria, no seu comércio, na sua agricultura, na sua energia. Há uma série de requisitos, então não vale só pensar “eu entro”. Eu digo que ali falou mais alto a voz da política e, no livro, a mulher política que fala é a Mumoa, aquela que afirma que você tem que confiar nas suas forças, que você tem que se estruturar internamente. Por isso, eu acho que No fundo do canto é um livro de história também, porque não fala só da Guine Bissau, fala do próprio conflito que existe entre os países e, principalmente, com a Europa. A União Europeia é boa para aqueles países, porque há solidariedade entre eles, mas os países que entram no concerto das nações têm que estar preparados, porque terão que se esforçar para fazer a sua parte. Por isso que a Mumoa diz “eu estou aqui, eu vou ajudar, eu sou solidária, mas quem a mim vem, tem que confiar nas suas forças, tem que saber o que quer, tem que se estruturar, porque aqui é a casa da grande família, ou seja, como a casa grande, na nossa tradição, que todos precisam contribuir para que essa solidariedade seja consolidada, porque se um paga sua cota e quatro não pagam, a cota de um não dá para dividir por todos os países. Então, é preciso que cada um faça sua parte, pois quando um deixa de fazer, ‘ah não, eu não faço, a Guine Bissau vai fazer’, ah! eu não faço, Mali vai fazer’, Mali vai dizer ah! isso eu não faço, ah! não, o Senegal vai fazer’, o Senegal ah! eu não faço’, quer dizer todo mundo pensa que todo mundo vai fazer e ninguém faz nada”. Nesse caso, a Mumoa fica com os seios secos, não vai ter leite para tantos filhos e é preciso alimentar essa mãe que nós criamos, porque ela não foi uma imposição extra, foi uma coisa pensada e querida. Deve ser assim, pois a Guiné-Bissau entrou para esse concerto e precisa se preparar, se estruturar; não pode ficar com guerras internas, conflitos um com outro, porque o outro é presidente e eu também quero ser, porque o outro é comandante cinco estrelas e eu quero ser dez estrelas. A Mumoa é essa mãe que chama a atenção, a mãe africana que diz “eu estou aqui, pronta para vos receber, para vos colocar no meu colo, mas veja lá, antes de virem até mim, organizem-se”.

MS/VL: Sonéa, histórias e passadas que ouvi contar e Djênia, histórias e passadas que ouvi contar são uma amostra da tradição oral guineense. Como foi a escrita desses dois livros? Qual era a sua intenção e quais foram seus critérios para a recolha das histórias?

OS: Não houve um critério de recolha, o que eu fiz foi apelar à minha memória. Por exemplo, "Sonéa" é uma história inventada por mim. É uma conversa entre amigos mais velhos em que vem à tona vários contos, cada um contando coisas engraçadas. Então, “histórias e passadas”, como diz o próprio título, que eu ouvi contar, tem casos que eu ouvi contar e outros que são invenção minha. É interessante notar que a organização do texto “Sonéa” é diferente dos outros textos. Nele, há histórias do lobo, da lebre, do homem e do porco, que é uma mistura da história tradicional guineense. A do lobo e da lebre é uma em que eu mesclo problemas sociais e faço uma crítica social. Eu não tinha nenhuma intenção ao escrever, era só escrever, porque estava em um momento em que eu ainda era ministra da educação e estávamos a viver um conflito, um impasse na Guiné e eu achei que era o momento de eu criar outros mundos e entrar neles, para abstrair-me de tantos problemas que eu estava a viver e que não tinham soluções nas minhas mãos. Eu acho que foi assim: escrever, lembrar da minha infância, dos momentos em que a minha mãe contava histórias à noite para nós, porque vivíamos num bairro periférico de Bissau e na área não tinha asfalto. Desse lado, não chegava luz elétrica, era só luz do candeeiro e, à noite, o luar parecia que era uma luz enorme e, então, cantávamos, dançávamos, e, às vezes, quando a minha mãe não queria que eu fosse lá para roda dançar, dizia “vem que eu vou te contar uma história”, aí a brincadeira acabava, porque eu dizia, “ah! minha mãe vai contar história”; corríamos todos para ouvir a história. Só que a minha mãe, no meio da história, cochilava, e como ela roncava, eu dizia, “mãe, estais a dormir”, e ela respondia “eu não, estou a pensar. Muito bem, onde é que eu estava mesmo minha gente?”

A história de Sinhá Nhá foi quase totalmente reinventada. É uma história que a minha mãe sempre contava, mas ela nunca chegava a terminá-la, porque ela dormia. Eu a chamava e ela dizia “amanhã eu continuo”, mas, no dia seguinte, ela dizia “uma história não se começa pelo meio, temos que começar do início” e eu dizia “meu Deus do céu, eu nunca vou saber o final dessa história”. Cada vez que ela contava, mudava um pedaço da história: por exemplo, uma vez, a moça não concordava com o marido que lhe tinha sido dado, porque ela tinha namorado, e para ajudá-la o mais velho da tabanca e o curandeiro fizeram um trabalho para que eles não continuassem a viagem. Em uma outra vez, ela contou que eles encontram animais furiosos que investiram contra eles e tal, “ah! mas não morreram não, quase morreram, mas faltou um fiozinho assim para morrer, mas não morreram”. E todo mundo “aaah aah, não podiam morrer, mesmo porque não fizeram nada”. Agora, eu percebo que o que ela fazia é o que chamamos de interação entre o auditor e seu auditório. O auditório participa da história, está lá pra ouvir e para compartilhar, tomar parte, bater palma, chorar, dizer que não pode. Quando acontece um fato, o contador de história fica a espera da reação dos ouvintes e ele pode mudar ou não o final da história. “Aí, vieram os animais: eram leões, girafas, animais grandões com aquelas patas enormes, quer dizer, quase, quase iam morrer, faltou um pouquinho, um fiozinho assim, mas, nesse momento, os ancestrais os protegeram; foi só um castigo para eles não serem assim tão desobedientes como foram”. Então, o que acontece é a interação. Eu faço o mesmo na história, mas já do outro jeito: “quando eles fugiram, o Mussah foi atrás deles, e eles, abraçados, caíram”. A minha mãe mudou o final da história, porque quando nos olhou, viu que estávamos com lágrimas nos olhos, e ela “há quem diga que o Mussah não encontrou os dois, que foram protegidos pelos ancestrais” e aí há uma inter-história que é contada a partir desse final que eles deveriam morrer, então “quase, quase, morreram, mas foram protegidos e continuam”, e há todo um mundo maravilhoso que vai acontecer à frente: eles vão encontrar seres estranhos, receber mensagens e eu vou capturar essa Nhá Nhá. É parte da história que eu nunca ouvi. Essa Nhá nhá já vem de uma outra história em que um menino mentiroso contava coisas no reino de Musurum, lá para trás, a morte do filho, então eu fui capturar essa ave porque é assim na história tradicional. O contador, às vezes, tem necessidade de uma personagem que não tem no momento, então, ele a busca em uma história anterior e diz: “vocês se lembram da história daquela menina, da casa do tio”... É esse tio mesmo, ele vai vir aqui como alguém que já viveu essa experiência com a sobrinha. Eu faço o mesmo na história, mas já do outro jeito: “quando eles fugiram, o Mussah foi atrás deles, e eles, abraçados, caíram”. Para contar a história, eu busquei esse pássaro da história. Essa ave vai cantar e dar a direção ao casal novo que vai ter filhos e construir uma tabanca. Nesse momento, gera a questão do casamento polígamo, porque nesse tipo de união, muitas vezes, a dona da casa escolhe a noiva e, às vezes, é o marido que escolhe a segunda mulher. Então, eu digo não, e reformulo: os dois pensaram em tudo que passaram e resolveram que não iam desposar uma segunda mulher. Nesse caso, entra a Odete que é a moderninha, dizendo “alto lá com essa história de poligamia, aqui tem que ser os dois mais os filhos”. É assim, quando eu reconto, aumento alguns aspectos, colo outros. Há uma que eu não publiquei, tem um final diferente da que eu ouvi da minha mãe. É a história de uma menina desobediente (ela tem várias versões) que desobedece aos pais e vai a uma festa e quando chega lá, uma velha com veneno nas unhas pede para abanar a sua comida, dizendo “ah! a comida está muito quente, deixa eu ajudar a esfriá-la para você comer bem”. Então, ela põe o veneno e quando a menina come, começa a sentir-se mal, vai para casa e morre. Então, um dos griots que estava na festa, mandado pelo namorado para saber como ela estava, procura a menina e não a encontra. Ele, então, se dirige para a casa dos pais e a encontra morta, nos braços dos pais. Antes de morrer, ela diz aos pais “estou arrependida de vos ter desobedecido”. O auditório, nesse momento, aprende que não é bom desobedecer aos pais, porque eles têm uma visão mais ampla do que uma criança, por isso a palavra do pai deve prevalecer sempre. Em outra versão dessa história, a minha mãe contava que a menina sempre que ouvia um tambor, ela ia; ouvia uma viola, ela ia; ouvia palma pé a pé, ela ia; a contadora ia enumerando os instrumentos cantando, contando como eles faziam. Um dia, a menina vai a uma festa organizada por feiticeiros, que já tinham ouvido falar da desobediência dela. Eles disseram: “vamos lhe dar uma lição; ela vai ser o nosso manjar”. Começaram a tocar numa tabanca bem distante e, através do feitiço, fizeram a menina desobediente escutar o som como se fosse atrás da casa. Ela deixou que todos dormissem, vestiu-se, saltou a janela e foi. Ela foi andando, andando, até chegar ao lugar em que os feiticeiros estavam. E aí eles disseram: “bom, como você é desobediente, hoje você não escapa; já que desobedece aos pais para ir a todo lugar, onde tem festa, hoje vai ser o seu dia”. Ela foge, começa a correr, correr, correr e chega a casa do pai e começa a cantar: “meu pai, meu pai, meu pai, abre uma porta, estão a me morder, estão a tirar pedaço de mim”, e o pai respondia de dentro de casa: “minha filha, minha filha, tantas vezes eu avisei e você não escutou minha palavra; quando você escutava o “zim zim” lá estava; “palma palma”, “pé pé”, lá estava; “dum dum” lá estava, agora vai embora ser manjar dos feiticeiros”. Ela saía de lá, ia para o quintal chamar a mãe, ia para a casa da avó e, no final, ela vai à casa da tia e casa-se com o tio. Depois, em outra versão, que minha mãe me contou, a menina vai à casa dos tios que a recusam, vai à casa da avó, que começa a falar com ela, enquanto põe um tacho ao lume; coloca a lenha que ela tinha juntado para o tempo de chuva e põe uma panela com água; vai falando, falando e quando a água começou a ferver ela diz: “afasta-te da porta.” A menina afasta-se da porta e a mulher grande abre a porta de rompante, pega aquela água e vai jogando nos feiticeiros e a menina aproveita e entra pra dentro de casa. Como ela estava toda ensanguentada, a avó vai lavá-la e, no dia seguinte, quando todos em casa estavam chorando a morte dela, elas chegam. A avó aconselha e diz: “olha, é como se você tivesse sido morta ontem, hoje você deve ser uma outra pessoa, obedecer a seus pais, obedecer às pessoas mais velhas, pois já viu o que aconteceu, o que podia ter acontecido”. Nesse momento, todo mundo em alvoroço: “ela não morreu, ela não morreu” e todo mundo dizendo: “ah, nós fizemos isso”, e o pai: “estou arrependido de ter feito isso”. E a contadora da história finaliza: “nem os pais podem ficar tão zangados, a ponto de deixar a filha em mãos alheias, quando ela está numa aflição, nem os filhos devem desobedecer aos pais. Agora, como castigo daqueles pais que renegaram a menina desobediente, ela ficará com a avó e só irá embora no dia do casamento, quando ela vai ter a casa dela. A partir dali, ela nunca mais, nunca mais, nunca mais, foi em festa que não era convidada”. Em crioulo, quando você quer dar ênfase, quer para distância, quer para uma situação, é só repetir três vezes a palavra, como por exemplo: ela andou, andou, andou, até que encontrou a casa, e ali ela nunca, nunca, nunca mais voltou e ela até aconselhava as meninas, quando ia à fonte buscar água.

O que eu faço nessas histórias? Normalmente, eu busco uma versão, coloco a crítica social e deixo o exemplo. Essa interação acontece entre o contador e quem o escuta; agora para um leitor desavisado é, simplesmente, um conto banal; entretanto, para quem quer adentrar no conteúdo, encontra política social. O caso da lebre, do homem e do porco é a história de um grupo que açoita a lebre, porque ela era má. Ela fica morre, não morre; finge que morre, troca de lugar com o lobo, inventa uma história que o corpo inchou de tanto apanhar. Essa espertalhona engana a todos e a mensagem, que vem à tona, é que uma pessoa quando morre, todo mundo corre a dizer que ela era boa, vira santo, mesmo que tenha sido muito, muito má. Também, o contrário é verdadeiro: as pessoas são irresponsáveis, às vezes, quando julgam alguém que não fez nada. Dessa maneira, é possível mostrar essa faceta, esse cinismo social dentro de uma história. É uma maneira de ensinar as crianças a assumirem suas responsabilidades. Assim, se você bateu, diga a verdade, diga que você bateu, porque você não pode fugir da responsabilidade, pois a mentira pode destruir tabancas, vilas. As nações podem entrar em guerra, porque alguém disse uma inverdade, disse uma palavra em uma hora errada. Então, ali há essa questão. No ato da escrita, às vezes, não houve nenhum incidente; eu vou escrevendo e, na altura, em que eu escrevi, eu aproveito essas ideias. Se estou criando e me lembro de uma história, eu faço alguma inserção, para deixar um testemunho, um recadinho. “Sonéa” é uma história que eu inventei, para mostrar à cidade e à tabanca, como nós conciliamos a vida de intelectual com a vida da tabanca, como essas cerimônias tradicionais podem atropelar a vida de uma moça, quando é obrigada a ir para a tabanca e deixar a escola. Nela, há um conjunto de ensinamentos que a personagem aprendeu ao ir à escola. Também está inserida, na história, a cerimônia dos defuntos, como eles são lavados, como se organiza o enterro. É um livro que mostra várias situações reais e, a partir daí, elas são ficcionadas.

MS/VL: Como você percebe a questão de literatura e de gênero na atualidade? Ainda há muito empecilho para as mulheres entrarem no mercado editorial?

OS: Sim, embora saibamos que, nos países mais desenvolvidos, várias mulheres estão publicando; entretanto ainda há aquilo que me parece ser uma restrição à palavra feminina. Falta o encorajamento, também, da mulher para o mundo da escrita, porque, na Guine Bissau, já tivemos mais mulheres escrevendo. Eu lembro- me da Mariana Ribeiro que escrevia após a independência. Hoje, ela deve ter pouco mais de 50 anos, mas não escreve há muitos anos. Um dia, perguntei a ela e ela respondeu “Não, foi uma fase, passou.” Mas não pode passar, será que a escrita é uma fase? Eu não sei, talvez ela precise de um incentivo e lembro-me, também, de Domingas Estaini que escreveu um livro de história. Foi a primeira mulher a escrever um livro de história, mas houve uma crítica muito severa sobre a escrita dela, chamaram-na de despreparada, disseram que o livro estava mal escrito, que ela apressou-se. Acredito se tivesse sido um homem, a crítica não diria que ele se apressou para publicar, falariam, sim, que era um estilo. Quando é a mulher, meu Deus, vão buscar erros ortográficos, de vírgulas, de preposições, de tudo e de mais alguma coisa. Não estou a dizer que ela era uma expert no mundo da escrita, mas acho que ela se atreveu, foi um marco na história da literatura guineense e isso não foi reconhecido por ninguém. Tudo isso desmobilizou a Domingas, quando ela leu a crítica, disse: “nunca mais vou escrever” e até hoje não voltou a publicar. Ela, neste momento, está fora do país, casou-se com um sueco, viveu em Moçambique, durante alguns anos, e, hoje, eu já não sei se está na Suécia ou se continua em Moçambique. Mas são essas palavras amargas que bloqueiam, porque você fica se perguntando se vale a pena continuar escrevendo. Em relação às editoras, lembro- me que, quando eu escrevi Histórias que ouvi contar, eu estava procurando financiamento e editora; fui a uma editora, e eles disseram que, naquele momento, eu não conseguiria financiamento e que eu só deveria procurá-los, quando eu tivesse conseguido quem financiasse.

MS/VL: Para a mulher, então, é muito mais difícil arrumar financiamento?

OS: O financiamento, na Guiné-Bissau, é muito complicado. Começa por uma política editorial que quase não existe. Há uma editora privada, a INEP, que publica, mas você tem que pagar tudo, e negociar com eles para chancelar a publicação, porque eles não têm fundo para a área de literatura. No caso de um ensaio, você tem a revista para publicar. Também há a editora Caminho que vem publicando livros de vários autores da língua portuguesa, mas eu vejo que tem mais autores homens. Não sei se é uma preferência por homens ou se, analisando os trabalhos dos artistas, eles achem que talvez os trabalhos das mulheres não tenham o nível que eles querem. Eu não sei, não quero julgar o trabalho deles, mas acho que não tem a política do gênero ali, pensando “bom, vamos investigar as obras das mulheres para ver se vale a pena”. Sei que a Conceição Lima, a Paulina Chiziane e a Ana Paula Tavares publicam pela Caminho, mas não se compara ao número de homens. O que estará na base disso? Pode ser que não tenham mulheres escrevendo ou as que escrevem não estão na linha do que eles querem, podem ser vários problemas, então é preciso estudar a fundo, para ver qual é o problema.

MS/VL: Fale-nos um pouco acerca das mandjuandadi – canções de autorias desconhecidas que são entoadas, principalmente, por mulheres – que é o tema da tese que você defendeu na PUC-Minas.

Muitas cantigas são de autoria desconhecida, são cantigas populares de repentistas que andam na boca do povo, mas algumas dessas cantigas têm autores; há homens, também, que cantam na coletividade feminina. Muitos homens partem de histórias contadas por mulheres e inventam as letras das cantigas que vão sendo cantadas. O padre Marcelino fez a primeira pesquisa desse acervo e, em 1879, ele publicou as cantigas que, desdenhosamente, foram chamadas “cantigas de preto”, porque as mulheres cantavam-nas quando iam lavar a roupa nos riachos, quando vendiam cuscuz nas ruas de Bissau. Elas tinham uma coletividade, como as que eu estudei em minha tese, que são comunidades organizadas, de mulheres que cantam várias situações do cotidiano, desde a vida familiar, social até a política. Nessas cantigas, nós podemos encontrar a história da comunidade, a história das mulheres, pois, ao analisarmos as letras que elas escrevem e, tendo em conta o lugar de onde elas escrevem, percebemos que vamos de encontro à voz da mulher e do lugar que ela ocupa socialmente. Há momentos em que temos a sensação de que a mulher não tem voz, mas quando você escuta as cantigas, percebe que a mulher tem o seu lugar de voz, tem um espaço dela, e esse espaço é a casa dela e até o espaço da comunidade, onde ela funciona como facilitadora da gestão de conflitos. Lendo as cantigas, você se dá conta que a mulher, de fato, participa. Quando escutadas ou cantadas, a própria comunidade reconhece aquilo que vem nas histórias, como o lugar da educação, porque as cantigas educam: elas encenam as pessoas que perdem o apoio familiar, cantam o marido avarento que não cuida bem da família, cantam a mulher magra, a mulher que não tem bunda, a mulher comandante. Não houvesse isso, não iriam cantar, porque elas poetizam o cotidiano, a realidade.

MS/VL: Há uma rivalidade entre o canto da mulher e o canto do homem, a mulher canta e o homem responde?

OS: Às vezes. Veio-me, agora, à memória, a cantiga da tia Emale e do tio Zé em que ela canta e chama e diz “estejam atentos que chegou a hora de ir andar, eu estou saindo para ir andar, digam ao senhor que eu vou andar”. E ela continua: “eu vou andar por aí, eu vou tocar a minha vida pra frente”, e ele responde: “a colega de lá, digam a senhora fulana que ela só vai sair pra andar, quando eu virar morcego e virar de rabo pro ar, aí eu já não sou homem, não sou nada lá em casa, não tenho voz, então, aí ela pode sair para andar”. Há esse tipo de duelo, também, na coletividade, em que a mulher canta lançando dito ao marido, e o marido escuta e responde dizendo: “Não, você não pode fazer isso”. Às vezes, há duelo entre duas mulheres, então a mulher diz: “Minha cunhada eu vou embora, já não aguento mais o que o seu irmão está fazendo, já passa dos limites”. E a outra diz: “Não, não vá embora, o lugar da mulher é no casamento”. Então ali há a voz da tradição que é contrariada por uma voz mais intolerante que diz: “Eu vou embora, não aguento mais”. Nesse sentido, as cantigas dão conta das misturas que estão ocorrendo socialmente e isso nos remete ao hibridismo, à mistura que vem sendo estudada pela Leda Martins, na comunidade de Nossa Senhora do Rosário. Há um momento no trabalho dela, em que ela fala dessa hibridização, como uma justaposição da religião de matriz católica e a de matriz africana. É isso que as mulheres fazem: há um confronto, um paralelismo entre, por exemplo, o católico e o muçulmano. Na coletividade se misturam católicos, protestantes, animistas, todos ali, juntos. Nesse momento, o que manda é a tradição e a solidariedade básica, mas na hora de cantar, cada uma canta professa a sua crença, a sua verdade.

Eu pesquisei sobre o salmo 91 que diz mais ou menos assim: “eu deposito as minhas forças, eu me entrego ao Senhor, ele me cobre com as suas asas, mesmo que eu pise leões, víboras, e não sei o que, e nada me acontecerá”, como se a pessoa se sentisse fortalecida, porque se entregou ao Senhor. Tem uma cantiga, que é um cântico ao profeta Maomé, e diz a mesma coisa que esse salmo: “eu estou encostada numa árvore, essa árvore me protege, eu estou encostada num irmano bamba, ele é o mensageiro do Senhor, então, eu me sinto protegida pelo Senhor, eu não chego ao Senhor, mas eu estou junto ao profeta e ele vai me proteger, porque ele é a voz do Senhor, eu confio no Senhor e estou protegido”. Se prestarmos atenção, essa cantiga é igual ao salmo, mas é dos muçulmanos. Os católicos da minha irmandade cantam o Pai Nosso. Elas dizem assim: “Oh! Nhôr Deus, Senhor Deus que está lá no céu, nós precisamos e pedimos, (nesse momento, ela faz o pedido), Nhôr Deus, nós precisamos e pedimos a ti que nos proteja, a todos nós da nossa coletividade, hoje e na hora da nossa morte”. Elas falam o nome da comunidade e dizem: “nós rezamos e pedimos que nos proteja hoje, agora e na hora da nossa morte”. Começam a chamar os nomes das pessoas: “proteja a nossa rainha Zefa, o Ivo Sá, nosso rei”, e chamam todo mundo, como se fosse uma ladainha.

Eu mencionei o trabalho da Leda, porque me veio à memória; ela fala da hibridização, aqui não falo nisso, mas há uma convivência entre religiões, dentro da irmandade. Por exemplo, aquele que não bebe, que não come carne de porco é respeitado. Ele tem seu prato, tem sua comida – há um isopor com coisas só para muçulmanos e outro para aquele que toma bebida alcoólica, que come carne de porco ou outro tipo de carne. Lá há uma identidade que está presente, que se mostra.

MS/VL: Fale-nos um pouco sobre sua tese.

OS: Eu quis resgatar a voz da mulher, uma voz que o mundo teima em esquecer ou o mundo teima em fazer de conta que não existe. Há um conjunto de ornamentação em volta da mulher, mas que não chega lá no fundo. Está na moda falar de gênero, de literatura feminina ou de literatura feita por mulheres, mas até onde vai esse estudo, essa busca? Será que são só as mulheres que devem fazer isso, ou deve ser um trabalho de toda a sociedade que deve empenhar-se por esse caminho? Como na Guiné, eu vi que isso não está acontecendo, eu fui buscar essa voz feminina, essas cantigas, para trazer essa memória coletiva perdida. Outro propósito foi fazer uma leitura dessa voz feminina, ver as suas várias encenações ao longo desses séculos – do século XIX aos dias de hoje. Esse estudo reportou-me para um momento anterior – ainda para as histórias trazidas pelos mandingas, pelos grandes impérios de Mali, pelos que cantam a saga das famílias. Descobri que havia mulheres que cantavam em coro, que cantavam na primeira voz, que eram trovadoras, mas só se fala de trovador homem, porque a mulher não aparecia, ficava no coro. Se você escutar uma dessas cantigas, vai escutar a voz do menino que dá a melodia principal à música. Eu quis trazer essas vozes e mostrar como elas se presentificam em várias gerações e que são parte da tradição oral guineense, pois se constituem como uma das matrizes da poesia guineense, porque quando você pega uma poesia da Guiné Bissau, e sendo conhecedora da cultura, sente que ela tem a mesma linha das cantigas das mulheres como, por exemplo, as repetições, as metáforas da vida simples, os solipsismos, as figuras de estilos. As mulheres não tinham consciência dessas figuras, mas fizeram uso delas, então o meu propósito é trazer essas cantigas, e mais, fazer uma leitura e interpretação delas, a partir da própria cultura guineense, buscando elementos da vida social, como, por exemplo, o pano, a cabaça, o movimento que nós utilizamos quando limpamos o arroz na cabaça; esse movimento que não é circular, que não é reto, mas é um movimento espiralar, que também é trabalhado por Leda Martins num de seus livros. Ela retoma a ideia desse movimento em espiral, do tempo do caos, dizendo que o caos é apenas um outro movimento, é apenas uma ordem que nós não conhecemos, por isso a chamamos de caos. Será que nós conhecemos bem a outra ordem? Por que será que classificamos de caos o desconhecido?

Na minha tese, eu fiz a leitura, a partir de um viés cultural. Mergulhei na cantiga, no texto destas mulheres, no que elas contam. Tentei entender por que a cabaça aparece sob vários aspectos: aparece como lugar, como sustentáculo, como sujeito poético. Por que o pano aparece como sujeito poético, como chão, como momento de construção. Por que o tecelão aparece como um construtor da nação, como aquele que tece com várias linhas. Tentei entender ainda como uma nação se constrói com várias culturas, várias línguas, com vários grupos étnicos, como é o caso da Guiné-Bissau. Lembro-me que, na hora da defesa de minha tese, a banca me perguntou se eu não achava que era um despropósito estar a tentar fazer a leitura do negro pelo negro. Mas o meu propósito não é fazer a leitura do africano através do africano só. Há um autor afro-americano que prega fazer a leitura de si, através de sua própria cultura, mas ele não exclui os sucessos que já foram conseguidos pela crítica. Ele não diz para apagar tudo e começar de novo. A ideia dele, que é também a minha, é criar outras oportunidades de leitura, outros vieses. O que eu faço não é negar o que foi construído, é pegar aquilo que já foi feito e ampliar através de um outro viés. Quando eu faço uma tese e discuto a relação que pode existir entre uma cantiga de mandjuandadi e uma cantiga medieval mostra que, de fato, estou a usar a crítica ocidental, para fazer uma leitura, comparada entre esses dois textos, de lugares, de tempos e de línguas diferentes. Percebo que entre eles há, em comum, o essencial do ser humano tais como: o sentimento, a perda, o amor, a paixão; o chão, o mar e vários aspectos e símbolos que são idênticos; a travessia, o medo, os devaneios da mulher que canta, os devaneios do homem que canta, a coita das cantigas medievais. Ali não é o homem que chora o amor não correspondido e, sim, a mulher. Percebe-se que os sujeitos poéticos são diferentes nos dois casos, e aí menciona-se aquilo que Viviane Cunha fala nos trabalhos dela: há um eu-amante nas cantigas de mulher – o eu-amante não é nem homem nem mulher e, sim, o sujeito poético que ama, que sofre, e canta esse amor, essa paixão. Nas cantigas de mandajundadi há o eu-amante, ou seja, aquele que ama, que sofre, quem nutre a paixão por alguém, e quem o descobre é a cantadeira que é poeta popular. É esse mesmo poeta que tem a função de descobrir o turbilhão que está por debaixo do movimento do mundo. São os poetas, os contadores, os criadores que vão tirar esse movimento submerso e trazê-lo à tona. A minha tentativa foi buscar o que as mulheres têm fervilhando lá e eu encontrei histórias de mulheres que foram escravas libertas, que cantaram, de uma maneira tão sutil, a dor que elas sentiram de terem sido violadas, ficado grávida do patrão e não poderem confessar essa gravidez; o sofrimento de ter a filha tirada de seus braços, para ser criada na casa grande; a alegria de poder estar com a filha no dia do casamento, e cantar pra dizer: “eis o resultado do meu silêncio, ela é o resultado da minha canseira, canseira de uma escrava”. Tudo isso foi trazido pelas cantigas: o sofrimento de mulheres; os ritos; o conflito vivido no território da África subsaariana, entre fulas e mandingas, quando os portugueses, no século XV, estavam correndo atrás do mercado do comércio naquele lugar; a história dos antigos impérios que estavam descendo em busca de expansão. Em algumas cantigas, quando as mulheres cantam o casamento, elas trazem à tona o conflito de fulas e mandingas, para mostrar o porquê do conflito quando há união entre essas duas etnias. Elas cantam e dizem: “lá vem o sino, o sino que é estranho a nossa cultura, ao nosso território”; estão a falar do sino da igreja católica, mas depois dizem como os fulas e os mandingas conseguiram apaziguar aquela onda de violência e aceitaram o casamento entre uma mulher fula e um homem mandinga.

MS/VL: Novas cantigas são produzidas?

OS: Sim, novas cantigas são criadas, mas, também, as antigas são retomadas e, às vezes, o que eu acho importante nesse resgate, é que, em muitos casos, as cantigas já aparecem, na minha tese, com o nome de seus autores, porque, apesar de serem populares, alguém as criou.

Mas há, também, aqueles que retomaram a cantiga e, por não saberem quem é o autor, assumem a autoria. Nesses casos, há uma falsa autoria. Uma vez, eu escutei o Cidônio Paes cantar uma cantiga e lembrei-me que eu já a conhecia, mas não me lembrava de onde. Algum tempo depois, lembrei-me que ela se parecia com uma história tradicional que eu ouvira contar. Um dia, perguntei ao Cidônio se aquela cantiga era de sua autoria e ele respondeu: “Eu fiz a letra, mas parti de um conto tradicional, que conta a história de uma noiva que foi dada ao casamento, mas ela não queria casar-se com esse senhor. Aí, o poilão, que é uma árvore comum nas vilas, levanta e diz a ela como que dos seus ramos foram feitas canoas, que serviram para fazer várias travessias, como que, por cima dos ramos dele, o sol se levanta e se põe e que por causa de tudo isso que ele já viveu, ele não cai à toa, não fala à toa. O poilão assume a voz do ancestral e fala com a moça do sentido de ela aceitar a tradição e esse aceitar a tradição, implica proteger a natureza, porque o poilão é também parte da natureza.

MS/VL: Você já foi ministra da Educação e da Saúde em seu país. Como é ser mulher, ser artista, ser educadora?

OS: E ainda ser mãe. É complicado, mas é gostoso também, porque é um desafio. Eu me propus a isso e assumo, assumo tudo, sem colocar de lado a minha cultura, as minhas tradições. Eu tento conjugar tudo; às vezes, não consigo ter tudo no mesmo plano, alguma coisa sai a perder. Por exemplo, a minha filha mais nova foi mais educada pelas irmãs, porque eu viajava muito. Quando ela nasceu, eu estava lançando o meu primeiro livro, ou seja, ela tem a idade do livro, faz quatorze anos agora. É complicado, porque são várias tarefas e você se multiplica em três, quatro pessoas pra dar conta. Se você falhar numa, a sociedade não perdoa: diz “eu sabia que ela não ia conseguir, mulher é assim mesmo; elas teimam para fazer, chegam lá e não conseguem”. Então eu não queria receber essa resposta, por isso acho que consegui chegar lá, porque, também, o meu marido ajudou muito, colaborou muito. Quando você tem um marido que não colabora, você tem mais dificuldade, mas quando ele colabora, fica um trabalho a dois e as coisas ficam mais fáceis. Em relação à questão da escritora, eu não sou “escritora”. O escritor africano tem a escrita como uma coisa que faz ao fim da tarde, à noite, porque não é a profissão, como acontece na Europa. Lá tem gente que é, exclusivamente, escritor ou escritora, faz outras coisas, mas são pequenas coisas paralelas, porque a atividade essencial é pesquisar para escrever. Em África, você tem que trabalhar para sobreviver; ou é professor ou é professora ou é funcionário público; tem que fazer várias outras coisas, e desdobrar-se nessa atividade da escrita. No meu caso, por exemplo, meu marido viaja muito, então quando ele viaja, eu preciso ajudá-lo a arrumar a mala, preciso ver se ele tem uma reunião; quando ele vai sair, tenho que olhar o que ele precisa; às vezes, eu não estou em casa, mas ligo, para falar e ele às vezes insiste, “não, eu já escolhi”, e eu “vê, você vai sair na televisão, vê lá, a cor branca não fica muito bem, tem que ser uma cor mais”. Também gosto muito de cozinhar, de receber alguns amigos. Tenho quem me ajuda, mas eu estou lá para olhar, porque eu trabalhei, eu aprendi a tomar conta de casa muito cedo, com nove anos eu já sabia fazer tudo. Quando chegava da escola, tinha um horário para tudo: hora de descansar, dormir a sesta, fazer para casa, lavar as minhas calcinhas (lá, a gente fala as cuecas; se eu falasse cuecas aqui vocês iam morrer de rir). Aprendi a gerir o tempo. A minha mãe fazia isso e dizia “a gente nunca sabe o futuro, embora ela estude, uma mulher tem que saber cozinhar, tem que saber mexer na máquina de costura”.

NOTAS

1 Entrevista concedida em 10 de março de 2010. Originalmente publicada como anexo na tese de Vera Lúcia da Silva Sales Ferreira intitulada Lembrar e carpir: estratégias de construção de poemas escritos por mulheres nas literaturas africanas de língua portuguesa, defendida em 2011, no doutorado em Letras da PUC Minas, sob orientação da Professora Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca.



[i] Maria do Socorro Vieira Coelho é doutora em Linguística pela PUC-Minas, é professora da UNIMONTES.

[ii] Vera Lúcia da Silva Sales Ferreira possui graduação em Licenciatura pela Faculdade de Letras (1981) e Mestrado e Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2006, 2011). Atualmente é Professora Titular no Colégio Soma, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura brasileira e literaturas africanas de língua portuguesa.

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