A voz dos autores: entrevista com Paulina Chiziane

    Vanessa Riambau Pinheiro[i]

  Coloco as pessoas em suas vivências e evito - tento evitar - as etiquetas.

Paulina Chiziane

A entrevista que segue foi concedida pela escritora moçambicana Paulina Chiziane, em 09 de março de 2017, nas dependências do Centro Cultural Franco-Moçambicano, sediado em Maputo, capital de Moçambique. A entrevista foi gravada e posteriormente transcrita, o que resultou no tom coloquial do texto,  que foi mantido. 

Vanessa Riambau Pinheiro: Você acredita que ainda exista uma relação em Moçambique entre literatura e ideologia?

Paulina Chiziane: Existe, sim. E há muitas ideologias. Eu acredito que sou uma prova disto, porque os meus temas, a maior parte deles, quebram tabus. Muitas vezes a recepção de cada livro meu é uma guerra; as pessoas não estão habituadas a um tipo de tratamento, a um tipo de discurso. Não, não estão habituadas a ver determinadas coisas descritas no papel. Isso tem criado alguns conflitos.  O que me faz entender que se julga, ou seja, existe uma linha política por dentro de uma boa escrita. Não sei se respondi a sua questão, mas é mais ou menos este princípio. Parece que, para alguns, a literatura deveria seguir determinadas normas e formas. Tudo que não está no imaginário deles, então não sei.

VRP: A literatura moçambicana ainda precisa afirmar-se identitariamente?

PC: Primeiro, é preciso despertar. Acho que aí é que está a função da escola, da educação social, que deveria ajudar os diferentes grupos a afirmarem-se, a reconhecerem a importância de sua identidade. Nesse momento, eu poderia falar de um debate que eu sempre assisti desde quando nós atingimos a Independência. Quando nós atingimos a Independência, o discurso oficial era de combate cerrado, abaixo os ritos de iniciação. Os outros ficaram espantados. Foram sendo feitos contra tudo e contra todos. Hoje, passados 40 anos, esses ritos de iniciação até estão a ser exportados. Para além de terem muito conhecimento, conseguem gerar rendas, divisas. Possuem um conhecimento ancestral sobre plantas, sobre práticas sexuais. Hoje temos um kamasutra, por exemplo. Foi conservado pelo povo.  Mas também temos aquilo que é moçambicano: aprende-se sobre sexo, sobre plantas, sobrevivências....é claro que há coisas más, porque todos os sistemas são assim. Mas tem mais coisas boas do que más. Hoje conheço pessoas, conheci até algumas brasileiras que foram até Nampula para aprender como é que se faz as massagens nos órgãos sexuais, para conhecer as plantas que se usam. Afinal, o Brasil é tão rico e tão igual, são as mesmas plantas que se usam para estimular o homem que dorme demais, para dar mais prazer, etc, então são plantas que..., algumas estão a ser processadas e vendidas no mercado. Então, era tão tradicional que passou a ser considerado velho. Passado algum tempo, alguém descobre a modernidade daquilo que era considerado tradicional. Por exemplo, existe um grupo macua aqui na Mafalala que é uma dança chamada tufo. Primeiro foi proibida pelo sistema colonial porque era considerada uma dança pecaminosa; dançaram às escondidas. Depois da Independência as coisas mudam, já se dança um bocadinho. Na altura, era considerada uma dança inferior. Hoje, é o cartão de visitas do país. O tufo é uma dança macua, daquelas mulheres todas pintadas, todas bem vestidas. Imagina, uma dança bonita como aquela ser considerada pecaminosa pela Igreja Católica? (Risos). A cada dia mais, o povo macua se afirma, é um povo que tem uma cultura muito rica. No princípio da nossa independência, o povo macua era considerado quase um povo inferior. O que é isso? Então, é muito trabalho a ser feito neste país.

VRP: Você acredita que o escritor tenha um papel social?

PC: Se começar a olhar para a história da literatura moçambicana, a partir do momento da Noémia de Souza, que é uma grande referência feminina para mim, o Craveirinha, são aqueles indivíduos que gritaram pelo despertar da consciência de toda uma nação à volta da questão do colonialismo. Em literatura, claro. Depois vieram as poesias de combate: todo mundo gritava, todo mundo cantava. Então havia um crescer de uma consciência nacionalista a partir do texto escrito que, de certo modo, mesmo o trabalho que agora se faz..., por exemplo: quando eu escrevi Niketche, a opinião de alguns acadêmicos não foi das melhores. É uma literatura escrita por uma mulher e que retrata histórias de mulheres, então começaram a gritar: a literatura não é lugar para feminismos! São modelos, então, nem sempre é o que é. O tempo foi passando, as mesmas pessoas mudaram de opinião. Hoje, a opinião é muito mais aberta e nós somos mais amigos hoje, e se aceita um bocadinho melhor o trabalho que eu faço. Então, com isso eu quero dizer que a escrita tem, sim, uma função social. Boa ou má, mas tem.

VRP: Até hoje, são poucos os escritores moçambicanos divulgados no exterior. A que você credita isso?

PC: Olha, confesso que eu não tenho capacidade para responder. O que eu posso dizer é eu sempre tive uma espécie de fé em mim mesma. Eu dizia: “o que eu faço é bom, se vocês não gostam, eu vou procurar mercado.” E fui sozinha. Com amigos, alguns companheiros de trabalho, organizações internacionais, fui andando. E eu entro, ou melhor, eu quebro as fronteiras de Moçambique a partir de um trabalho que eu fiz com uma cineasta austríaca. Ela fazia cinema, não literatura. Conversando com ela, eu gritei: “Publica o meu trabalho fora, eu acho que o meu trabalho é bom!” Ela leu, e disse-me: “Bem, vou tentar.” Através da cineasta, fui parar na mão de jornalistas, depois fui parar na mão de editores e acabei entrando na cena do mundo por esforço próprio. Eu fiz isso. Mais tarde, claro, tive apoio de outros colegas moçambicanos, poucos. O Mia Couto é um deles. Quando ele saía e as pessoas perguntavam: “Conhece a Paulina? Ela esteve aqui.” Ele sempre deu uma informação bonatória a meu respeito. Então, eu não saí das fronteiras pelas vias que poderiam ser consideradas normais; foi uma luta mesmo pessoal. Agora, os outros escritores, eu não sei que lutas é que eles têm. Mas às vezes sinto um pouco de apatia: escreveu, pronto, o livro está publicado.  Não há o esforço, as pessoas não se mexem para conhecer novos horizontes. Mesmo agora, não sei como é que as coisas funcionam. Temos o Ministério, temos a Associação dos Escritores, mas o papel dessas instituições na promoção da literatura moçambicana não sei qual é. O Mia, penso que foi por esforço próprio; eu fui por esforço próprio. Os outros, não sei.

VRP: Como funcionam as editoras e o mercado de distribuição de livros em Moçambique?

PC: É uma via que precisa de ser aberta, no meu ponto de vista. As editoras estão todas concentradas em Maputo, as livrarias estão concentradas em Maputo. Ainda ontem eu estava numa livraria que tinha uma delegação em Nampula: acabaram fechando. As pessoas não estão habituadas a comprar livros. Precisam de livro, gostam de livro, mas o hábito de comprar livro ainda não faz parte da tradição para muitas pessoas. Na cidade da Beira, a situação melhorou um pouco. As universidades que vão abrindo gradualmente nas províncias vão impulsionando um pouco o hábito da leitura. Há uma livraria que tinha sido aberta na Zambézia, também acabou fechando.  As pessoas não compram: ou pedem emprestado, ou vão à biblioteca ou roubam! Portanto, o hábito de comprar o livro é qualquer coisa que ainda não está enraizada nas pessoas. Mas aí está: são editoras privadas, não é? Mas o que faz o Ministério, o que faz o município, e as instituições formais, instituições do governo nomeadas para isto, pouco ou quase nada. Portanto, o mercado editorial em Moçambique eu diria que é muito mau, muito mau. Entretanto, quando eu pego livros de vez em quando, faço assim uma conferência, ainda consigo que comprem. Mas é muito difícil.

VRP: A falta de hábito de comprar livros deve-se a uma questão econômica ou é a formação do leitor que precisa ser trabalhada?

PC: Sem dúvidas, a formação do leitor precisa ser trabalhada. Absolutamente, é necessária a formação do leitor. Porque eles querem, eles precisam, mas não compram. Agora, por exemplo, a Beira melhorou muito, há mais escolas, mais universidades, as pessoas já sentem a necessidade de comprar. Mas é uma questão de formação mesmo.

VRP: Na sua opinião, o que é o cânone literário moçambicano? Já existe um cânone?

PC: É uma resposta que não posso dar, confesso. Nem sei o que é cânone, imagino o que é. Todo mundo fala disso, mas o que é canônico? Fala-se dos clássicos, dos cânones. Eu não sei. Algumas vezes as pessoas olham para aquilo que é considerado consagrado e querem fazer disso um modelo para todos. Agora, literatura não é nenhum pudim, nenhum bolo, para ter um formato. Literatura é um espaço de liberdade onde cada um vai colocando o seu ser, a sua memória ou a memória coletiva. Então, uma literatura considerada consagrada, não sei. Embora eu reconheça que há obras que nos interessam ficar guardadas, ou melhor, ser olhadas como uma referência. Para mim, o cânone é um bocado complicado. Lembro-me de tempos em que eu estava na universidade, havia coisas que me causavam alguma dor. Por exemplo, quando os professores tentam fazer com que o estudante olhe para um determinado livro como um espelho. Eu dizia: “Não, não é verdade.” Pode haver outras formas de escrever a mesma coisa. Por exemplo, um Luís de Camões não passou por escola nenhuma, não viu formato de ninguém. Entretanto, ele criou uma nova forma de ser. Portanto, não acho bem que digam: “Este é o Ungulani [Ba Ka Khosa] e todos têm que fazer assim.” Portanto, tive algumas querelas com alguns professores na época, por conta de alguns conceitos que se discutiam na altura, por exemplo, a identidade literária. Foi uma coisa que eu discuti e isso me custou muito caro. Os professores, de certo modo, não gostavam das minhas intervenções. Não me recordo bem dos textos como eram, mas por exemplo num texto como do Craveirinha falavam da identidade literária, de alguns aspectos da identidade literária como se fosse tudo, e eu dizia: “Não, há muito mais.” Portanto, o Craveirinha deu um passo, de acordo com o mundo em que ele vivia. Mas há uma série de outras maneiras de se definir a identidade em literatura. Então, a professora na altura não gostava do meu discurso, e eu acabei saindo do curso porque não me sentia bem. Mais tarde, fui trabalhar e uma das coisas que me deu prazer de fazer foi trabalhar o feminino. Porque, por exemplo: se nós olharmos para o feminino descrito nas obras do Craveirinha é um feminino mais erótico, enquanto o feminino escrito por mim, que sou mulher, apresenta-se com outra configuração. Tudo isso, pra mim, são contribuições para se chegar a um acordo sobre o que é essa história de identidade africana na literatura.

VRP: Eu queria que você desenvolvesse um pouco mais esse aspecto da identidade na literatura, no sentido da moçambicanidade.

PC: Eu acho que o pouco que faço como contribuição para a construção deste grande edifício cuja dimensão não será apenas de uma geração, portanto, fazendo algum trabalho, cada um de nós que faz este trabalho gradualmente vamos construir essa coisa chamada identidade, chamada moçambicanidade. Eu acho muito prematuro, hoje, alguém dizer: “Eu estou a trabalhar, absolutamente, as questões de identidade.” Cada um dá um pouco de si, um dia nós saberemos para onde é que estamos a caminhar. Identidade é uma coisa que se constrói ao longo das gerações, essa é a minha apreciação como escritora.

VRP: Como se trabalham questões contemporâneas sem ocidentalizar a literatura africana?

PC: Bem, não é fácil, é difícil. Mas eu parto do princípio de que não existe um moderno absoluto nem um tradicional absoluto. Algumas vezes, as coisas que a gente considera moderna já foram consideradas tradicionais ou são tiradas da tradição e trazidas ao mundo moderno com outros nomes e outras capas. Então, eu tento ter este cuidado quando trabalho: busco a realidade de um determinado povo ou determinada região, trabalho nela, sem com isso querer remeter a história ou os fatos a um mundo que não é considerado moderno.  Eu simplesmente evito tratar da cultura e das vivências culturais como a coisa do Outro ou a coisa do outro mundo, ou a coisa da tradição. Não sei se eu consigo fazer isso, mas a minha intenção pelo menos é esta. Uma prova disso é o Niketche: instalam-se ali tantas mulheres, cada uma vivendo do seu jeito, elas discutem, entendem-se, desentendem-se, e lá vão construindo o mundo delas. Eu a momento nenhum considerei, por exemplo, os ritos de iniciação como uma coisa retrógrada, atrasada da tradição. Não sei. Eu tento não colocar rótulos porque, aquilo que é considerado muitas vezes tradicional pode ser moderno. Sei muito pouco sobre o que se passa dentro dos ritos de iniciação, mas eu também sei que o mundo moderno, em certa medida, [está] à procura deste saber, tido como tradicional. Então, o que é tradicional e o que é moderno? É verdade que existem mundos mais pobres e mundos mais ricos, mas até que ponto o tradicional faz parte do passado? E até que ponto o tradicional é mau e o moderno é o melhor? Eu às vezes sou mais feliz no campo do que na cidade. No campo, pelo menos, não há crime, não há essa prostituição, as pessoas estão vivendo mais ou menos uma vida igual. Enquanto que, na cidade, as disparidades, os problemas, os conflitos são maiores. Então, o que é o moderno? O que é o tradicional? Não sei se sou capaz de responder, não tenho essa capacidade de responder. Mas o que eu digo é que às vezes aquilo que você considera tradicional hoje, será considerado moderno amanhã. O mundo dá voltas. Agora, transportar isso para a literatura nem sempre é fácil. Coloco as pessoas em suas vivências e evito - tento evitar - as etiquetas.

VRP: Na sua literatura, você se intitula uma contadora de histórias. De onde surgem tantas histórias a serem contadas?

PC: O que eu posso dizer, eu digo a todo mundo, é que nosso país é virgem: em cada canto há uma história por contar. Confesso que nunca procurei um tema, nunca; os temas sempre vieram ter. Mesmo estando sentada num café, dando uma volta pela estrada, caminhando pelo campo, há sempre histórias das mais incríveis, que ainda não foram escritas e que precisam ser escritas, reescritas. Se eu pudesse, teria seis mãos e duas cabeças, talvez,  poderia produzir muito mais. Só o imaginário de cada um dos nossos diferentes povos e etnias, tem tanta coisa bonita. Eu gosto muito de histórias. E fujo muito aos compartimentos e aos rótulos que foram criados pelos cânones, porque às vezes fico com medo de aprender a me entregar. Se eu digo: “sou romancista”, então todos vão dizer: “pois a partir de agora, Paulina, um romance se faz de forma a, b, c, 4 ovos, 2 chávenas de farinha.” E eu digo: “Não! Eu não quero vossa autoridade. Deixe a minha liberdade.” Então, fui trabalhando assim até hoje. Fujo aos rótulos.

VRP: Você acha que ainda exista um pensamento colonial em Moçambique?

PC: É preciso  descolonizar. A colonização é enorme. Aquilo que eu digo: o Craveirinha, a Noémia de Sousa trabalharam muito em literatura, claro, mas ajudaram seu povo a despertar a consciência contra o colonialismo português. “Mas o colonialismo português já foi, estamos longe!” Será que o colonialismo acabou pelo simples fato dos brancos terem ido embora? Não. E os novos colonos são mais pretos do que eu. E fazem de tudo para fazer manter seu lucro, mantendo seu povo naquela condição de submisso.  Teve uma experiência recente: escrevi um livro louco, não é romance nem nada, eu simplesmente entrevistei uma pessoa, ou melhor, entrevistei várias pessoas, que no Brasil chamam-se mãe-de-santo, aqui reina a crença, por conta das igrejas evangélicas e um pouco por conta do colonialismo português, de que eles são a personificação do diabo.

VRP: Como são chamados aqui?

PC: Curandeiros. Bem, decidir ir à aventura. Entrevistei, publiquei, não é um livro ensaísta mas é uma análise comparativa entre aquilo que é considerada religião cristã e as práticas tradicionais. O livro causou muito incômodo porque eu acabo por dizer que aqueles que se julgam cristãos roubam vários elementos iguais da tradição africana, desses curandeiros. Levam para o altar e dizem que é sagrado. Atiram pedras em seu próprio povo, a quem chamam...aos curandeiros se dizem diabólicos. Então, eu faço assim, uma análise, uma comparação, e abro um espaço de debate. Foi um escândalo total! Eu digo: “olha, as mensagens chamadas de evangelização são mensagens colonizantes, e é preciso começar a fazer a descolonização das mensagens que são ditas sagradas.” Um exemplo: há uma polêmica que anda por aí, de uma tal coisa chamada “marido-espírito.” O espírito vem e faz sexo com as mulheres. Olha, eu cresci na minha tradição bantu ouvindo essas histórias. Os curandeiros quando se apercebem da existência de um provável caso levam a rapariga, a suposta vítima, para um tratamento que leva uns dias, e depois aconselham a menina ou a vítima a nunca falar nada sobre isso ou pode não arranjar casamento. Cansei já de ouvir isso. Mas hoje aparecem as igrejas evangélicas e dizem: “Porque nesta mulher está dentro o diabo, nós tiramos aqui na igreja.” Vão lá ver o que é que o cristianismo diz sobre isso: fui buscar na Bíblia Sagrada, li a Bíblia toda, imagina, foi um trabalho...Mas olha, foi um prazer; e descobri que Jesus Cristo disse que, quando se morre, não há cá mulheres nem maridos, porque todos se transformam em anjos do céu. Ponto. Jesus Cristo não disse isso, a tradição cultural dos bantu é que fala sobre isso. Então, o evangélico que veio do Brasil disse: “Ora essa, como é que eu vou atrair esse bando de pretos aqui pra igreja? Olha, vamos usar as crenças deles.” Pegam isso e levam para a igreja. Fazem assim um grande carnaval à volta disso. Ora, eu um dia peguei em mim, fiz uma série de entrevistas, fiz uma comparação entre o que se diz nas igrejas e o que diz Jesus Cristo, fui buscar a cultura e as formas como as culturas dizem que absolvem o suposto problema. Na cultura, é até segredo, mas agora pegam nessas crendices populares, fazem disso um programa de televisão que dura horas, têm uma audiência incrível, fazem um dinheiro que não tem fim... E quando eu apareço a dizer: “olha, moçambicanos, vamos refletir sobre isso...” não imaginas a reação... É uma coisa incrível. Então, isso é um processo colonizante, é um processo de dominação. Manter este povo submisso a partir das crenças, isso é mau! Este é um exemplo que eu dei. Outro exemplo é relacionado com a própria escrita. Eu fui muito criticada, e continuo sendo muito criticada porque não estou escrevendo um bom português. O que é isso, um bom português? Regras gramaticais para cá, regras portuguesas para lá... Ou seja, eu tenho que escrever como se estivesse a viver em Portugal! E quem me impõe esta norma não é o português, é o moçambicano, que luta por excluir, excluir o meu trabalho porque não está escrito de acordo com a língua que se escreve em Portugal. Esta gente não está bem. Não há dúvidas que um texto tem que ser bem escrito, mas até que ponto as pessoas vão defender que um moçambicano escreva tal como escreve um português? Nem como brasileiro eu posso escrever.  Então, eu digo não a tanta colonização! Esses são alguns aspectos – são vários, vários -, é preciso sim descolonizar as mentes e sentir a alegria de se ser africano, de se ser moçambicano. Eu tive muitos problemas e muitos mal-entendidos exatamente por conta disso, devo falar de uma maneira, vestir-me de uma certa maneira e comportar-me segundo um determinado padrão que não tem nada a ver comigo, e fico um pouco triste. Há muito trabalho a fazer, e eu tenho muita inveja dos brasileiros: vocês deram o pontapé na língua portuguesa e fizeram o vosso português. Isso é bom. E quando vou a outros países africanos também – eu estive no Senegal, estive, de certa maneira, na Nigéria, mas há espaço para as pessoas terem orgulho de ser aquilo que elas são. Aqui em Moçambique ainda não atingimos isso. O colonial ainda é muito feio.

VRP: Você acha que faltam obras, além das suas, que trabalhem as questões culturais do Norte do país?

PC: Faz muita falta. O Norte tem coisas únicas, coisas belíssimas. Mas, infelizmente, o acesso à escrita é mais no Sul do que no Norte. A situação agora está a mudar, porque, eu diria, a colonização foi um crime. Um crime por quê? Por que eu, sendo originária do Sul, eu estou muito mais perto de uma cultura da África do Sul até a Cidade do Cabo. Eu, quando circulo por essas zonas, eu sinto-me parte dessa cultura. Mas quando eu saio daqui e atravesso a Zambézia estou em outro país, numa outra cultura, numa vida completamente diferente. O colonialismo, quando chegou, fez aquelas fronteiras sem pés nem cabeças e então dividiu povos. Uns ficaram para cá, outros ficaram para lá, hoje não vamos mudar isso. E o Norte e o centro ficaram um pouco esquecidos. É preciso muito trabalho para haver este resgate através da escrita. Por exemplo, o Sul foi o primeiro a ser escrito pelo missionário e pelos padres. Entraram por aqui e escreveram o nosso povo segundo as suas loucuras.  Então, o centro e o Norte foram pouco descritos. Mas há moçambicanos que vêm do Sul e que já começam a escrever sobre o Norte usando o modelo das antigas colônias, colocando preconceitos em tudo que são diferenças culturais. Há necessidade de descolonizar essas mentes. Há um povo que tem essa cultura, eu não sou dela, não pertenço a ela, mas tenho que respeitá-la. Li alguns livros, algumas teses até de alguns antropólogos, ou candidatos a antropólogos, e realmente noto que eles olham para o povo do Norte como se fosse um outro povo. O que seria diferente se fosse o próprio Norte a escrever a sua história. Há este lado também. Há muita coisa a fazer.

VRP: Você se sente imbuída de uma missão de resgate cultural nas suas obras?

PC: Eu fujo muito desse tipo de respostas. Eu faço porque gosto, porque me apetece, vou para um lugar e encontro uma bela história. E trabalho nela, longe de estar a fazer um trabalho de resgate. Um trabalho de resgate é uma coisa oficial, isso é para Ministros e diretores das casas de cultura. Eu faço as coisas porque me apetecem e porque gosto de fazer. É a minha forma de contribuir. Não estou a fazer o trabalho que alguém me manda fazer.

VRP: Você acha que algo pode ser feito além do seu trabalho individual, no sentido de políticas públicas, por exemplo?

PC: Os melhores espaços são as escolas. A mente do professor, a mensagem que é dada pelo professor é determinante para mudar as formas dadas. As pessoas mudam. As instituições precisam ter formadores à altura. Isso eu posso dizer abertamente: algumas vezes, uma pessoa que é formada na Europa e se deixa orientar apenas pelo pensamento europeu torna-se assassina de sua própria cultura, isso eu posso dizer. Existem vários exemplos: pessoas que começam a ser assassinos da própria cultura e que depois de algum tempo despertam e dizem: “Ei! O que é isso que estou a fazer?” Vou te dar um exemplo: alguém que é formado em Psicologia no mundo europeu e pensa que o conhecimento que traz da Europa é único. Chega e quer impor esta forma de trabalho e de pensamento a um povo que tem a sua própria psicologia. O indivíduo que é formado na filosofia de outro país, quando volta acha que este povo para evoluir tem que absorver e copiar a filosofia do país onde ele estuda. Ele, como professor, sabe que dança africana é uma coisa, dança europeia é outra coisa. Agora, o melhor, se calhar, seria pôr sempre as culturas em diálogo, mas ou por falta de capacidade, ou por falta de recursos, alguns professores acabam ficando tontos e só depois é que percebem o mal que fizeram ao seu próprio país. Há muitos exemplos disto. Quem estuda, por exemplo, religião no Ocidente – nossos padres são a prova disso: vão para  Roma, para a Itália, não sei mais para onde – chegam e acham que o que estudaram é o mais perfeito, e tudo que faz parte do mundo do outro é diabólico. Tem muita coisa a se fazer, é um trabalho de muitas gerações.



[i] Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba, onde atua na graduação e na pós-graduação. Possui pós-doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa, sob supervisão da Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Coordena o grupo de pesquisa GeÁfricas desde 2019. Neste período, publicou dois livros com artigos dos discentes do grupo, além de ter organizado outros livros no Brasil e em Moçambique e ter artigos em periódicos diversos.

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