A voz dos autores: entrevista com Mia Couto

    Vanessa Riambau Pinheiro[i]

Este país ainda está visitando a si próprio.

Mia Couto

A entrevista que segue foi concedida pelo  escritor moçambicano Mia Couto, em 10 de março de 2017, nas dependências da Fundação Fernando Leite Couto, sediada em Maputo, capital de Moçambique. A entrevista foi gravada e posteriormente transcrita, o que resultou no tom coloquial do texto,  que foi mantido. 

Vanessa Riambau Pinheiro: Eu queria iniciar perguntando sobre a publicação de Vozes Anoitecidas: este livro gerou tensão, de alguma forma, aqui em Moçambique. Estudiosos como Rui Nogar o criticaram, principalmente em relação ao estilo, à linguagem, argumentando que não representaria o falar típico do moçambicano. Outros como Fátima Mendonça, isso para não falar do endosso de Craveirinha, minimizaram consideravelmente toda essa situação. Mas eu pergunto: ainda há algum tipo de resistência interna em relação à sua obra? E, se houver, a que ela se deve?

Mia Couto: Não, eu acho que este foi um momento na minha vida, foi uma coisa sócio-traumática. Aquilo ainda por cima foi organizado num contexto mais ou menos amistoso, era um início que Rui Nogar propunha para debates, em que os escritores apresentavam um livro e, portanto, se disponibilizavam para conversar à volta do livro e de si próprios. E de repente o Rui disse, “eu tenho uma coisa preparada, tenho um texto de introdução.” “Olha, eu fico muito honrado”, falei. E o texto era uma coisa muito inesperada, vamos dizer assim. Eu nunca pensei, era um texto que me contestava em duas dimensões; as duas eram políticas, mas uma primeira dimensão era que eu não teria propriamente o direito de fazer aquela apropriação de linguagem e reinvenção de uma linguagem, que resultava desta permissão que eu dava para que as vozes da rua invadissem a página e mudassem a escrita. E, se eu estava fazendo, era porque estava tirando proveito estético da ignorância das pessoas que não escreveriam o chamado “bom português” (estou a fazer aspas no chamado bom português), essa era uma dimensão; a outra dimensão era que muitos dos meus personagens eram pessimistas, até optavam pelo suicídio. Isso num momento em que havia uma revolução socialista à porta de casa que abria horizontes. Isso implicava ou uma descrença política ou alguma coisa, digamos assim, mais obscura dentro de mim, eu teria que ser sujeito a algum tratamento. E as duas componentes eram postas de uma maneira muito – vamos dizer – agressivas. Eu lembro-me que foi um momento muito difícil para mim, eu tinha outra idade, provavelmente hoje reagiria de outra maneira. Mas eu senti-me sem chão, deslocado. Não soube fazer a minha própria defesa, porque nunca pensei ter de me defender de nenhuma dessas coisas, e, portanto, a minha defesa ficou nas mãos de quem, naquele momento, decidiu intervir. Não a meu favor, exatamente, mas a favor da possibilidade de se fazerem coisas, haver a liberdade de se fazer isso. Mas o que para mim estava claro, mais tarde eu percebi. Foi bastante mais tarde; durante o encontro, inclusive, houve pessoas que achavam que eu deveria ter um tratamento político, vamos dizer assim. Isto é, deveria viver mais junto ao povo, sendo que o povo verdadeiro, genuíno, autêntico, é o que está nas zonas rurais, eu teria que viver mais lá para saber o que as pessoas sentiam. Por exemplo, eu punha um velho e uma velha e o velho, em delírio, maldiz a chuva. E a coisa era assim: um moçambicano verdadeiro, autêntico, nunca poderia maldizer a chuva. Eu lembro que nesta altura eu tive alguma força para dizer: “Mas é que a chuva, naquela circunstância, representava alguma coisa que era a negação do sonho deste velho, que estava em delírio.” Mas enfim, eu percebi que não era o momento certo para eu estar ali a fazer uma ... Mas, enfim, às vezes o melhor é não sermos nós, é ser o tempo a responder, então acho que depois isso serenou, porque no fundo não era eu que importava, eu não tinha importância nenhuma. Era uma questão quase psicológica das pessoas se sentirem bem nos caminhos próprios que tinham feito. E, por exemplo, até ali havia uma ideia que era preciso escrever para mostrar que se dominava bem o bom português, o que era uma certa importância demasiada que se dava a este Outro, para mostrar a ele que nós também somos capazes. Mas este Outro foi tendo menos importância, fomos resolvendo esses fantasmas de outra maneira. O que estava em causa ali não era a literatura, era uma outra coisa, era uma relação que de fato é problemática. Essas pessoas não estavam doentes, não tinham uma intenção malévola, só havia – há ainda – um problema por resolver. Não digo problema, não gosto muito da palavra problema, mas há uma questão que deve ainda ser encarada: como é que esta língua vai transitando de proprietário, vai deixando de ser do outro para ser uma língua própria. Então é isso, acho que fiz uma resposta muito longa.

VRP: E hoje isso não influencia?

MC: Não, eu hoje estou à vontade. Acho que a maior parte dos escritores não coloca isso como uma questão, porque também eu mudei. Eu lembro-me de ter dito coisas terríveis, eu disse uma coisa que, talvez se eu tivesse encontrado uma maneira mais moçambicana de escrever...Isso já é um disparate, não há o “mais”, eu também estava à procura de uma coisa mais pura, mais autêntica que não tem sentido procurar na literatura.

VRP: De alguma maneira, você acredita que a ideologia ainda pese na valorização da literatura em Moçambique?

MC: Eu acho que não, pra te dizer a verdade, acho que pesa muito pouco. Não exatamente uma questão ideológica, mas uma questão que se confundiu entre o fato político, o lugar do político e o lugar da luta partidária, do engajamento. Moçambique sofreu de uma certa saturação, do excesso daquilo que foi a politização do nosso universo. E, de repente, tu eras moçambicano porque eras da FRELIMO. E essa foi a escola que foi trazida pelo Movimento de Libertação de uma maneira quase, vamos dizer, que eu acho que se acreditava como genuína. O país era a FRELIMO, o povo era da FRELIMO, e o hino nacional, durante anos, começava com “Viva, viva FRELIMO, guia do povo moçambicano.” Portanto, havia uma confusão enorme entre nação, partido, povo. Depois isso foi se separando, mas foi se separando não de uma maneira natural, não foi a história que produziu isso de uma forma com o seu próprio tempo. Foi tudo apressado, de uma maneira dramática, porque havia a agressão da RENAMO, havia uma guerra total, uma guerra total, que punha o mal sem nenhum espaço de permeio. Portanto, quem era da RENAMO era o diabo, quem era da FRELIMO era considerado o culpado, o outro era culpabilizado sempre. E acho que hoje as novas gerações percebem que isso nos torna mais pequenos, hoje há uma grande ansiedade de fazer arte sem olhar esse tipo de opções, sem estar a fazer passar o texto como se fosse uma prova de alguma coisa.

VRP: Você não vê um papel no escritor, acha que a literatura não deva ter nenhuma função a não ser ela mesma?

MC: Eu não gosto da palavra função. Mas acredito que sim, que a literatura provavelmente tenha [uma função], o escritor é que sabe que tem essa função, mas não quer pensar nela. Ele quer que ela aconteça naturalmente. Eu tenho minha postura moral, política, eu tenho meus princípios e, inevitavelmente, quando eu conto uma história eles vão surgir. Mas eu não faço uma escrita com essa intenção: “agora eu vou escrever para defender, sei lá, o povo, a mulher, o proletariado”, qualquer coisa assim.

VRP: Atualmente, ainda seria pertinente falar em moçambicanidade?

MC: Eu acho que nós ainda estamos na construção disso que não sabemos o que é, e ainda bem que não sabemos o que é, nunca vamos saber exatamente. Mas eu acho que nós estamos a descobrir a diversidade dos povos, culturas, línguas, religiões, etc.  Este país ainda está visitando a si próprio, é muito regionalizado ainda, há muito pouca mobilidade entre pessoas do Norte, pessoas do Centro, que são de línguas diferentes. Há trinta línguas diferentes! Quero dizer que há trinta pequenas nações que se conhecem ainda pouco. Neste sentido, ainda há um caminho. Nós pensamos sempre que a moçambicanidade seria qualquer coisa como uma fronteira entre os moçambicanos que já tem isso tudo resolvido e os outros, mas não é. É como é que os moçambicanos, eles próprios entre si, deixam de pertencer à categoria do Outro, dos eles.

VRP: Você falou há pouco sobre as diferenças culturais entre as regiões do país. Você acha que de alguma forma o escritor tenha o papel de tradutor cultural do seu tempo, de sua cultura?

MC: Sem dúvida. Aqui talvez mais do que em outros lugares. Eu, ontem falando com este escritor brasileiro que está aqui em Moçambique agora, o Julián Fuks, ele estava identificando isso na sua obra, o tema da tradução.  Tradução no sentido da abertura de um mundo para o outro, na maneira como se traduz não línguas, mas mundos. Ou não apenas línguas, mas mundos. É um tema obsessivo, sem que eu saiba ele está lá, e acho que provavelmente isso aconteça em todos os outros casos. No caso moçambicano, boa parte das pessoas escreve em português e tem consciência que, sendo essa sua língua de cultura – para muitos já é a língua materna, para outros ainda não é  -, há ali um mundo que não se traduz completamente neste português que a gente aprende na escola. Estamos a usar um vestuário que não serve completamente, que não traduz. Tem briga com o corpo, com o próprio corpo.

VRP: A sua vivência cultural o faz uma pessoa de identidade híbrida?

MC: Sim. Híbrido em vários sentidos. Obviamente, eu tenho ascendência portuguesa ou europeia, já nem sei se é uma coisa que se pode dizer. Mas portuguesa de um certo lugar, de uma certa região de Portugal. E sou da primeira geração, meus pais eram portugueses, e nasci e cresci numa certa região de Moçambique e ali aprendi vários níveis de mestiçagem. Houve um momento na minha vida em que pensei que isso fosse um drama, uma questão a resolver. E depois pensei que era uma coisa ótima, esse mundo diverso dentro de mim era um fator enriquecedor, que eu não tinha que estar a olhar para eles como qualquer coisa que me trazia conflito.  Lembro-me de uma frase de Craveirinha que dizia: “Não sou dividido, sou repartido”, que é uma maneira muito feliz de se colocar a questão.

VRP: Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Pessoa, dizia se sentir “estrangeiro aqui como em toda parte”. Você se sente mais estrangeiro ou mais nativo em todos os lugares dos quais se sente parte?

MC: Eu tenho uma dificuldade enorme de estar onde estou, sempre. Acho que isso é uma coisa de infância, porque eu recordo-me  que a minha mãe guardou aquilo que eram as observações de uma professora da escola primária e dizia: “Este menino nunca está realmente na escola.” Ela pensou, ela interpretou à letra e pensou que eu não ia à escola, mas eu estava lá; eu tenho essa grande dívida, eu acho que o que eu aprendi na escola sobretudo foi a não estar onde eu estava. Viajava quando o professor falava alguma coisa que normalmente era muito aborrecida.  Eu treinei a estar ausente, a desaparecer, a ter uma existência paralela. E acho que isso, em termos literários, é uma grande, ajuda, em termos práticos é um inferno.

VRP: Antonio Candido, crítico brasileiro, acredita que para existir um sistema literário há a necessidade de um autor, de uma obra e de um público. O autor tem que estar mais ou menos consciente do seu papel e a obra deve ser como uma tocha que é passada de geração em geração. Neste sentido, sabendo que há escritores cientes, há o público para o qual as obras são dirigidas, há o meio de transmissão e há uma consciência geracional: você acha que há um sistema literário sólido em Moçambique?

MC: Nunca tinha pensado nisso. Acho que sim, se é posto a partir dessa definição, acho que sim. Acho que é muito recente, provavelmente exista uma certa diferença entre um sistema e um regime. Provavelmente, ainda é um regime, não é um sistema. Nasce com o Craveirinha, com o Rui Knopli, com a Noémia de Souza, e é construída a posterior. Nós agora estamos a tentar perceber quem começou, e quem começou está muito próximo. Craveirinha morreu há pouco tempo, a Noémia também, o Rui também, não é? É um sistema que está nascendo.

VRP: Que autores influenciaram você?

VC: De dentro de Moçambique?

VRP: De dentro e de fora.

MC: De dentro e de fora? Olha, eu fui muito marcado por brasileiros, eu confesso. Primeiro, eu sou marcado pela poesia, meu pai era um poeta e tinha a casa cheia de livros, eu lembro-me que as estantes estavam repletas. Alguns desses livros estão na Fundação [Fernando Leite Couto] agora. E ele era muito próximo da poesia europeia, da poesia francesa, espanhola e portuguesa também. E o [Fernando] Pessoa vivia lá em casa, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner foi uma escola para mim. Esses são, digamos, três nomes que posso dizer que nasceram em minha casa. Quando eu digo minha casa é sempre a casa da infância. Por que a minha primeira casa realmente minha, no sentido que eu pagava renda, aí quando eu já tinha 17 ou 18 anos eu descobri a poesia brasileira por via do João Cabral de Melo Neto, do [Carlos] Drummond, do Manuel Bandeira. Manuel Bandeira já vinha de antes, da casa do meu pai. E depois João Guimarães Rosa são referências, porque me interessava muito trabalhar a minha própria língua, meu idioma, por que havia para mim essa questão, que era a questão: Como é que eu vou escrever? Alguma coisa minha, que ao mesmo tempo é de Moçambique, que diz, que fala sobre isto que está a acontecer em Moçambique? Este português que herdamos não parecia servir.

VRP: Algum autor local o influenciou ou mesmo de outros países africanos de língua portuguesa?

MP: Bom, eu tenho que dizer que Craveirinha teve uma influência grande em mim, em todos nós. O Rui Knopfli teve uma influência muito grande em mim, não só porque eu conheci a obra dele, mas porque eu o conheci pessoalmente. Ele foi meu primeiro diretor quando eu iniciei minha carreira de jornalista. Ele relia os meus textos. Então, havia quase uma relação quase de tutor que ele foi. Por via jornalística, mas acho que ele estava ali, mas também não estava ali. Quer dizer, ele tinha uma relação com o jornalismo que era acidental, ele não era um jornalista, era um poeta que estava ali por acidente.

VRP: Moçambique está um afastado de outros países de língua portuguesa, está cercado de países de língua inglesa. De alguma forma, isso também influencia culturalmente o país?

MC: Não se nota. Pensamos sempre que houve um trato oficial, porque África do Sul, Zimbabwe, Tanzania, Zâmbia, são países de língua inglesa, porque de alguma maneira sim, são. É muito mais forte e mais presente o fato de que na fronteira se falem as mesmas línguas. Por exemplo, changana se fala dos dois lados da fronteira, o zulu aqui no Sul, o xona no centro, o maconde e o cinianja no Norte, enfim. Essas línguas que estão repartidas porque foram separadas artificialmente por um fronteira desenhada pelos europeus, isso tem mais  influência do que qualquer outra coisa. Infelizmente, desconhecemos qualquer coisa que se passe do outro lado da fronteira do ponto de vista cultural.

VRP: Há uma mudança estilística e até mesmo temática nas suas obras no decorrer do tempo. Mas permanece uma certa tendência ao tratamento de temas locais. Qual seria o motivo dessa preferência por temas locais?

MC: Não sei se posso chamar preferência, porque se calhar não sei fazer outra coisa. Não é uma escolha. É como se fosse eu o escolhido. Acho que mesmo que eu fosse eventualmente viver para um outro lado, eu nunca sairia dessa temática, não sei se sei escrever sobre outra coisa.

VRP: Você acredita que exista uma certa tensão entre tradição e modernidade aqui na literatura em Moçambique?

MC: Sim, provavelmente. Eu nunca pensei exatamente neste assunto, mas aqui eu acho que a nossa produção literária continua a estar muito centrada na poesia, por exemplo. Eu acho que Moçambique sente, talvez de uma maneira mais dramática do que Angola, que é preciso ainda, para nos apresentarmos no mundo, precisamos saber quem somos. Ainda há uma busca, estamos virados para dentro porque esse assunto da moçambicanidade é um assunto que ainda se sente como alguma coisa que tem que ser resolvida. Mas tu tens razão. E tudo começou antes em Angola, tem este percurso que tem muito mais tempo porque tem muito mais tempo de cidades; o nascimento da literatura tem muito a ver com o nascimento das cidades. E há cidades em Angola que têm quatro séculos; as nossas mais velhas têm dois, no máximo.

VRP: Maputo não tem a mesma força literária como cenário que tem Luanda, por exemplo?

MC: Imagino que não.

VRP: Mesmo em suas obras, Maputo aparece de forma secundária.

MC: Eu acho que se vai, é uma questão que vai ser descentrada rapidamente. Os próximos escritores vão fazer de Maputo sua própria casa. O problema aqui, para minha geração e para a outra que se seguiu, é que a casa era Moçambique inteira. E Moçambique inteira, o que é? Tem que ter um lugar, e este lugar era mais o campo do que a cidade porque se pensava, e ainda hoje se pensa, que a identidade cultural moçambicana tem um pé maior ali posto sobre a ruralidade, sobre o mundo rural.

VRP: Na sua opinião, qual é o peso do mercado editorial português e brasileiro na divulgação da literatura feita em África de língua portuguesa?

MC: Infelizmente, cabe todo o papel ao mercado.

VRP: O mercado local não tem força?

MC: Não. Aquilo que eu estava a dizer, que seria o papel de uma vontade política, de um governo, deixou de existir. Isso está entregue às forças do mercado, se um livro vende bem, se não vende bem provavelmente não viaja. Quem é que estará interessado a publicar poesia moçambicana no Brasil? Eu vejo por mim próprio, estou no mercado brasileiro. Entrei com enormes dificuldades, é preciso dizer, que a gente pensa que não. Eu lembro que fui com um grupo de moçambicanos em 1987, e pensava: “O Brasil vai nos receber, nossos irmãos”, e não aconteceu nada.

VRP: Como foi este percurso?

MC: Nós fomos pela ocasião do lançamento de uma antologia chamada Coleção Sonha Mamana África, da Cremilda de Araújo Medina, e fomos com angolanos, cabo-verdianos...A ideia era muito boa, foi gente de todos os países da África de língua portuguesa. Pronto, aquilo foi simpático. Mas como é que aquilo se traduziu, como é que aquela antologia foi lançada se traduziu depois num interesse em publicar qualquer daqueles que estava ali? Foi quase zero. Na altura, a única editora [brasileira] que publicava obras de africanos era uma coisa da Ática com o Fernando Mourão, da Universidade de São Paulo. Faliu! Não havia este interesse. Também tem a ver com os momentos em que o Brasil está desejando conhecer África e conhecer-se a si próprio conhecendo a África. Nesta altura, esta questão não se punha, não? Mas eu, depois de publicar anos no Brasil, e de uma pressão grande desses blogues e leitores, é que publiquei a primeira antologia de poesia no Brasil, senão não publicava. Eu penso nos meus colegas moçambicanos que estão centrados na poesia, como é que tão injustamente se deixa isso entregue ao mercado? Eles poderão não ser publicados em outros países, porque parte-se do princípio que poesia não vende. E não vende.

VRP: Aqui em Moçambique há problemas na distribuição de livros, não há um mercado editorial forte, é difícil para um escritor local se promover de forma endógena?

MC: Sim.  A escola é a grande....a viagem que os escritores têm que fazer para chegar até os leitores começa pela escola, sempre. Bibliotecas, não há; livrarias não há, são pouquíssimas: há na capital e mais uma ou duas cidades. Então, a única via é ver como nossos textos são incorporados no currículo das escolas.

VRP: A aceitação que você tem no mercado brasileiro e português, proporcionalmente, é igual aqui em Moçambique?

MC: Provavelmente. Igual não é, mas equivalente, vamos dizer assim, à dimensão do nosso mercado. A Paulina, eu, o Ungulani Ba Ka Khosa, não podemos lamentar-nos, porque, para o nível das tiragens feitas em Moçambique, eu acho que somos felizes, somos bem contemplados.

VRP: Você lê os novos autores moçambicanos, há algum que tenha lhe chamado a atenção?

MC: Bom, há vários. Aqui, por exemplo, na Fundação, por iminência da nossa própria vocação, a nossa ideia é publicar e trabalhar juntos com os novos escritores. Há, na poesia...eu continuo a pensar que a poesia...

VRP: Seria a vocação literária do país por excelência?

MC: Incrível porque não sei perceber isso, como é que as coisas dependem às vezes de uma única pessoa. A figura do titular do Craveirinha, da Noémia de Souza, do Rui Knopfli...

VRP: Luís Bernardo Hownana publicou e depois parou. Quer dizer, essa ideia da continuidade que houve na poesia talvez não tenha havido, nessa época, na prosa.

MC: Estás a falar do Luís Bernardo Hownana: era prosa, e era uma boa prosa, mas estava isolado. A poesia sim, houve sempre uma grande força.  Quer dizer, os principais nomes de Moçambique até muito recentemente, porque depois vem o Ungulani Ba Ka Khosa e vem a Paulina Chiziane, que não têm essa ligação com a poesia. Mas eu vejo os novos nomes que estão surgindo, são quase todos na poesia. Nós publicamos aqui menina chamada Hirondina Joshua que ela meteu um bom livro de começo, e vamos publicar agora uma menina que se chama, assina como Melita, por sinal, um bom livro de poesia. E temos na forja vários nomes que eu me surpreendo que vêm aí, mas que continuam a ser da poesia.

VRP: Eu queria que você falasse um pouco sobre o trabalho da Fundação [Fernando Leite Couto], e também se há outras iniciativas públicas ou privadas de divulgação cultural no país.

MC: Cultural no sentido apenas da literatura?

VRP: Não, no sentido latto do termo.

MC: A Fundação [Fernando Leite Couto] é uma coisa pequena, dimensão familiar, tem um ano e meio de existência. Os três irmãos, quando o meu pai morreu, há dois anos, dois anos e meio, perceberam o que ele fazia. Percebíamos que ele trabalhava em uma editora e publicou vários autores jovens, e trabalhava o texto com eles.  Mas nunca imaginamos que dimensão ele tinha conquistado junto a estes jovens. Quando ele morreu, recebemos dezenas e dezenas de mensagens e pensamos: “Vamos continuar isto, vamos manter nosso pai vivo desta maneira.” A grande razão dele viver era esta, o bem que ele tinha. E fazemos isso com muito gosto. Mas esta casa tem uma vocação cultural, embora esta seja a linha fundamental – trabalhar com jovens, fazê-los publicar, fazer oficinas literárias, acompanhar jovens inexperientes -, mas também fazemos aqui exposições, exibições de teatro, cinema, música e a única coisa que liga tudo isso, como um fio, é que quem vem a esta casa, seja pintor, seja fotógrafo, seja cantor, tem que ter depois disponibilidade de fazer uma segunda sessão em que conta histórias. Então, torna-se uma espécie de fábrica de histórias. A ideia é que um artista consagrado, sentado junto a gente jovem a contar a sua própria história, a história de suas canções, de suas obras, pode suscitar essa proximidade, essa ideia de que, afinal, não é uma coisa tão impossível, não é? E isso é o que temos feito. Então, eu acho que temos feito bastante. Nós temos uma agenda que tem oito, nove eventos por mês e isso é mais do que a gente pensava. Já publicamos livros, já fazemos uma exposição por mês. Enfim, citar vai parecer uma propaganda publicitária da casa. Sobre o país, acho que há aqui um equívoco. Pensa-se a cultura como uma coisa muito funcional, embora para o lado “festivaleiro.” O grande investimento institucional do Estado é organizar festivais nacionais e que têm uma dimensão, aparentemente, enorme, e com uma função, que é criar unidade nacional, juntar artistas de todas as províncias. Corre razoavelmente bem, acho que sim, eu nunca fui a nenhum deles, mas acho que sim. É o grande investimento, quase o único. E não me parece que, de qualquer maneira é um grande investimento, mas os fundos para fazer com que isso tenha depois uma repercussão nacional não existem.

VRP: Eu queria que você falasse sobre a sua motivação de escrever narrativa histórica, o que o fascina neste tema. E qual será seu novo projeto depois de terminar a trilogia?

MC: Ih, meu Deus, Começando pelo fim: não sei. Eu termino sempre um livro – e este ainda mais, porque é um livro com três livros dentro – saio sempre com o sentimento de que esgotei, é o último, secou a fonte. Não sei, sinto que não posso mesmo saber, porque vivo de maneira a buscar cada um dos livros como se fosse o princípio e o fim da minha vida. Não sei mesmo, e percebo que não quero saber. Agora, a primeira parte da pergunta: eu nunca pensei que eu fizesse isso, que eu ia fazer em qualquer momento da minha vida um romance histórico. Tive uma primeira tentativa quando fiz O outro pé da sereia, que era alguma coisa meio tímida ainda. Mas o que me interessa da história é um bocadinho daquilo que o João Guimarães [Rosa] dizia, não sei repetir bem, mas dizia: “a história não quer nascer das estórias.” Há uma relação difícil entre a história com H maiúsculo  e as pequenas estórias, que ele escreveu intencionalmente com “e”. E esse mal-estar entre alguma coisa que se constrói como edifício e que depois expulsa outras versões sempre me pareceu um trabalho ficcional. Isto é, quando eu olho para aquilo que é hoje estudado como a História de Moçambique eu verifico o quanto de ideológico, o quanto de ficcional está ali feito. E leio aquilo como um trabalho não de recuperação de memória só, mas de apagamento, de esquecimento. E isso fascina-me, esse lado literário da História, seja ela oficial, não oficial. Então há aqui esta mentira, da História oficial que se proclama como científica e fica como uma coisa inquestionável, e que ficou, e foi construindo heróis, figuras, que nós revemos e que são os fundadores não só da categoria de cidadão, mas da categoria de nação. São construídas grandes e pequenas mentiras. Havia um caso próximo, que este do Gungunhana, que é este imperador que me serviu de pretexto, que é o resultado de duas grandes mentiras: há ali uma mistificação, feita por um lado português, por um lado moçambicano. E como é que dois tempos, dois interesses históricos podem construir ao mesmo tempo uma figura tão polêmica, tão conflituosa, é só isso que me interessa. Do resto, digamos assim, esse namoro com a História nunca tive tanto.

VRP: Clarice Lispector, quando escreveu A hora da estrela, foi muito criticada porque ela seria uma escritora que não teria, em pleno Modernismo, 3ª fase, nenhuma preocupação social, escrevia como mulher... Então ela criou um narrador masculino e colocou uma migrante nordestina, que é Macabeia, e fez aquele livro genial que acabou sendo sua última obra. Enfim: de alguma forma, não seria uma forma de resposta você ficcionalizar um herói nacional, que é um dos mitos da fundação cultural moçambicana, e assim responder a supostas críticas em relação à sua ascendência europeia, à sua raça... Talvez uma forma de legitimação cultural?

MC: Não sei. Eu tinha que me deitar no divã (risos) para poder perceber o quanto isto está em mim.

VRP: Não é consciente, então.

MC: Não, não é. E acho que não tenho mesmo esse propósito. Como te disse antes, houve momentos em que eu pensava que tinha que resolver isso, mas acho que agora já não tenho nenhum problema, aceito essa minha multiplicidade, vejo mesmo como algo disparatado estar a querer passar por quem não sou. Qualquer que fosse moçambicano, seja qual for sua raça, seu sexo, sua origem, que se proclamasse mais autenticamente moçambicano do que outro qualquer, acho que isso não teria mesmo sentido, porque não é verdade. E não me parece que, mesmo dentro de mim – o mais fundo que consigo chegar, pelo menos – eu queira provar alguma coisa dessas; pelo contrário, acho que eu quero provar que sou viajante, que estou a fazer uma travessia. Talvez de uma coisa eu tenha consciência, porque como não tenho esse enraizamento no tempo, possivelmente isso me traz uma possibilidade de distância e eu possa ver, naquilo que para outro moçambicano que tem o avô e o bisavô, por exemplo, neste lugar que estamos a visitar, aquilo que para ele é natural, para mim pode ser visto com outro olhar. Posso descobrir beleza, posso descobrir algo de estranhamento, que é importante para a produção literária: essa distribuição que existe na nossa alma de uma coisa que, ao mesmo tempo é familiar, que pensamos que conhecemos desde que nascemos, e que de repente desconhecemos, e temos uma relação de distância. Acho que neste aspecto eu sou um privilegiado.


[i] Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba, onde atua na graduação e na pós-graduação. Possui pós-doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa, sob supervisão da Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Coordena o grupo de pesquisa GeÁfricas desde 2019. Neste período, publicou dois livros com artigos dos discentes do grupo, além de ter organizado outros livros no Brasil e em Moçambique e ter artigos em periódicos diversos.

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