Mia Couto: narrar o lado menos bonito e que muitas vezes não é falado também é parte do ofício do escritor[1]

Rosália Estelita Gregório Diogo[i]

MIA COUTO é, possivelmente, o escritor africano mais conhecido no Brasil. Mia Couto associa-se aos escritores que preferem utilizar “formas desviantes”, ou seja, dominam as regras do que é considerado padrão para a língua, mas preferem escrever por meio das mudanças lexicais ou sintáticas que estão presentes no discurso usual. Podemos observar, na produção literária do autor, que ele distancia-se da padronização literária construída na Europa e cria um processo que é pautado pelo alinhamento à fala dos moçambicanos, e, para tanto, faz inovações lexicais e sintáticas. Essa é, portanto, uma característica patente em seu estilo literário. Muitos dos livros de Mia Couto são publicados em mais de 22 países e traduzidos em alemão, francês, espanhol, catalão, inglês e italiano. Estreou na literatura com o livro de poesias Raiz de orvalho, publicado em 1983, em Maputo. Em 1999, a Editora Caminho relançou, em Lisboa, Raiz de orvalho e outros poemas. Publicou várias coletâneas de contos, dentre elas: Vozes anoitecidas, publicada em 1986 em Moçambique, pela Associação dos Escritores Moçambicanos, e em 1987 em Lisboa, pela Editora Caminho; Cada homem é uma raça, publicada em 1990 em Lisboa, pela Editora Caminho; Estórias abensonhadas, publicada em 1994 pela Editora Caminho; Contos do nascer da terra, publicada em 1997 em Lisboa, pela Editora Caminho; Na berma de  nenhuma  estrada,  publicada em 1999 em Lisboa pela Editora Caminho; O fio das missangas, publicada em 2003 em Lisboa, pela Editora Caminho. Além disso, publicou também  pela Editora Caminho, algumas das suas crônicas, que continuam a ser coluna nos semanários publicados em Maputo, capital de Moçambique: Cronicando teve sua primeira edição em 1988; O país do queixa andar foi publicado em 2003; Pensatempos. Textos de opinião foi publicado em 2005 e E se Obama fosse africano? e outras interinvenções, publicado em 2009. Publicou também pela Editora Caminho,  os romances: Terra sonâmbula (1992); A varanda do frangipani (1996); Vinte e zinco (1999); O último vôo do flamingo (2000); Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002); O outro pé da sereia (2006); Venenos de Deus, remédios do Diabo (2008); Jerusalém (2009), livro que, no Brasil, foi publicado pela Editora Companhia das Letras com o título de Antes de nascer o mundo. Registre- se, ainda, a publicação de Mar me quer (1998), como contribuição para o pavilhão de Moçambique na Exposição Mundial EXPO ‘98, em Lisboa. Além disso, publicou as seguintes obras de literatura infantil e juvenil: O gato e o escuro (2001); A chuva pasmada (2004) e O beijo da palavrinha (2006).

RD: Outro dia ouvi menção a uma obra sua recente cujo nome é Pensageiro frequente. É o último romance? Ou não é romance?

MC: Não, não é um romance. São textos dispersos que escrevi e houve uma recolha organizada pela revista de bordo da Linhas Aéreas Moçambicanas – LAM. A revista se chamada Índico.

RD: Pois então, Mia Couto, primeiro quero dizer que é uma honra muito grande estar com você aqui.

MC: A honra é minha, é um prazer recebê-la em meu país.

RD: O meu entendimento, junto com vários teóricos, é de que a literatura não é meramente um processo de fruição, deleite distanciado da possibilidade de reflexões acerca de questões sociais, culturais e políticas.

MC: Eu concordo com você.

RD: No caso da literatura moçambicana em especial, ao ler a sua obra, a de Paulina Chiziane, a de Ungulani Ba Ka Khosa, por exemplo, acredito tratar-se de escritas que me permitem conhecer um pouco mais da realidade moçambicana.

MC: Compartilho a ideia. Penso que o autor não pode furtar-se a essa relação com a realidade. Há nessas escritas uma visão do mundo, uma defesa de valores presentes na obra, sem dúvida.

RD: Estou em Moçambique há quatro meses. Conheci o centro do país, uma ponta do norte e vivo em Maputo, na região sul. Tive a oportunidade de conhecer espaços diferenciados dessa cidade, para tentar ver, ouvir os modos de vida das pessoas. Gosto muito de conhecer a região periférica. Percebo que vocês escritores abordam muito das questões sócio-político-culturais que tenho observado ao andar por aqui. Li, recentemente, duas obras suas: E se Obama fosse africano e outras interinvenções e O país do queixa andar. Fiquei pensando como é possível um escritor falar de maneira tão simples para um leitor que não é dessa sociedade sobre as questões políticas do país na atualidade.

MC: Acho que o escritor é, digamos assim, uma fonte importante para se perceber alguns elementos. Moçambique é um país que tem pessoas que não escrevem. O fato de agora termos muitos moçambicanos que escrevem não significa que Moçambique seja um país onde a escrita predomine. O que eu quero dizer é que o peso da oralidade é enorme e transportá-la para a escrita é como visitar um outro país. Então a escrita literária moçambicana traz esse outro lado. Um lado de quem olha mais para o interior. Os escritores estão contando histórias a partir desse sentimento. Acho que os escritores moçambicanos estão falando de dentro. O peso da oralidade, assim como no Brasil, provavelmente, dá o tom da nossa escrita. O que surpreende por aqui é que não seja, toda a gente, escritor, criador. Vivemos em um ambiente de tal maneira instigador de histórias que é um privilégio. Fazemos parte das nações com situações de conflito muito mal resolvidos que estão procurando ajustar-se e apanhar um lugar na história. Como a guerra entre a Renamo e a Frelimo, por exemplo, onde noto conflitos que foram mal resolvidos. Os moçambicanos têm muito receio em tocar em certas questões. As pessoas precisam ir em círculo, de maneira concêntrica, espiralar e só chegam ao assunto depois de muitas voltas. Eu noto um receio de despertar fantasmas, demônios que estão em uma gaveta. Por exemplo, a questão da escravatura é um fenômeno que ocorreu em muitos sítios desse país. Houve escravos, mas as pessoas preferem não se lembrar disso. Há muito mais memória sobre o escravo no Brasil, na África ocidental, do que em Moçambique. Aqui, é uma coisa que se prefere esquecer, embora seja recente. No norte do país, onde houve mais gente que foi transportada pelo processo de escravidão, é uma lembrança que não se quer ter. Até porque junto com ela vem muita coisa que não se quer lembrar. Havia zonas do país que eram cúmplices do processo escravocrata, como a Província de Cabo Delgado, onde havia conflitos entre os macuas, os macondes e os muendes. Não eram meramente conflitos étnicos entre tribos. Hoje são histórias mal resolvidas. Havia várias outras zonas com elites escravocratas, várias regiões de onde saiam negros para serem escravizados. Acho que acontece a mesma coisa com esse silenciamento sobre o lugar da mulher, o lugar dos homens, dos jovens. Aqui, o jovem encontra, na sociedade, um paraíso para ele porque ele não tem um espaço definido e tem que criar o seu próprio mundo. Por aqui acontecem coisas que provavelmente não são imaginadas no Brasil. Daquilo que eu conheço da visão brasileira sobre Moçambique, ela, às vezes, é uma visão muito simplista. As religiões africanas, por exemplo. O candomblé é uma invenção brasileira, mesclada por vários matizes de religiões de vários lugares da África e mesmo do Brasil. Na África não se tem o Candomblé. Ele é brasileiro. Há uma diferença enorme entre a cultura religiosa brasileira e a moçambicana. Eu acho importante isso porque se, no Brasil, eu não souber nada, por exemplo, sobre a religião católica, eu saberei dizer muito pouco sobre a cultura daquele país. Isso porque todos os brasileiros são marcados profundamente pelos valores pregados por essa religião. Por ela se pensa sobre a ética, sobre o que é bom ou mau, o que é fundador e o que não é. Muita gente olha para a África pensando que ela é um país que vive entre os cristãos e os mulçumanos. Não é exatamente assim. A situação é muito mais profunda, muito mais complexa, muito mais estruturante. Há outra religião que não tem nome e para a qual, às vezes, dão o nome de animista. Mas isso é falso. Uma parcela das pessoas vive com a ideia de Deus como o Criador e não é nesse sentido que confere à alma a condição de objeto de culto. Não é isso. Também as práticas consideradas animistas não são práticas que se pode nomear ou folclorizar. Isso é importante. É o que permite fazer uma literatura que constrói uma relação com o tempo, com os mortos, não com a morte. A morte não existe enquanto fenômeno. Veja a forma como, por exemplo, a feitiçaria está presente numa escritora como a Paulina Chiziane, como elemento regulador, muito mais regulador que o estado, que os fenômenos arbitradores do estado. Ela apresenta, em seus escritos, ora uma mulher que se comporta ou que vive dentre dessa regulação, ou uma mulher que não pode ser enquadrada fora dela. Portanto, o peso que tem esse estigma, esse momento de regulação, alcança níveis inimagináveis na literatura e na cultura de Moçambique. Colegas meus, que são biólogos muito bons, têm uma visão bem científica do mundo, mas, ao mesmo tempo, na sua cabeça, existe um lugar para esse outro universo dos fenômenos da feitiçaria. É uma coisa muito curiosa para se saber: ministros, gente do banco, parece que estão todos do outro lado da modernidade, pois uma parte de si está virada para esses fenômenos. Quando chegam ao gabinete, por exemplo, a primeira coisa que fazem é uma cerimônia para limpar o gabinete daquilo que seja reminiscência de outros, etc.

RD: Esse fenômeno parece estar presente na obra O sétimo juramento, da Paulina Chiziane?

MC: Exatamente. Eu acho que a Paulina faz, provavelmente melhor que ninguém, melhor que outro qualquer escritor, essa leitura de como esses fenômenos estão presentes na vida das pessoas. Ela convoca tudo isso, em suas obras estão lá como uma espécie de diagnóstico, de um retrato que é muito preciso, pois ela faz isso muito bem.

RD: Pois então, eu quero saber de si um pouco sobre a obra de Paulina Chiziane, o significado dessa escritora e de sua escrita para o conjunto da sua obra e para o conjunto da literatura moçambicana na atualidade.

MC: Eu sou suspeito, pois no caso da Paulina eu tomo partido. Quando ela iniciou o seu trabalho como escritora numa sociedade como esta moçambicana ela entrou em uma guerra. Entrou em uma guerra porque esta é uma sociedade muito machista Não se prevê que uma mulher possa falar, menos ainda sobre determinados temas nos quais ela insiste em tocar, pois são mundos quase entrevistos. Na parte urbana da sociedade, temos vários aspectos da modernidade, mas existe uma máscara, pois tudo isso é muito frágil. Temos muito forte na sociedade preconceitos antigos e referenciais da tradição que ainda estão presentes. Quero frisar que, sou amigo da Paulina e acompanhei as brigas que ela teve inicialmente. Não porque ela quisesse, mas porque aconteceram mesmo. E digamos assim, estive junto por ser amigo dela e porque eu sou um militante dessa causa. E a Paulina, digamos, foi colocada como um objeto folclórico, exatamente pela postura de uma mulher produtora de pensamento, produtora de sentimento. Depois a aceitação do seu trabalho parece que seria aceitável desde que ela não entrasse em determinados lugares, aqueles que foram determinados aos homens, o lugar da visibilidade. Quando a Paulina se tornou uma escritora notável, ela foi objeto de uma campanha de maledicência para a qual ela própria não estava preparada. As agressões vieram de onde ela menos esperava, dos colegas homens escritores. Eu estou a falar de um aspecto que talvez não interesse à Rosália, mas faz parte de um contexto.

RD: Sim, faz parte, indubitavelmente, da pesquisa, saber dessa realidade do cenário literário moçambicano que não está exposta publicamente ao mundo.

MC: Portanto, eu não sou analista de literatura, isso eu não sei fazer. Daí, penso que a função de narrar o lado menos bonito e que muitas vezes não é falado também é importante. A Paulina foi objeto de uma campanha negativa. Ela foi para outra província, a Zambézia, porque aqui seus parceiros, escritores, não colaboraram. Ela foi vítima de uma conspiração. Hoje em dia é uma mulher de bem para a maioria dos escritores, mas antes era uma coisa terrível, uma violência. Ela foi para a Zambézia no fundo, eu acho, porque  tinha de  vencer essa batalha. Mas foi ótimo ela ter feito isso. Aconteceu com Paulina uma coisa que aconteceu, por exemplo, com Malangatana Valente. Ele passou por um processo que o magoou muito. Ele foi mandado, pela Frente de Libertação de Moçambique – Frelimo –, para Nampula, onde viveu uma situação de aprendizado sobre o povo. Então os dois passaram por processos que lhes permitiram fazer contato com outras dimensões da cultura. Foi uma coisa importante o que a Paulina fez com essa cultura local à qual ela teve acesso. Seu trabalho apresenta um outro lado do povo, com outra língua e outra cultura. Eu acho que essa suspeita em relação ao trabalho da Paulina ainda não terminou. Eu acho que a Paulina, ainda hoje, é vista como alguém que, provavelmente, não tem o lugar que tem por causa do mérito, mas por outras coisas, o que é triste. Paulina vem de um contexto em que ela fica fragilizada e que ela tem que enfrentar. A briga dela é uma briga solitária. Provavelmente no Brasil a coisa é um pouco melhor, ser mulher e escritora não é uma coisa tão singular. Tem outra coisa que eu acho que posso falar. No meu trabalho como biólogo atuo muito perto do lado antropológico, do lado social, sem esquecer o lado humano. Aqui em Moçambique é assim. Nesse trabalho posso verificar algumas situações bem interessantes do ponto de vista daquilo que compõe a cultura moçambicana. Na região da etnia Maconde, norte do país, região rural, uma mulher, por exemplo, não pode olhar de frente para o seu sogro, não pode falar, a não ser em voz baixa, em presença de homens. A mulher lá tem outro estatuto. O homem é quem domina em todos os pontos. Paulina desafia a sociedade ao tocar nesses assuntos, nesses tabus da nossa tradição. Outro tema que ela aborda com vigor é o da violência. O que escutamos nos jornais, nos noticiários é uma pequena parte do que acontece na realidade. O homem não tem se sentido à vontade nesse território e agride a mulher no fundo porque ele tem medo de perder o domínio da ligação mais íntima das pessoas com o mundo. Acho que a Paulina dá voz às mulheres e nos conta histórias da realidade moçambicana. Além da importância literária, é possível que possamos analisar essas questões socioculturais como questões de fundo da escrita da Paulina. A Paulina apresenta-se como contadora de história, mas talvez não tenha a dimensão de que, ao contar essas histórias, as coloca em um curto- circuito que é muito mais importante do que ela pensa.

RD: Agora eu te provoco com outra questão muito presente na obra Niketche: uma história de poligamia, que é sobre a poligamia e sobre o lobolo.

MC: O que discuto com a Paulina é: eu acho que o livro está contando uma história, o escritor provavelmente sabe que nessa história não tem que se revelar tudo, e agora, eu tenho que ter uma visão do mundo, e sobre essa visão do mundo, eu acho que, no caso da escrita da Paulina, há ali alguma coisa triste. Me parece que não estamos felizes. Eu também não estou feliz com situações que chocam no debate entre a tradição e a modernidade. Por exemplo, em relação aos rituais de iniciação, eu tenho dúvidas se a reabilitação deles pode trazer mais chão para a nossa vida atual porque esses rituais foram produzidos em um outro contexto, para determinados fins e devem ser questionados hoje. Inclusive devemos questionar o que é realmente tradição e o que não é, se é produtivo para nós mantermos determinadas culturas tradicionais. Acho que aqui está acontecendo algumas coisas sobre as quais nem sempre estamos todos em acordo. Esta me parece a visão que está por trás dos livros da Paulina, inclusive do livro Niketche: uma história de poligamia, e ela trata disso no livro com uma carga de ironia e ambiguidade.

RD: Ironia?

MC: Eu acho que sim, eu acho que existe uma certa ironia. Por exemplo, eu assisti as adaptações que fizeram para teatro e vejo como as pessoas riem, em particular com a adaptação de Niketche: uma história de poligamia. Parece que elas têm uma necessidade de rir para se libertarem de alguma coisa.

RD: A adaptação do livro foi feita aqui em Maputo?

MC: Sim, aqui, foi feita uma adaptação muito perfeita, muito fiel, com a atriz Lucrecia Paco. A peçam muito fiel, não era uma coisa inventada na cena, era uma coisa que acontece mesmo. Foi discutida a montagem com a Paulina, portanto foi muito bom. Então, é isso que eu queria dizer.

RD: Muito bem. Gostaria de retomar um ponto da sua fala que me interessa: a questão da raça nesse período da pós-independência.

MC: Posso dizer que não acredito que haja algum município que tenha resolvido a questão racial. Existe uma relação mais relaxada em alguns pontos, mais duras em outros, mas não superada. É um processo muito longo. Não sei bem como se passa essa temática nas outras áfricas, mas em Moçambique, o problema racial passa para além da questão da raça, passa pela questão da identidade, de outras coisas. Vou dar um exemplo: quando vou para o campo, a maioria dos meus colegas são negros e eu apareço como o único branco. Quando chegamos, as pessoas usam um termo que significa “chegaram os brancos”, indistintamente. Essas pessoas querem dizer, na verdade, com os seus termos próprios, dependendo da região onde vamos, que nós somos estranhos à cultura deles, independente de sermos brancos, negros, árabes. Depois desenvolvem conosco uma relação de pertença se usarmos adornos ou nos comunicarmos na língua que eles falam. O país tem vivido um momento ímpar em que as várias etnias têm tentado comunicar-se com quem não fala a sua língua e não tem o mesmo fenótipo que o seu. As pessoas passam, então, a buscar outros elementos de identidade e a não a se confrontarem apenas com um mundo, com um universo étnico. Eu estive na Província de Niassa para visitar uma escola frequentada por pessoas pobres. As crianças estavam sujas, descalças, rotas e, no meio delas, havia um grupo que se diferenciava, embora fossem todos negros. Havia alguma coisa no olhar. Depois, quando chegamos ao fim da visita, esse grupo de meninas e meninos veio até mim e pediu para eu assinar em um papel. Era algo como um autógrafo. Usavam o termo namastê, que era usado em uma novela brasileira que estava sendo exibida. Eu fui ouvindo os nomes de cada um e associando à região em que cada um nasceu. Percebi que eram filhos de homens e mulheres que, em determinado momento da guerra, foram retirados daqui do Sul e levados para essa Província do centro. Foi muito ruim, uma coisa muito traumática no período. Esses meninos perguntavam sobre a terra deles. Queriam notícias da “nossa terra, nossa terra”. Eu disse a terra de vocês é aqui e eles diziam que a terra deles era em Maputo. Portanto, essa construção da identidade, aqui, nem sempre passa por uma coisa mais imediata. A gente aqui diz preto, branco e temos cuidado com o que seja politicamente correto. Eu respeito isso, mas não me subordino. Daí, penso que essa fronteira negro/ branco não foi ultrapassada. Outra questão que precisa ser ultrapassada é que se está criando uma elite negra, inclusive de grande porte. Temos novos ricos em Moçambique e esse fenômeno da concentração da riqueza estar só nas mãos de brancos e indianos, praticamente vai mudar. Portanto, não podemos continuar vendo o mundo de maneira simplista, como se o problema da raça fosse o único conflito. Eu penso que aqueles que estão em pontos estratégicos de governação podem pensar em mudar alguma coisa em Moçambique, pensando que o que define uns e outros são questões de natureza muito mais política, tem a ver com uma postura perante o mundo. Muitos dessa nossa elite são colonizados mentalmente, são muito apressados e reproduzem aquilo que é o pior da atitude do branco português, com certa arrogância muito básica, muito primária, muito desrespeitosa com o outro. A gente ouve muito sobre o combate à pobreza, mas essas pessoas odeiam pobres, não os querem perto, querem uma nova fronteira, uma nação só para eles. E estão juntos nesse projeto: indianos, brancos, negros... Essa é uma coisa. A outra é que a Frelimo não ajudou muito, pois teve uma postura muito administrativa sobre esse assunto e chegou até a dizer, num dado momento: não há raça, não há tribo, não há etnia. Não se pode decretar isso sem discussão. A Frelimo dizia o que há são moçambicanos, somos todos moçambicanos. Pode haver uma função didática nesse posicionamento, mas, ao mesmo tempo, ele ofuscou um debate que devia ter sido posto na mesa: o da existência da raça, das etnias. Eu reconheço, quando vou ao Brasil, que de fato a imagem que os moçambicanos têm do Brasil é falseada. Mas eles precisam dessa referência, pois quando os primeiros negros começaram a fazer sucesso no mundo, foi no mundo dos desportos, nos Estados Unidos, com pessoas como Cassius Clay. E os negros africanos não podiam entrar por lá tranquilamente, em função do apartheid. A mesma coisa se deu com Pelé, um fenômeno. Porém, no Brasil os africanos podiam entrar. Então fica a impressão de que o Brasil é uma democracia racial, quando não é, de fato, pois são poucos os negros famosos no Brasil.

RD: Cada homem é uma raça Mia?

MC: Eu prefiro ver o mundo assim. Quando eu ando aqui pelas ruas, às vezes acho que a minha raça sou eu mesmo, mas provavelmente eu vivo em uma situação particular. Por exemplo, pelo fato de ser muito conhecido, reconhecido na rua, muita gente se aproxima de mim, me diz coisas muito bonitas, coisas que estão muito acima desse laço de identidade vinculado à raça. Quando estou a sair, por exemplo, no aeroporto, trabalhadores, pessoas que eu gosto de ouvir conversam comigo. Eu sinto que me aproximar dessas pessoas faz parte do meu ofício de escritor. Não é bom ouvir que, eventualmente, não se comunga determinadas ideias com o outro por ser branco ou negro. Portanto, eu prefiro que as pessoas não façam um discurso muito racializado.

RD: Você toca em um aspecto interessante, que é o da distribuição da riqueza. Percebo que alguns negros alcançam ascensão social e desprezam, desconhecem a necessidade de que outros negros possam crescer também. Esses poucos negros compõem uma elite, juntamente com indianos e descendentes de portugueses.

MC: Sim. O princípio moral mais importante nessa sociedade moçambicana, que é a distribuição de riqueza, não está sendo atendido.

RD: Espero voltar a Moçambique o mais breve possível e torço para que esse processo de distribuição igualitário da riqueza esteja acelerado.

MC: Eu torço mais ainda.

NOTAS

1 Originalmente publicada em Scripta, Belo Horizonte, v. 14, n. 27, p. 195-205, 2º sem. 2010. Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4341


[i] Possui graduação em Jornalismo pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (1991) e mestrado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2005). É doutora em Letras/Literatura pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, instituição em que pesquisou sobre literaturas africanas de Língua Portuguesa, com bolsa PROSUP TIPOII/CAPES. Bolsista de Estágio de Doutorando no exterior-PDEE/CAPES. Morou em Moçambique/África no primeiro semestre de 2011 por força de uma bolsa sanduíche concedido pela CAPES/CNPQ. É pós-doutora em Antropologia Social pela Universidade de Barcelona, a partir de bolsa de estudos para o exterior concedida pela Capes em 2014. É professora titular da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte- Secretaria Municipal de Educação- SMED. Membro do Conselho Editorial das revistas Literatas e Baía/Moçambique. É autora dos livros Mídia e Racismo (2004) e Rasuras no Espelho de Narciso- educadoras negras e a crítica à representação de negros/as na mídia (2008), publicados pela Mazza Edições. É professora na Escola de Verão em Middlebury College (EUA). É professora pesquisadora da CAPES e membro dos grupos de pesquisas Caleidoscópio/UFOP, coordenado pela Profa. Dra. Margareth Diniz e "Raça, Cor e Etnia na Cultura/ Literatura", coordenado pela profa. Dra. Profa. Dra. Terezinha Taborda - PUC Minas. Em 2014 recebeu o Prêmio Crearmundos, com sede em Barcelona, pelos trabalhos relacionados à valorização e promoção da cultura negra. É membro do conselho editorial das Revistas Educa (Secretaria Municipal de educação de Belo Horizonte) e da Revista Crearmundos (Barcelona). Foi curadora da 8ª Edição do Festival de Arte Negra de Belo Horizonte/FAN.

 Texto para download