Entrevista com Mia Couto[1]

Rita Chaves[i]
Tânia Macêdo[ii]

Mia Couto

RC & TM - No conjunto da sua obra, que é composta por textos literários e por aqueles reconhecidos como textos de intervenção, o leitor pode perceber alguns temas que o acompanham desde Raiz de orvalho. Um deles é a questão racial, que desde Cada homem é uma raça vem se consolidando. Você sente mudanças na abordagem desse tema? E, completando, você acha que hoje lê de modo diferente a questão racial no seu país?

Mia Couto - Eu acho que essa questão da raça se coloca dentro de um quadro que vejo como uma espécie de interrogação dos valores de identidade. Pode não ser a raça, pode ser o sexo, pode ser a definição do que é uma nação, do que é uma entidade coletiva. A questão da raça também está presente, não vou fugir, e essa questão deriva do fato de que a raça é um assunto em Moçambique, é um tema, não é? E eu estou perante, digamos assim, a esse constante vai­e-vem... perante à maneira como esse assunto se toma quente e de­ pois frio em Moçambique. E eu, não tendo preocupações propriamente de sociologia ou de tentar entender o quanto a história, em que esse valor da questão social ressurge, interessa-me, sobretudo aquilo que é a procura de uma identidade que possa legitimar privilégios ou a constituição de uma elite em Moçambique. Eu acho que o racismo em Moçambique, tal como as questões étnicas, tribais e as outras questões de identidade (identidade regional, por exemplo), é como um valor de afirmação. Isso é alguma coisa que me ocupa.

A segunda questão é como isso, dentro de uma imagem em Moçambique, se equaciona. Já toquei nesse assunto na primeira parte da resposta. Eu acho que o interessante é que essa questão não é clara, nunca é posta de uma maneira transparente, quer dizer, ela serve para qualquer coisa, é posta de maneira diversa a cada vez que surge. Há uma constante que é a de provar que há um grupo que tem mais direito, mais privilégio, inspirado naquilo que é um dado da natureza, que é um dado biológico de se ter esta raça ou aquela. E isso é curioso porque ressurge sempre que é preciso alguma reorganização política, sempre que há conflitos e que as forças que pro­ curam um lugar de poder em Moçambique têm que arrumar a casa ou desarrumar a casa anterior.

RC & TM - Num dos textos de Pensatempos você fala na necessidade da desafricanização do escritor africano. Eu queria que você desenvolvesse um pouco essa proposta que, se vista apressadamente, pode ser interpretada como uma contradição ao tema da identidade que é um dos seus favoritos.

Mia Couto - Ah, eu disse assim... "desafricanização"? Bom, isso é uma tentativa de reagir contra a afirmação pela africanidade, daquilo que seria uma proposta literária que viesse da África. Durante um tempo, acho que de afirmação, um tempo em que historicamente era necessário mostrar que os africanos tinham alguma coisa que era marcada pela diferença e tinham que dizer isso ao mundo: "nós somos particularmente diferentes". Esse o período de Aimé Césaire, de Leopold Senghor, da Negritude etc. e de depois das independências. Acho que isso foi uma fase de um processo de afirmação que é absolutamente necessária e que não pode ser posta em causa. Mas pode haver aqui uma armadilha. Quando se insiste nessa afirmação daquilo que é particularmente diferente, particularmente único, e se faz isto sem nenhuma pesquisa por trás, provavelmente abre-se uma armadilha de pensamento: quer dizer que os africanos são diferentes na medida em que os europeus os pensaram diferentes e os pensavam de uma maneira exótica; e, às vezes, essa afirmação da africanidade passa por coisas que me parecem que tem de ser questionadas. Por exemplo, uma das coisas que se servem como especial, como única para os africanos... sei lá... são tantos os estereótipos... mas um dos estereótipos é isso de uma sociedade fraterna e do lugar dos velhos, sempre respeitados. Não é verdade! Nós sabemos como, por exemplo, as mulheres mais velhas sofrem e são frequentemente acusadas de feitiçaria. Outra coisa pode ser essa sobre o espírito e a maneira como se pensa a relação com os mortos, aqui eu já penso que há coisas que são particulares. Mas não creio que os africanos sejam particularmente espirituais ou dados a uma relação que seja completamente única. Não sei por que os asiáticos não têm essa relação com os mortos, ou os europeus e os americanos.  O que estou a dizer é que o escritor africano, e eu quando falava da "desafricanização" falava em termos literários; o escritor africano tem que pôr a tônica no fato de ser africano e essa reivindicação passa pelo fato de que ele tem que escrever com qualidade, com a mesma qualidade que é exigida de um escritor europeu, americano etc. Ele não pode se apoiar nisso de "eu, por ser africano, vou ter alguma boleia de alguma coisa solidária" para repor toda a injustiça histórica que ele sofre. Numa palavra é isso.

RC & TM - Antonio Candido, um dos nossos maiores intelectuais, fala na necessidade da literatura, em alguns momentos da nossa trajetória, responder à sede de exotismo do consumidor europeu, fenômeno que acabou sendo catalisado pela mística da mestiçagem muito presente nas interpretações do Brasil. Como se só nós, os brasileiros, fôssemos mestiços. Isso pode entrar numa área maior que é a ideia de encontrar a mestiçagem apenas naqueles que compõem a CPLP ou com laços com a península ibérica. Você acredita nessa marca da mestiçagem como sendo ou como não sendo algo especial dos nossos países ou das nossas culturas?

Mia Couto - Eu acho que isso em que tu tocaste é muito interessante porque, ou nós abordamos esse assunto da mestiçagem só do ponto de vista racial, e aí estaremos num terreno perigoso porque se está pensando, quando se fala em mestiçagem racial, que existem entidades racialmente puras, quando eu duvido que exista alguma comunidade que possa dizer "nós não somos tão mestiços como os outros"; ou se trata a mestiçagem do ponto de vista cultural, e esse é um outro terreno, e os africanos são mestiços mesmo que se não o­ lhe para as relações com os outros de fora da África. Eles são mestiços profundamente porque, se você olhar a história de Moçambique, os bantos, quando chegaram, não encontraram um território vazio, encontraram um território que tinha gente e gente com outras características raciais, com outras características linguísticas e culturais etc. e mestiçaram-se. A mestiçagem não é uma coisa que começa a acontecer quando começaram as viagens dos europeus. Outra vez temos uma visão eurocêntrica, que os africanos adotaram para si mesmos. Quer seja do ponto de vista de comportamentos genéticos, do ponto de vista mais biológico, ou do ponto de vista cultural, essa mestiçagem está presente, eu diria, no mundo inteiro. Não é possível pensar a Europa, por exemplo, sem essas mestiçagens, que vêm muitas vezes de fora, mas também de dentro da Europa, entre europeus, que são bem distintos do ponto de vista cultural e até racial. Não se pode pensar Espanha ou Portugal sem que se olhe para os séculos em que os árabes estiveram lá e marcaram presença de todos os pontos de vista. Esse não é um assunto nosso, dos periféricos, é um assunto total, de toda gente.

RC & TM - Mas a gente pode falar que há alguns escritores, entre os quais destacam-se você e o Luandino, por exemplo, que explicitam essa mestiçagem na linguagem. Você reconheceria uma intenção nítida em expor essa mestiçagem?

Mia Couto - Eu reconheço. Não posso falar pelo Luandino, mas acho que aqui há uma intenção declarada, nós estamos aqui perante uma língua que se está casando, que está se mestiçando. A diferença é a intensidade com que ela está sendo feita nesse momento. Eu imagino o Luandino, naquele período que esteve na prisão etc... A maneira como isso sucedia naquele microcosmo e a maneira como, quer em Angola quer em Moçambique, de repente, milhões de pessoas se aproximaram da língua portuguesa, visitando-a, conquistando-a e namorando com ela. Esses são momentos irrepetíveis. Daqui a mais umas dezenas de anos, esta relação entre os que não vêm da língua portuguesa e o que já estão lá deixa de existir, porque, de uma maneira ou de outra, tudo indica, não estou fazendo futurismo, as pessoas vão falar português em Angola, como cada vez mais estão falando. Vai ser o mesmo em Moçambique. Vai haver um momento em que essas coisas se sedimentam, rotinizam e o que nós não podemos perder, penso eu, é este flagrante, nós estamos descobrindo uma língua na sua forja, na sua criação. É um momento muito feliz! Seria um pecado que não houvesse, não eu, mas Luandino e gente que retirasse disso o que pode ser tratado do ponto de vista literário, poético. Há aqui estes desencontros entre modos de ver o mundo, porque não estamos a falar só de línguas, de uma coisa que seja simplesmente técnica; mas como valor, conceitos, categorias que são de um povo pedem uma outra língua, que haja espaço, e que ela se rasgue e abra frestas para que se deixe passar essa luz do outro lado. Eu acho que é de fato um momento poético, essencialmente poético.

RC & TM - Em O outro pé da sereia, seu livro mais recente, você mexe num vespeiro: a questão dos afro-americanos e dos afro-brasileiros e a desconstrução de algumas imagens de África.

Mia Couto - Eu tive consciência de que estava tocando em um ponto realmente sensível. E eu procuro tocar nisso, digamos, numa margem que acho que é uma margem de respeito também, porque ali há um tratamento de caricatura dessas duas figuras, e o que me interessa não é exatamente pôr em causa essa mistificação só por si, mas mostrar como essa mistificação cria uma relação retorcida com os outros. As maneiras como os africanos, depois, podem aproveitar isso (e, no caso, se aproveitaram) para fazer negócio daquilo que era a procura de uma identidade perdida. Não quero deixar de pensar que isso possa ter importância para muitas comunidades africanas ou afro-americanas, ou afro-brasileiras, ou de origem africana de qualquer ponto do mundo; não quero· desrespeitar o fato de que muitas vezes essa apreciação de alguma coisa que se perdeu ou que não se encontra é dramática, é vivida de uma maneira quase trágica, portanto não quero desrespeitar isso. Agora, a linha de saída, aquilo que é perspectiva de futuro, muito provavelmente deve ser encontrada nos universos em que essas comunidades têm que reivindicar a pertença. E essa saída pelo passado, esse passo atrás por uma África, que é profundamente romantizada, não é a linha de saída, certamente.

RC & TM - Talvez mudando um pouco, mas pegando o gancho do Luandino... Numa daquelas brincadeiras do Luandino Vieira, ele disse que só conseguia criar quando estava preso. Partindo dessa ideia, como você, que é biólogo, viaja, tem uma agenda bastante complicada, tem os textos de intervenção, ou seja, é um intelectual participante, também cria? Como se dá essa criação, com essa agenda, com esse cidadão Mia Couto?

Mia Couto - Bem, se eu fosse preso ou se prendesse a mim próprio seria um pouco o percurso inverso do Luandino. Eu quase que só me vejo criando nesse caos, nessa dispersão. Às vezes que eu tentei dizer assim "vou parar e vou me fechar para escrever", não aconteceu nada. Então penso que essa maneira de fragmentar o meu olhar pelas coisas diversas que faço acaba por ser essencial, como se fosse uma resposta, e que, quando chega a noite, eu tenho que pôr uma certa ordem naquele caos e essa ordem é a minha escrita, não vejo outra maneira. E, por outro lado, tenho medo de parar para escrever porque até tenho medo de que isso seja uma espécie de envelheci­ mento, para não dizer morte, eu tenho esse medo.

RC & TM - Mia Couto, como é que você pensa a relação entre jornalismo e literatura?

Mia Couto - Eu uso o jornalismo, digo "eu uso o jornalismo" e não diria que uso a literatura, mas uso o jornalismo como uma disciplina, como um instrumento de intervenção e quando eu pretendo fazer uma intervenção que seja de ordem ética, política etc. penso que essa é a forma mais imediata, mais eficaz de fazer uma intervenção num momento. Quando eu faço literatura, não é que esteja num terreno diferente, quer dizer, eu tenho as mesmas posturas políticas, morais, etc., mas penso que seria abusivo fazer com que isso surgis­ se em primeiro plano e eu tomasse evidente que estou simplesmente inventando uma história para fazer valer uma ideia ou um ponto de vista político ou moral. Eu devo fazer exatamente o oposto, saber contar história, saber encantar, saber ter uma relação de fascínio com os outros e simplesmente essa relação de fascínio ter um poder sedutor tal, que possa mover as pessoas para pensarem de uma maneira mais produtiva, mais interventiva.

RC & TM - Você define a biologia como uma indisciplina, o jornalismo é, hoje, um compromisso do cidadão. E para a literatura, você já encontrou alguma definição?

Mia Couto - Eu quase que tenho medo de me definir em relação à literatura. É como se fosse uma espécie de paixão primeira, é como se tivesse ali uma entidade que, se eu me declaro e se declaro como meu primeiro grande amor, me leva por uma estrada errada, eu não sou mais eu. Acho que estou fazendo um jogo de mentira ao mesmo tempo em que digo que a literatura está lá e eu a visito nos intervalos. Não acho que isso seja verdade, só que não lhe quero dar essa confiança. Tenho um certo medo de me entregar só a isso. Também há razões práticas. Eu não me vejo muito feliz se não trabalhar com pessoas, se não repartir meu cotidiano com uma equipe, com gente que me aborrece inteiramente durante o dia, mas que depois me dá um grande prazer ver uma coisa feita em grupo, em coletivo. E a escrita não é exatamente isso, eu tenho que me isolar, não posso escrever em grupo, se calhar eu posso... já pensei nisso.. mas acho que não resulta muito.

RC & TM - Você disse há pouco que não dá muita confiança à literatura. E a nós, você dá? Aos professores de literatura e aos críticos? Você lê (se a resposta for negativa, nós ficamos mais serenas) aquilo que se escreve sobre você? Procura acompanhar? Enfim, repercute de algum modo?

Mia Couto - Sim, leio e aprendo com isso. Há relações que são relações, como no caso de vocês duas, com pessoas com quem tenho amizade e profunda admiração. Quanto ao trabalho acadêmico, que é feito sobre a minha obra, não é que eu tenha uma relação má com esse texto crítico, não. Eu tenho uma relação má com a minha própria obra, vocês viram que eu tenho uma reticência a dizer "minha obra", tive que ganhar fôlego, porque não vejo a coisa assim. Vejo que estou fazendo textos que são tentativas para chegar a alguma coisa. Agora, mesmo quando são críticas duras e que me poderiam afetar negativamente, eu acho logo que têm razão e procuro sempre pensar que existe· uma tentativa de diálogo construtivo com aquilo que faço. O que peço do texto crítico é que ele também seja criativo e que tenha, no terreno do texto acadêmico, da ciência literária, da ciência que acompanha a literatura, a mesma criatividade que eu tentei colocar no texto, de maneira que haja um diálogo que não passe somente pelo saber e pelas questões técnicas.

RC & TM - Ruy Duarte Carvalho, num seminário recentemente realizado na USP, afirmou que o escritor e o antropólogo, para evitar o risco de se limitar a uma autópsia da realidade, precisam inventar em cima dessa realidade. De certo modo, nós, os estudiosos, ao evitar a autópsia, inventamos coisas a seu respeito. Você acha que, de um modo geral, a crítica literária, seja no Brasil, seja nos países africanos, seja em Portugal, tem conseguido se aproximar do seu trabalho sem fazer autópsia simplesmente?

Mia Couto - Não sei. Digamos que há uma queixa, onde me dói a crítica... Mas há uma coisa que, às vezes, não me magoa, mas me põe a refletir, e inclusive esteve um pouquinho nessa necessidade de transição, que foi a primeira pergunta que tu fizeste, para me esqui­ var de uma certa pressão, que era essa coisa de olhar a minha escrita privilegiando o que seria o neologismo, isso do tom engraçado etc., como se eu estivesse fazendo uma coisa que era só do domínio do belo, do estético. Não sei se isto tem razão de ser. Pode ser que sim, mas não é isso que eu quero... quando invento a palavra, quando reconstruo qualquer pedaço de narrativa, quero mostrar que estou falando de uma certa coisa, e é isto que é importante, e não a maneira como eu a reinvento. Essa é uma das coisas, me parece, em que uma grande parte dos trabalhos acadêmicos se concentraram demasiadamente, nesse aspecto de superfície que não me agrada. É a única queixa que eu poderia ter sobre o texto acadêmico que é feito sobre mim. Quando inventam, eu acho ótimo, até porque não sei exatamente, falando daquilo que disse Ruy Duarte, mas a autópsia da realidade nunca existe realmente, porque quando colocamos a realidade na mesa de autópsia, nós estamos trabalhando sempre sobre uma outra coisa e ela nunca está lá deitada totalmente, ela sempre escapa. Desde que a chamamos realidade, ela não pode ser autopsiada, porque não existe completamente, como nós a pensamos. E esta capacidade que a própria realidade tem de ser esquiva, de ser fugidia, eu acho que é isso que nos toma presente uma espécie de relação ficcional, que não é só o escritor que tem, que todos nós temos com a vida. É o que chamamos estar vivo, e no fundo é o que nos motiva a criar histórias, a criar fofoca, a criar o pequeno episódio. O que eu quero nesta resposta, e um pouco no meu trabalho, é mostrar que se faz literatura não apenas quando se escreve, se faz literatura de outras maneiras, e nós todos temos uma participação como entidades criadoras da nossa própria narrativa que é a nossa vida.

RC & TM - Os nossos países passaram praticamente da oralidade para a cultura de massa, e a televisão tornou-se um elemento importante na vida das pessoas. Você, às vezes, é tentado pela imagem da tele­ visão, esse poderoso veículo?

Mia Couto - Acho que não é possível fugir a essa influência, não. Mesmo que a declaremos como infame. Eu não penso assim, mas há quem pense. A maneira como se constrói, como eu acho que a minha geração construiu o seu imaginário, mesmo quando escreve, é muito marcada pela imagem, mesmo que tenha sido no princípio a imagem do cinema, que teve um fortíssimo papel para repensar a narrativa também. No caso da televisão, eu acho que há ali um jogo, acho que o problema é se perder o espírito crítico quando se está a olhar para isso que nos é oferecido. Mas, por exemplo, na construção das novelas, que é o que mais está próximo da escrita, há coisas que são sugestões que podem funcionar. Há algo que não é novo, que na literatura já foi feito, que é a construção de histórias paralelas que se vão cruzando, e personagens que viajam de um cenário para o outro, de um mundo para o outro, que me parece que tem essa vantagem porque se está a ver fazendo, está a se assistir à história que se está se fazendo no momento. Isso pode ser bom para quem quer aprender a fazer, bem ou mal, há um piscar de olhos que mostra que "atenção!" isso não está já feito, está sendo redigido no momento e isso não é inteiramente mau, como uma escola, como um poder de sugestão. Eu, em suma, não vejo que seja só mau. Isso obriga a escrita depois a ter estratégias diferentes, modos de seduzir que são provavelmente mais imediatos e, às vezes, mais pobres, mas não penso que o escritor possa se colocar fora disso, não.

RC & TM - Você nunca escreveu para a TV nem para o cinema diretamente?

Mia Couto - Escrevi uma vez para uma coisa que era muito utilitária, que era uma campanha contra a SIDA, a que, aqui no Brasil, vocês chamam AIDS. Construí uma história, que felizmente já esqueci, porque era muito pobre. Portanto, foi numa visão muito utilitária: fazer a campanha educativa. Era preciso criar uma pequenina história, e fiz, assumindo que não sei fazer, e que outros iam pegar naquele texto e transformar num guião.

RC & TM - Mas para o teatro você escreveu, e o teatro é uma modalidade artística importantíssima em Moçambique. Seria bom você falar um pouco da importância dessa atividade artística lá, pois nós aqui não fazemos ideia do que ocorre.

Mia Couto - Desde quatorze anos faço parte de um grupo chamado "Mutubela Gogo", com quem tenho uma relação quase de dívida, porque eles me deram a oportunidade de confrontar a minha escrita com o efeito que ela produzia diretamente nas pessoas. Encontrei no teatro uma espécie de escola. Eu escrevia e entregava o texto, às vezes simplesmente era um apontamento caracterizando as personagens e um pedaço inicial, um núcleo da história. E eu depois ia assistir aos ensaios e às sessões em momentos muito especiais, em que convidávamos operários, trabalhadores, e via como aquilo que eu queria produzir como efeito dramático funcionava ou não funcionava. E isso foi fundamental. Acho que foi o momento mais importante no meu processo de aprendizagem de como escrever.

RC & TM - De certo modo foi aquela escrita no coletivo de que você falou que seria difícil, mas que ali aconteceu...

Mia Couto - Afinal aconteceu... Eu acho que aconteceu até dupla­ mente num outro sentido. Os próprios atores participavam no desenho dos personagens. E eu estava interditado de assistir aos ensaios e somente no fim eu aparecia para rediscutir o que eles tinham criado e isso foi um momento feliz... uma coisa muito, muito gratificante.

RC & TM - Vamos conversar um pouco sobre O outro pé da sereia. Como você o vê no conjunto da sua produção? Em que medida ele continua ou ele estabelece alguma ruptura com o conjunto da sua produção?

Mia Couto - Eu quis, não sei se consegui, mas eu quis que houvesse, não uma ruptura, é claro, é demasiado; mas que houvesse uma descontinuidade e a certa altura me vi a fazer alguma coisa que fosse diferente, que não fosse tão apegada à reconstrução, à construção de uma linguagem trabalhada. Eu penso assim: "pior do que não escrever um livro, é escrever esse livro demasiadamente, quer dizer escrever em demasia". Então, optei por ensaiar uma escrita mais fluida, menos trabalhada do ponto de vista do neologismo e que fizesse com que a história valesse mais por si mesma. Eu acho que é aqui que está a aposta. Obviamente que não consigo desligar-me de um certo tom poético, de um certo trabalho poético, mas isso não quis fazer também. Não sei se consegui não fazer ou fazer, mas quis investir nesta tentativa de escrever numa linguagem mais enxuta.

RC & TM - O seu leitor habitual sente isso, assim como pode perceber a questão do que já foi colocado como improvérbios, que têm uma força bastante grande ao longo do texto. Você trabalhou isso também?

Mia Couto - Eu acho que isso provavelmente já vinha, não é novo. Isso é um elemento de continuidade. O que eu quis ensaiar principalmente era algo que acho que representa uma transição. Eu quero saber como é que farei outras coisas. E como é que fazendo essas outras coisas eu me posso surpreender, posso ter uma relação com a escrita que não seja simplesmente de ter um caminho já confirmado e ir por esse caminho. Não me apetece isso, apetece-me pôr em causa a mim próprio. Portanto, é isso que eu estou ensaiando, não sei... e sinto que este livro, tal como outro que já estou trabalhando, me coloca numa situação que não sei o que vai ser, não sei exatamente... estou completamente perdido. Mas, como me agrada estar completamente perdido, eu não estou mal, sinto-me bem.

RC & TM - De um modo geral, nós, os estudiosos de literaturas africanas de língua portuguesa, observamos um diálogo vigoroso com a História. Escritores como Pepetela, como Arnaldo Santos, para só citar dois, confirmam essa tendência. Numa entrevista recente, você destaca a relação da literatura com o sonho, você fala na possibilidade da arte inventar um tempo. Em O outro pé da sereia, você também parte da História. Seria possível falar um pouco desse novo modo de convidar ao sonho? Porque eu penso que a história entra ali como um convite...

Mia Couto - Acho que nos livros anteriores já há uma relação com a História, mas com a História mais recente, digamos com a sua completa contemporaneidade. Eu escrevo Terra sonâmbula quando a guerra ainda estava a acontecer; eu escrevo A varanda do frangipani com o período de transição ainda a acontecer; eu escrevo O último voo do flamingo já olhando a guerra e o processo de pacificação, de uma maneira, digamos, olhando para trás. Eu acho que o fazer da História está tão presente, ele próprio é tão ficcional... Nós estamos vivendo em países que estão se inventando, estão nascendo e nós estamos nascendo com eles, e não é possível separar uma coisa da outra. E eu sou de tal maneira parte desse processo, desse parto, desse nascimento, que não me vejo existindo fora dele, só ali tenho dimensão. Portanto, a relação com a História não é só quando a tratamos como fato do passado, como fato que foi convertido em compêndio, mas nesse ponto de vista da relação com o imediato sempre existiu nos meus livros. Neste caso concreto, eu faço essa regressão, essa viagem ao passado porque esse episódio eu li, há um registro escrito desse encontro de D. Gonçalo da Silveira com o Imperador que me pareceu tão sugestivo e tão rico de mal-entendidos que eu pensei que podia ser usado para uma história que confrontas­ se os equívocos que permanecem completamente atuais na realidade moçambicana. Eu não tive a pretensão de fazer um trabalho histórico, não é um romance histórico, é um diálogo com um episódio da História simplesmente. Eu não sei fazer romance histórico, quer dizer, não sei se sei, acho que não sei. Não quero com este livro fazer passar gato por lebre, o que está ali é um jogo, é uma brincadeira com um episódio da História.

RC & TM - Nesse sonho e nessa História estão as mulheres. Elas estão presentes em seus contos, mas talvez esse seja o romance em que as mulheres aparecem com mais força, elas tecem a história. Não se­ ria esse um dado a torná-lo diferente dos outros romances?

Mia Couto - Para dizer a verdade eu não tinha pensado nisso. Por isso que é bom falar com gente que lê de outra maneira. Eu não tinha pensado nisso e, portanto, estaria agora inventando uma coisa qualquer para dizer que fiz com toda intenção; não, aconteceu. A ideia é que existe uma espécie de feudo dos homens que são os que convocam as cerimônias de ligação com os antepassados. Há um poder enorme que está nas mãos dos homens em Moçambique porque eles têm um predomínio, uma hegemonia enorme nesse tipo de trabalho, de oficio de médium. Acho que aqui há uma tentativa de inverter isso. Há um médium real que é o Lázaro Vivo que aparece ali, mas ele tem um papel quase caricato, quase secundário. De fato, todo o laço da história e a relação entre os vivos e os mortos e a noção de onde estão uns e outros é feita por personagens que são femininos, que são mulheres e que tal e qual, como uma delas que é a Mwadia, que tem nome de canoa, têm este poder de fazer a viagem de cruzar o rio, de ir de uma margem a outra. Só posso dizer que isso me escapou, fiz sem querer. Mas eu concordo contigo, nos contos, particularmente no "Fio das missangas", esse lugar das mulheres, como elemento fundamental da história, como elemento que tece a própria narrativa, já está lá, mas não nos romances. Acho que este inaugurou alguma coisa nesse ponto de vista.

RC & TM - Só para lembrar, em Terra sonâmbula, quem lia era o menino, agora quem lê é uma mulher. Essa passagem da leitura para a His­ tória, da leitura para a vida é feita sempre por aqueles que estão à margem?

Mia Couto - Isso sim. No Terra sonâmbula provavelmente eu terei pensado, é mentira dizer que pensei antes, mas teria pensado que há ali uma costura que se faz entre um menino que domina a escrita e um velho que está do lado da oralidade. Como se fosse uma sugestão de que para se encontrar essa identidade chamada Moçambique, porque no fundo Terra sonâmbula é essa procura, se tem que operar nessa costura entre a oralidade e a escrita; e o dono da escrita é o me­ nino e o dono da oralidade é o velho. Nesse caso, de fato, quem tem a chave, quem sabe o que está oculto são as mulheres nessa história.

RC & TM - Você se refere muitas vezes à questão de uma certa especificidade do tempo na cultura tradicional africana ou numa das culturas tradicionais africanas, destacando a ideia de continuidade. Você, aliás, em palestra na USP, em 1997, passou uma informação que repetimos sempre, indicando a fonte: a de que em muitas línguas do grupo bantu não há a palavra futuro. Talvez isso possa ser interpretado exatamente como uma projeção dessa ideia do tempo contínuo. Nesse romance, nós percebemos essa estratégia, há uma articulação muito bem feita entre os vários tempos da História de Moçambique.

Mia Couto - Sim, acho que aí já houve uma intenção, isso não foi completamente ingênuo. Inclusive a maneira de nomear os lugares, por exemplo, há um personagem que sai do "Antigamente" para "Vila Longe"; há outro que nasce num lugar chamado "Passagem". Tudo isso é intencional, para marcar que há ali viagens que se fazem entre entidades espaciais e temporais e não se percebe exata­ mente quando se está caminhando em direção ao passado ou ao futuro. Isso eu quis dizer, não foi ingênuo, como em relação às mulheres, não foi... Esse foi um tratamento que eu quis fazer, sim. Concordo com a tua análise.

RC & TM - Esse traço dificilmente seria encontrado na literatura inglesa, na literatura tcheca contemporânea. Nesse sentido, nós podemos identificar essa noção do tempo contínuo, essa presença viva do passado no presente, essa presença marcante dos mortos determinando a vida dos vivos como elementos que podem ser vistos como um traço daquela identidade esquiva e fugidia?

Mia Couto - Quando eu digo que essa identidade é esquiva e é fugidia não quer dizer que ela não exista e que não tenha traços que são identificáveis. Esses dois são particularmente identificáveis. Eu acho que a noção de tempo, não sei se pode dizer africana, mas na grande parte das culturas bantu com que tenho alguma relação, isso está presente, quer dizer, a ideia de um circular do tempo. O que pode ser posto em causa é que só ali existam. Provavelmente algumas comunidades índias do Brasil terão algo parecido, não sei, mas que é uma coisa característica, uma coisa de identidade, sim. Quanto ao que tu disseste, que é a relação com os mortos, na medida em que esses mortos não só estão presentes, mas comandam em larga fatia os destinos nossos, dos vivos, acho que esse é outro traço de identidade e não pretendo que se fuja disso. Não gosto que se tome isso exótico, mas acho que se tem que estudar de que maneira esses traços de identidade são, não pertença da tradição, mas pertença de uma dinâmica que está presente, que é atual, que é funcional e que briga com a modernidade, briga com a tradição. Acho que a maneira de pegar no assunto seria essa.

RC & TM - Você tocou nos vários lugares de Moçambique. De um modo geral, quando desconhecemos a realidade africana, tendemos a ver uma coisa homogênea, plana. Quando chegamos lá, começamos a perceber que há pelo menos uma diferença entre cidade e campo. Quando demoramos mais tempo, começamos a perceber que o campo está na cidade. Tudo isso que nós associamos ao universo rural, de certo modo, faz parte do desenho urbano das cidades africanas. Como é que você, africano, e, como você diz, um desequilibrista, com um pé em cada patrimônio cultural, vê isso? Você acha que a cidade abriga o campo e isso faz parte dessa dinâmica de trânsito?

Mia Couto - Eu não sei. Acho que isso tem que ser estudado com outros olhos também, porque se você for a Moçambique e perguntar como se diz "camponês", não existe... como se diz "rural"  "urbano", provavelmente as pessoas podem dizer que tem um nome para dizer cidade. Esse nome é emprestado a partir do africâner, do holandês e a maneira que eu conheço nas línguas do sul diz-se "doropa" vem de dorp, nome que se dá à cidade. Portanto há aqui uma maneira de olhar o espaço urbano como espaço dos outros. Ainda hoje Maputo é chamada Xilunguine, lugar onde se vive como os brancos. O que estou a dar são apenas sinais do ponto de vista linguístico. Os nomes que se dão às coisas como uma sugestão de que, se calhar, toda essa abordagem que fazemos entre as fronteiras do rural e do urbano tem de ser passada de um olhar mais dentro. E, se calhar, estou a fazer uma grande contradição, desdizendo tudo o que disse anteriormente, porque estou a fazer um apelo a um olhar que seja exclusivamente de dentro, mas não é isso, é um olhar que case as diferentes sabedorias. Mas falta-nos perguntar como isso é representado pelos próprios moçambicanos, como é que eles se representam nesse conjunto de coisas. Não conheço que haja estudos sobre isso e eu próprio também não sei exatamente o que é que são e como se mexem lá. Mas concordo contigo, a apreciação que se tem de imediato é que aquele urbano é muito pouco urbano, foi engolido, foi mastigado pela ruralidade. Sinais tão simples como o fato de as pessoas não andarem nos passeios; as pessoas andam na rua, o que significa que, provavelmente, o passeio é pensado como um espaço privado. O passeio não é um espaço público porque o camponês tem a visão de que o que é imediatamente adjacente à casa ainda é da casa do dono, digamos assim. Então há todo um conjunto de coisas que tem que ser repensado em termos de apreciação do tempo e do espaço; como é que a ruralidade de fato reorganizou o espaço urbano à sua maneira. E às vezes pensamos que é um grande caos, a desordem aos olhos das pessoas que vivem na cidade não tem desordem nenhuma. O trânsito está ótimo, ordenar mais só atrapalha.

NOTAS

1 Entrevista realizada em junho de 2006, em São Paulo, por ocasião do lançamento de O outro pé da sereia. Agradecemos a participação de Marcelo Bittencourt, da Rádio USP, e a Lisângela Peruzzo, pelo trabalho de transcrição e revisão do texto. Originalmente publicada em Veredas. Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, v. 1, p. 25-32, 2006.



[i] Doutora em Letras pela USP, é professora associada de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na mesma instituição. Foi professora visitante na Yale University, em 1996/1997, e na Universidade Eduardo Mondlane, entre 1998 e 2004. Tem dois estágios de pós-doutoramento na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique. Integra o conselho curatorial do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e o conselho editorial das revistas Via Atlântica e Mulemba. É autora de A formação do romance angolano e Angola/Moçambique: experiência colonial e territórios literários.

[ii] Professora titular sênior de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo, onde atua em cursos de graduação e pós-graduação. Tem artigos, livros e capítulos de livros publicados na Alemanha, em Angola, no Brasil, na Itália, em Moçambique e em Portugal.

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