Abdias do Nascimento: política, poesia e teatro

Soraya Martins Patrocínio*

A história de Abdias do Nascimento, ativista e ícone da luta contra a discriminação racial, confunde-se com as raízes do movimento negro no Brasil e no mundo. Dramaturgo, pintor, escritor, pensador, ator e, acima de tudo, militante ferrenho contra a exclusão do negro, o ex-senador da República é um herói vivo e sua trajetória contribui incisivamente para o contexto afrodescendente no Brasil. Em um momento de reflexão sobre si mesmo, Abdias afirma:

Tenho uma alma libertária e acho que herdei a força para brigar pelos direitos humanos e contra o racismo de minha mãe, que era brigona. O orgulho de ser afrodescendente vem inspirado do meu pai, mais tranquilo e de uma dignidade enorme (www.portalafro.com.br)

O engajamento com a causa negra não é somente retratado em sua obra, perpassa toda a sua vida que é dedicada a defender o povo negro, a propor a integração racial e a continuar a grande luta de libertação cujo maior líder é Zumbi dos Palmares.

O teatrólogo e dramaturgo

Abdias, como homem de teatro, formou e lançou os primeiros intérpretes dramáticos negros do teatro brasileiro, entre eles: Aguinaldo Camargo, Ruth de Sousa, Claudiano Filho, Léa Garcia, Haroldo Costa. Dirigiu e representou peças de Eugene Ó Neill, Lúcio Cardoso, Shakespeare, Nelson Rodrigues, Albert Camus, Joaquim Ribeiro.

A ideia de criar um teatro negro no Brasil surgiu quando Abdias viajava com um grupo de poetas brasileiros e argentinos para uma série de palestras pela América do Sul. Em Lima, no Peru, assistiu a uma peça chamada “Imperador Jones”, interpretado por um ator branco, argentino, pintado de preto. Segundo Abdias, naquele momento refletiu sobre o teatro e o negro no Brasil e decidiu usar o palco como instrumento de luta antirracista: “Eu já conhecia a fama que os nossos teatros tinham de excluir o negro. Nos teatros municipais do Rio e de São Paulo, negros entravam apenas para limpar o chão que os brancos sujavam” (www.portalafro.com.br).

Assim nasce o Teatro Experimental do Negro (TEN), criado para fortalecer os valores da cultura tradicional africana, para combater o racismo e para que os valores da personalidade do negro fossem respeitados no Brasil. Nacionalmente, a negritude foi empunhada pelo TEN desde sua fundação em 1944. Quer no plano artístico, quer no campo social, o TEN procurou restaurar, valorizar e exaltar a contribuição dos africanos à formação brasileira, desmascarando a ideologia da brancura que implantou entre nós.

A primeira denúncia do TEN teve como alvo a impostura dos chamados estudos sobre o negro. O sociólogo Guerreiro Ramos afirmava que o Teatro de Abdias foi, no Brasil, o primeiro a denunciar a alienação da antropologia e sociologia nacional, focalizando a gente de cor à luz do pitoresco ou do histórico puramente, como se tratasse de elemento estático ou mumificado. Esta denúncia é uma marca de todas as realizações do TEN, entre as quais o seu jornal Quilombo, a “Conferência Nacional do Negro” (1949), e o “I Congresso do Negro Brasileiro”, realizado em 1950.

Segundo Abdias, o TEN não nasceu para ser apenas uma reação contra a exclusão do negro no teatro. Ele foi imaginado como frente de luta, por isso tinha várias ramificações, vários setores a serem atingidos por uma ação transformadora de nossa realidade. Por isso, ele foi também uma luta da Frente Negra, mesmo tendo uma ideologia própria. Desse modo, “visava resgatar os valores perdidos no transcorrer da nossa história, para que os negros não continuassem apenas representando para a diversão dos brancos” (www.portalafro.com.br). A importância do TEN é assim definida por Abdias:

Não queríamos que toda a história do negro no Brasil, todo seu sofrimento, suas alegrias e tudo o que ele construiu continuasse figurando de forma acidental na cultura brasileira. Queríamos uma participação organizada, viva, dinâmica e criativa, com olhos para o futuro. (www.portalafro.com.br).

Dramas para negros e prólogo para brancos propõe-se a cumprir o objetivo fundamental do TEN já exposto anteriormente. O livro é uma antologia que contém 7 peças: O Filho Pródigo, de Lúcio Cardoso; O Castigo de Oxalá, de Romeu Crusoé; Auto da Noiva, de Rosário Fusco; Além do Rio (Medea), de Agostinho Olavo; Filhos de Santo, de José de Morais Pinho; Aruanda, de Joaquim Ribeiro; Anjo Negro, de Nelson Rodrigues; O Emparedado, de Tasso da Silva e Sortilégio, de Abdias do Nascimento.

Sortilégio foi encenada, pela primeira vez, no dia 21 de agosto de 1957, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e contou com a atuação do próprio Abdias no papel principal. A peça denuncia a hipocrisia do mundo branco e a opressão que o negro sofre nesse mundo que o marginaliza. Isso porque, para uma sociedade racista por essência, o preto serve só para carregar saco no cais, quebrar pedra debaixo de sol e dizer: “Não sinhô... sim sinhô...”. (1983, p. 153). O drama do herói de Sortilégio tem suas raízes na infância, época em que era chamado de “tição” e apedrejado por seus “coleguinhas” brancos. Assim, nasce a história do preto Emanuel que, formado em direito, renegou Exu, esqueceu os orixás, desonrou a Obatalá e se tornou um “preto de alma branca”. Mascarou as próprias raízes na tentativa de sobreviver e ser respeitado numa sociedade marcada pelo preconceito.

Ambientada numa espécie de “terreiro”, a peça tem uma atmosfera de fantasia e mistério, que é acentuada por alguns elementos que compõem o ritual de despacho do candomblé: defumador, charutos, cachaças, farofa e azeite de dendê. Contudo, a peça não leva para o palco a fotografia etnográfica do candomblé ou da macumba, nem a simples reprodução folclórica dos rituais negros. Os “pontos”, músicas para evocar uma entidade, por exemplo, são “puxados” com fervor e aparecem bem contextualizados e necessários, nos momentos fundamentais da cena.

Ponto de Jubiabá

Bis- ô-ô-ô-ô Jubiaba

Ô-ô-ô-ô Jubiaba

Bis- Não vem mais aqui no terreno

Pai de santo que foi guerreiro

Bis- Para o reino de Olorum

Ele foi junto com Oxum

(1983, p. 196).

O momento em que esse ponto é “puxado” representa o ápice da peça: Dr. Emanuel aceita ser sacrificado por ter desprezado a religião do seu próprio sangue. É o momento que o coro evoca Oxum e o reino de Olorum, que é um lugar dos sonhos, uma Pasárgada, onde o negro não escuta atrocidades e encontra-se livre do preconceito.

Abdias poeta:

Sempre fomentando a discussão em torno do racismo e do preconceito, o líder negro escreveu, entre outros títulos, Sortilégio (mistério negro) (1979), Dramas para negros e prólogo para brancos (1961), O negro revoltado (1982), Axés do sangue e da esperança (1983), O genocídio do negro brasileiro (1978), Sitiado em Lagos (1981), Orixás: os deuses vivos da África (1995), e O Brasil na mira do pan-africanismo (2002).

Em Axés do sangue e da esperança, por exemplo, o eu poético suplica a libertação do negro, denuncia a “terra que rouba o suor, a carne e os ossos, a humilhação, as mãos calosas vazias da justa retribuição” (1983, p. 9). Também expõe, de maneira realista, a perpétua (equivocada) posição social do negro — o negrinho menos digno e a negrinha à disposição do prazer do branco —, que revela uma dolorida inferioridade.

Em seus versos há sempre um clamor por justiça: o sujeito-lírico deixa transparecer o seu desejo de que todos escutem as vozes sufocadas das senzalas e os batimentos de cada coração de negro, ao lembrar dos grandes nomes que lutaram contra a opressão e a injustiça, como Zumbi, João Cândido, Luiz Gama, entre tantos outros.

Em “Padê de Exu Libertador”, poema de abertura, o eu lírico invoca Exu, que é o princípio da existência individualizada e também o princípio dinâmico da comunicação. “(...) imploro-te Exu / plantares na minha boca / o teu axé verbal / restituindo-me a língua / que era minha / e ma roubaram” (1983, p. 10). Em seguida, pede o hálito de Exu, denunciando a urgência de oxigênio (de vida) para que “os negros possam estar vivos, morrendo” (1983, p. 10). É importante ressaltar que esse poema de abertura do livro não ocupa tal lugar por acaso. Ele está como elemento indispensável à inauguração do ritual que cerimonializa as atividades da comunidade-terreiro. Pois, falar de ritualidade é dizer de uma das marcas típicas da cultura negra. E é fazendo o seu padê de Exu que o poeta “abre os trabalhos”, rituais para que a sua negra verdade de homem negro possa surgir no xirê de sua vida de andanças, “feito de terra incerta e perigosa” (1983, p. 2).

Em “Mãe”, relata a força da mulher negra, que não se entrega às lamentações e tem força para lutar contra a indiferença e a discriminação. O poema, de uma grande riqueza metafórica, exalta a beleza, os seios grandes, a cor e o perfume da pele negra, e a textura dos braços que abraçam com ternura. Também relata os soluços de sensibilidade ferida, as denúncias de um negro revoltado e o amor generoso pelos seus iguais. No final, o poeta parece mergulhar no ventre da vida e no sonho de liberdade e esperança.

Já em “Autobiografia”, o eu poético derrama seu inconformismo e sua revolta perante a discriminação racial, ao relembrar seus antepassados: “Eito que ressoa meu sangue / sangue do meu bisavô pinga de tua foice / foice da tua violação / ainda corta o grito de minha avó” (1983, p. 26). Logo afirma que, na cidade de Franca, sua esperança foi engendrada, a adolescência interrompida e que sua indignação só aumentou. Essa afirmação é um ato de desabafo de um negro cansado, “sem pleito / eleito ao peito / da teimosa esperança / em que me deito” (Idem).

No poema “Luciana” se delineia o amor à mulher amada. Uma sensualidade tépida, que perpassa pelo poema, desvela a sensibilidade do amante em seus doces apelos à amada: “Vem Luciana pálida / que ao teu luar/beijarei teu lunar” ou, então, “Vem Luciana pálida / genuflexo beijarei teu sexo” (1983, p. 37) Nesse poema de amor, onde o poeta fala de sexo, as rimas se sucedem prazerosas nos volteios de danças e contradanças do ato de amor... Amplexo. Afinal, já nos primeiros versos, o poeta fala de um escafandrista que mergulha em profundas águas enluaradas...

Em “Prece a Oxum”, o eu poético pede perdão por ter sido obrigado a falar a língua imposta pelos europeus “civilizados”, por evocar nomes profanos e não o nome da divindade de sua verdade e crença. Num relato indignado, denuncia os senhores da acumulação que em sua blasfêmia selvagem sacrificaram milhões de crianças negras, ignoraram sua cultura, seus costumes e, sob a hipocrisia do que chamam de “sincretismo”, obrigaram-no a se transformar num indivíduo diferente (“preto de alma branca”).

Assim, nos versos de Axés do Sangue e da Esperança, há uma revalorização da condição afrodescendente, na medida em que se exorciza a raça negra de todos os estereótipos que foram introduzidos desde a colonização, os quais fixaram no imaginário coletivo a ideia de que o negro representava tudo o que havia de ruim e negativo, de feio e mau. Logo, há uma reinvenção do discurso sobre o negro: o engajamento de Abdias do Nascimento vive e agita-se pelo poder de suas palavras, invenções, explosões com que compõe seus poemas e cantigas. O mais longevo líder negro do século XX é, sem dúvida, um fundamental militante no combate à discriminação racial no Brasil. Sua história se confunde com as conquistas sociais dos negros nos últimos 60 anos. Pois, através da política, do teatro e dos seus versos, conseguiu promover uma autoconscientização do negro a respeito do seu valor e da sua importância, para que assim pudesse conquistar novos espaços sociais que lhe eram negados pela cultura dominante.

* Graduanda em Letras pela UFMG

Referências:

NASCIMENTO, Abdias. Axés do Sangre e da Esperança. Rio de Janeiro: Rioarte, 1983.

NASCIMENTO, Abdias. Sortilégio. In : Dramas para negros e Prólogo para brancos. Rio de Janeiro: Editora do Teatro Experimental do Negro, 1961. Entrevista com Abdias do Nascimento disponível em www.portalafro.com.br.