O protesto do poeta 

Um desses dias, Catí convidou-me para ir a uma sessão mediúnica, no centro espírita que ele frequenta. Bem maior que a solidariedade do cunhado era a curiosidade de voltar a uma sessão espírita. Lá se vão exatamente 40 anos que virei as costas para o espiritismo, logo depois que um tal Edvaldo, incorporado pelo Dr. Fritz, tentou me curar da obesidade à custa de colheradas de sargaço pisado em jejum. Argh! Preferi o materialismo, para desgosto do meu pai, um kardecista convicto da cientificidade do espiritual.

As sessões mediúnicas sempre foram um mistério em minha adolescência. Meu pai dizia que nelas circulava muita carga magnética, por causa da frequência de espíritos malévolos e zombeteiros, prejudiciais aos menores de mente fraca. Para ver as maravilhosas manifestações dos espíritos, restavam-me as sessões familiares do "evangelho no lar", sempre às noites de quarta-feira, nas quais meu pai lia e predicava sobre o "Evangelho Segundo o Espiritismo", e minha mãe recebia o Caboclo Pena Branca, um irmão de luz sempre muito atento ao nosso desempenho escolar e às nossas companhias. Vez por outra, o Velho me levava às sessões do Dr. Pedro, um juiz negro aposentado que morava na Rua da Glória, bem perto do Godinho, nossa casa. Impressionava-me o desempenho do filho do dono da casa, um jovem negro e gordo como eu, cego, que incorporava o Caboclo Tibiriçá e outros guerreiros da aldeia. Falava uma língua embolada. Ficava sempre muito intrigado porque o caboclo do filho de Dr. Pedro falava fino e o caboclo de minha mãe falava grosso. Isso era por conta do mistério.

Bem verdade que o Velho fez tudo para que eu frequentasse a União Espírita Baiana, mais conhecida como a sessão de Aurelino. Aos domingos pela manhã, havia sessões de doutrinação para jovens, longas e complicadas aulas sobre a Dialética do Espírito, de Hegel, ministra das por um estudante universitário com cara de professor de matemática. Até que era interessante ouvir falar de um Deus racional, que duvidava ser mesmo divino, e para ter certeza disso precisou criar o seu oposto, nós matéria imperfeita, para, depois de tanta história, cair na real que é Deus mesmo. Mas a doutrina do domingo de manhã sofria a concorrência irresistível das pré-estreias dos cinemas Tupi e Jandaia. Imperdíveis! Graças a elas, tínhamos uma semana de vantagem nas conversas com os colegas de sala sobre as façanhas de Audie Murphy e Randolph Scott. Talvez por isso eu não me tenha formado um bom espírita.

Agora entendo que minha curiosidade resulta da falta de boas sessões mediúnicas, aquelas em que o copo anda, as cadeiras levitam e as pessoas se transportam. Estas, sim, eram experiências parapsicológicas!

***

Aceitei o convite de Catí. No carro, ele falou-me da sessão de Seu Aloísio.

– Fica no Dique do Tororó, bem em frente aos Orixás do Tati Moreno.

– Sei, sei, na Usina!

– Não, não, um pouco mais pra lá.

O Dique Pequeno, assim chamava minha Mãe. Ainda me lembro como se fosse hoje. Era sempre muito excitante quando ela dizia:

– Hoje vamos fazer uma visita a Dona Jandira.

Era uma senhora educadíssima. Recebia-nos a velas de libra. Servia sempre umas bolachinhas de goma que derretiam na boca. Magrinha, com um cabelo comprido em trança, era a cara de Iemanjá, tal como via nas imagens e nos retratos! Ela era de candomblé e enfermeira. Sei que tinha uns caboclos na vida dela. O que dava um toque clandestino às visitas era a especial circunstância que esta senhora tinha um filho com um tio meu, um primo da rua, cujo nome eu era proibido de pronunciar em qualquer conversa com os meus outros primos. Isso dava um gosto especial de jogar gude e fura-pé com ele.

Em um clima de curiosidade e de mistério, lá estava eu de novo, mais de cinquenta anos depois, no Dique Pequeno, na sessão de Seu Aloísio. Era uma sessão muito conceituada, frequentada por alguns dos mais respeitados médiuns da Vasco da Gama, do Rio Vermelho de Baixo e adjacências. O mais famoso deles era Seu Nonô das Gordas, aliás, Waldenor do Espírito Santo. Era um negro caprichoso, muito direito, que ostentava um saber profundo sobre o espiritismo. Diziam até, que ele aprendera francês para ler Alan Kardec no original. Era um tipo magro, meio careca, de rosto retilíneo, de uma qualidade meio cabo-verde. Seu apelido era autoexplicável. O motivo de sua fraqueza era muito singular: a atração irresistível por senhoras gordinhas.

Já fora contador de uma grande loja de modas na Avenida Sete de Setembro. Chegou mesmo à condição de interessado, quase sócio. Perdeu o emprego por faltar com respeito com a cunhada do patrão, Dona Zilá, uma senhora bem provida que manuseava com maestria os figurinos franceses. Foi sua perdição. Sempre teve um tesão irresistível pelas gordinhas, e logo por aquela que entendia tão bem a língua do Grande Codificador do espiritismo. Lá se foi a carreira de empresário do Seu Nonô.

Também na contravenção não prosperou. Chegou a ser contador-chefe de uma fortaleza de bicho na Baixa do Bonfim, da inteira confiança de seu Delson. Mais uma vez procurou ousadia com Dona Linda, uma rechonchuda senhora que, na mesa branca recebia Joana Darc, e no Engenho Velho incorporava uma barulhenta Obá. Por desinformação, ele incorreu em dois agravantes. Não sabia que no mundo do jogo de bicho, o respeito a um apostador que vai receber o seu prêmio era sagrado. Pior, não sabia que a Obá de Linda tinha um chamego com o Xangô de Seu Delson. Fatal, quase leva um tiro. Até hoje se arrepende de ter passado a mão na bunda daquela senhora. Hoje, resignado, ganha sua vida como contador da loja de ferragens de seu Carmo, na Conceição.

Na sessão de Seu Aloísio, tudo isto se transforma. De Nonô das Gordas, motivo de deboche em toda a Vila América, vira o médium que recebe Castro Alves, Victor Hugo e outros espíritos franceses que conviveram com o Codificador.

Outro fenômeno é o Professor Albergaria. Este sim um homem estudado, brancão, doutor de tese e diploma, fluente e escrevente na língua do Codificador. Apesar do currículo admirável, dedicou a sua vida à gaiatice e ao escárnio geral. Não bebe, não fuma, não fornica. O seu prazer sempre foi verbal. Observa e divulga todos os defeitos alheios e faz disso a sua etnografia. Os confrades acreditam que o professor saiu do sério por causa do convívio com o espírito que ele recebe. Ypiranga, esta é a entidade. Em vida fora um negão, torcedor fanático do auri-negro baiano, amigo de Isaltino, grande craque ipiranguense. Enchia o rabo de cachaça quando o Ypiranga ganhava, e quando perdia também. De tão fanático, terminou trabalhando para Seu Cristóvão, da Transportadora Ypiranga, que mantinha um ônibus funerário para o transporte gratuito de defuntos e para a correspondente aquisição de votos. Por força desta opção profissional e clubística, Ypiranga terminou embarcando e desembarcando mais de mil defuntos. Absorveu assim todas as exclamações emocionadas.

– Tão bom, Deus levou!

– Já vai tarde!

– E agora, quem vai dar um nome a meu filho?

– Mocréia!

– Um bom marido, mansinho, mansinho...

– A viúva tá liberada!

– Me perdoe meu bem, não precisava fazer isso!

Quanta dor, quanta carga negativa! Só podia ser o que é, um espírito zombeteiro, perturbador de todas as manifestações mediúnicas na sessão de Seu Aloísio. Ele não poupava nem Castro Alves.

***

Neste dia, depois de preces e concentrações, Seu Nonô entrou em trabalho mediúnico. Pálpebras cerradas, voz embargada, o espírito identificou­se: era Antônio de Castro Alves em poesia e verdade.

Catí fez a maior festa.

– Castro Alves! Você namorou uma parenta de papai, Dona Brasília, da Rua do Bângala! Em sua memória, ela ficou invicta, moça velha, e criou dois meninos pobres, Dodô Gordo e Dodô Pequeno.

– Irmão, no plano em que eu estou não posso mais reviver estes sentimentos carnais. Isto retarda a minha caminhada de luz. Disse o poeta.

–Quá, quá, quá, qual é Cecéu? Brochou?!

Eis que surge Ypiranga à mesa, tossindo e fungando. E todos sentimos o bafo da saudosa aguardente Jacaré, a mais cara e a mais procurada.

– Que moral de jegue é essa Cecéu? Continuou Ypiranga.

– Você continua encostado em duas senhoras muito respeitadas: Dona Conceição Condé e Dona Mira Braga. A primeira guarda a sete chaves uma mecha do seu cabelo, e a outra gasta tinta com a sua biografia. Pais de família, fechai as portas que espírito de Don Juan continua a passar!

– Oh espírito da maledicência! Não vês que jamais importunaria senhoras de tão vasta cultura e de reputação ilibada. Mais a mais, não seria o segundo em qualquer paixão. A primeira destas senhoras incorpora um germânico mofino que fala Tupi. Pasmem! A segunda incorpora o Jorge Amado, companheiro de letras mundanas, que quase me convencia a frequentar a Dona Flor. Não, absolutamente não! Apaixonada de amigo, para mim é homem.

Seu Aloísio interveio, providencialmente, para evitar que o Ypiranga monopolizasse o diálogo com o Poeta.

– Irmão poeta, a que vi estes aqui? Todos acreditávamos que vossa caminhada já estivesse mais avançada, na direção do seu progresso espiritual. Porque não aceitastes uma nova encarnação? Muitos acreditavam que estivesse reencarnado em um professor da Faculdade de São Lázaro, também poeta, de basta cabeleira branca. Irmão, é preciso desligar-se da vida passada para seguir o seu caminho de luz!

– Irmão Presidente. Das minhas paixões já acalmei meu coração; da minha tuberculose, já me aliviei; mas da luta pela redenção da raça negra não consigo desligar-me. Tanto que lutei pela abolição e hoje vejo o povo negro empobrecido, rebaixado e revoltado. Devo continuar o meu apostolado!

– Qual é poeta. Você é mesmo um descompreendido. Você é branco, do século dezenove e abolicionista. A negrada de hoje prefere ouvir falar do Cão que de abolição. A bola hoje está com o Movimento Negro Unificado. Não há mais lugar para poetas condoreiros. Os poetas de hoje são quilombolas. Você precisa ler Edson Cardoso e Jônatas Conceição.

– Afinal, que defeito tem a minha poesia? – falou o poeta através da garganta rouca de Nonô.

– Quanto à minha pessoa, nada fiz que envergonhe a minha vida – continuou. Sou branco como o meu avô, o Periquitão do Sertão da Bahia. Republicano, revolucionário, lutou lado a lado com os negros pela Independência da Bahia. Fui fiel ao seu legado político. Jamais cedi à tentação de acomodar-me à monarquia. Não me troco pelo Machado, que vocês tanto incensam, um passivo diante da escravidão e da monarquia. Acho muita graça em vocês, quando tentam identificá-lo como negro, o que ele em vida jamais pretendeu. Fui e sou abolicionista, o que em meu tempo era sinônimo de socialista. Que mal há nisso, do que me acusam?

Fronte molhada de suor, veias latejantes nas têmporas e no pescoço, pálpebras cerradas e mãos trêmulas, tudo em Nonô demonstrava a emoção que lhe transmitia o poeta incorporado.

– O poeta rodou a baiana. Comentou, comportado, Ypiranga.

Mais uma vez o presidente da sessão interveio para acalmar os espíritos e para devolver a palavra ao poeta manifestado

– Respeito muito a luta contra o racismo de hoje em dia e os esforços para reparar todos os seus efeitos. Mas exijo respeito para a luta de nossa geração que viveu sob o regime da escravidão e insurgiu-se contra ela. Denunciei o sequestro dos filhos do seio das mães, os castigos corporais, os assassinatos, as humilhações. Cantei o direito à vingança das vítimas do cativeiro. Não vos quero enfadar com os meus poemas, mas, por favor, escutem algumas estrofes do meu Bandido Negro:

Trema a terra de susto aterrada...

Minha égua veloz, desgrenhada,

Negra, escura nas lapas voou.

Trema o céu... ó ruína! Ó desgraça!

Porque o negro bandido é quem passa,

Porque o negro bandido bradou:

Cai, orvalho de sangue do escravo,

Cai, orvalho, na face do algoz,

Cresce, cresce, seara vermelha,

Cresce, cresce, vingança feroz

– E disse mais:

Somos nós, meu senhor, mas não tremas,

Nós quebramos as nossas algemas

Pra pedir-te as esposas ou mães.

Este é o filho do ancião que mataste,

Este – irmão da mulher que manchaste...

– E concluí:

Trema o vale, o rochedo escarpado,

Trema o céu de trovões carregado,

Ao passar da rajada de heróis,

Que nas éguas fatais desgrenhadas

Vão brandindo essas brancas espadas,

Que se amolam nas campas de avós.

Cai, orvalho de sangue do escravo,

Cai orvalho na face do algoz

Cresce, cresce, seara vermelha,

Cresce, cresce, vingança feroz.

Com palmas compassadas, em gesto bem debochado, ao estilo de seu médium, o professor Albergaria, Ypiranga contra-atacou:

– Qual é Cecéu! Nem eu, nem o movimento negro comemos essa bola. Você recitava esses seus versos para moçoilas rendadas e jovens engravatados que jamais viram um guerreiro quilombola. Para que serviram os seus versos, ó poeta dos escravos?

Apoiado na beira da mesa, Nonô levantou-se, e de sua boca saíram palavras do poeta:

– Tenha paciência, senhor Ypiranga, se não sabes para que serviram os meus versos é porque ignoras a história. Estes meus versos moveram a ação de moçoilas e janotas, que esconderam os escravos que arrombaram porteiras e mataram feitores, e os conduziram a quilombos seguros. Aqui mesmo nas terras da Bahia, estes meus versos animaram os do Clube Carijé, da Vila da Cachoeira, a apoiarem o levante dos cativos do Outeiro Redondo, na Freguesia de São Félix, em 1887. Estes são fatos e datas, senhor Ypiranga! Quilombos, eu os conheci. Fui o primeiro a cantar Palmares:

Nos altos cerras erguido,

Ninho de águias atrevido

Salve! - país do bandido!

Salve! - pátria do jaguar

Verde serra, onde os Palmares

- Como indianos cocares

No azul dos Colúmbios ares,

Desfraldam-se em mole arfar!

 

Salve! Região dos valentes

Onde os ecos estridentes

Mandam aos plainos trementes

Os gritos do caçador!

E ao longe latidos soam,

E as trompas de caça atroam...

E os corvos negros revoam

Sobre o campo abrasador!...

 

Palmares! A ti meu grito!

A ti, barca de granito,

Que no soçobro infinito,

Abriste a vela ao trovão

E provocaste a rajada,

Solta a flâmula agitada,

Aos urros da marujada,

Nas ondas da escuridão!

 

De bravos soberbo estádio!

Das liberdades paládio,

Tomaste o punho do gládio,

E olhaste rindo para o vaI.

"Surgi de cada horizonte,

Senhores! Eis-me de fronte!"

E riste... O riso de um monte!

E a ironia de um chacal!

 

Cantem eunucos devassos

Dos reis os marmóreos paços,

E beijem os férreos laços,

Que não ousam sacudir...

Eu canto a beleza tua,

Caçadora seminua,

Em cuja perna flutua

Ruiva a pele de um tapir!

 

Crioula! O teu seio escuro

Nunca deste ao beijo impuro!

Fugidio, firme, duro,

Guardaste-o pra um nobre amor.

Negra Diana selvagem,

Que escutas, sob a ramagem,

As vozes que traz a aragem,

Do teu rijo caçador

 

Salve! - Amazona guerreira!

Que nas rochas da clareira,

- Aos urros da cachoeira

Sabes bater e lutar...

Salve! - nos cerros erguido -

Ninho, onde em sonho atrevido,

Dorme o condor... e o bandido,

A liberdade... e o jaguar!

– Nada mais tenho a dizer. Vou subir - disse o poeta - que o meu médium está muito cansado. Peço apenas justiça para a minha poesia. Julguem cada tempo no seu tempo, e guardem todos os tempos na memória do povo.

***

Terminada a sessão, pairava um grande peso sobre todos nós. Nonô suava muito e era reconfortado por sua Gorda atual. O professor Albergaria continuava a fazer as suas gracinhas:

– Imagine, Diana Selvagem! As neguinhas de hoje são todas periguetes. Só querem saber do arrocha!

Ninguém tinha mais paciência para deboches.

Por um instante recriminei-me por nada ter dito ao poeta. Ia dizer o quê? Pior seria prometer providências a um espírito tão ilustre e não poder cumprir. Não, isso não! É atraso de vida, na certa. Ainda assim, pensei em algumas ações que poderiam levar estes versos libertários às grandes massas. Quem sabe, se convencêssemos João Jorge a adotar a poesia de Castro Alves como tema de um carnaval do Olodum? Melhor seria se a Rede Globo fizesse uma minissérie de televisão sobre a vida heroica do Poeta. São possibilidades...

Tocam estridentes os celulares.

Catí, são as nossas Rádio patroas! Vamos embora!

 

(Histórias de Negro, p.161-178)