Conta de somar

No Mercado do Ouro, o dia começa bem cedo. Um aboio cortante ecoa na escuridão.

Ê mingau! De ta-pi-ó-ca!

A humidade e o lusco-fusco da madrugada dão dramaticidade ao pregão de Tia Constança, uma negra reforçada, de cara bolachuda e de coração também imenso. Nunca deixou um parente africano sem um caneco de mingau. E não era qualquer mingau. Era o famoso mingau de Constança. Segunda-feira era mungunzá1, terça-feira era mingau de milho, quarta-feira era arroz doce, quinta­ feira era de carimã, e sexta-feira era de tapioca. Sábado, pra variar, ela trazia beiju molhado, coberto de coquinho ralado, enrolado na folha de banana. Nesse dia, ela trazia também um café preto em um caburé2.

Em volta do panelão de Constança formava-se logo uma rodinha. Eram negros de ganho, estivadores, canoeiros do porto e alguns capoeiras valentões. Os caixeiros portugueses mandavam os moleques de recado comprar furtivamente as jarras de mingau.

Ê mingau! De ta-pi-ó-ca! Apregoava a Tia.

– Ê, lá vem o Ambrósio Bico Mole!

Instala-se um silêncio de missa de sétimo dia. O mulato Bico Mole chega cheio de bossa. Chinelo bico fino, calça de fustão da tropa de linha3, bonezinho de feltro e um escandaloso dente de ouro. Pior é que todo mundo sabe como ele ganhou aquele dente. Ele era espia de polícia, mais precisamente do inspetor de quarteirão do Pilar. Delatou um alevante4 de nagôs que se reuniam no Caminho Novo. Deu-se de amizade com uma criatura do grupo e descobriu a preparação de uma fuga para o quilombo5 da Ilha de Maré. Era um sujeito perigoso. Chegou procurando conversa, jogando verde para colher maduro.

– Alô malta, quando é que tem um amalá no quilombo?

Todo o mundo desconversou, ninguém deu ousadia. Algumas pessoas murmuraram:

– Dedo duro!

– Caguête6 de polícia!

Ele ficou tão escabriado que saiu de fininho na direção do cais. Passado o perigo, voltou a animação do bochicho. Em meio a risadas Tia Constança deu uma gaitada gostosa. Com a mão na boca, meio sorrindo, ela exclamou:

– Merda, merda pura!

– Agora vocês vão ter que me contar. Todo mundo está rindo, menos eu.

Para atender à curiosidade de Pé-de-Vento, sisudo capoeira da turma de Besouro, Tia Constança dispôs-se a contar o sucedido.

Era a história da esperteza do Velho Satu, um tio-da-costa, capitão do canto de carregadores7 nagôs; na Preguiça.

Por falar nele, ei-lo que aparece em carne e osso, na rodinha do mingau.

Era um homem forte, alto, passado dos 50, rosto comprido, marcado por três lanhos de cada lado. Mancava da perna direita, o que não comprometia o seu passo forte de carregador de ganho. Agora um homem livre, de cabeça erguida e sorridente, o Tio Satu escolhia os carretos e fazia preços para todos os patrícios de nação nagô. Seu orgulho de liberto era que nenhum deles carregava branco na cacunda8. Aguentar ovo de branco no pescoço, isso nunca mais. Eles não eram montaria.

– Êim parente9, esse povo quer saber a história do pote de merda!

– Ói parente, quem conta um conto aumenta um ponto!

– Não vou tirar nem por, parente, vai ser tudo tim-tim por rim-tim.

 

E começou o relato.

***

Tio Satu vinha juntando uns cobrinhos10 há mais de três anos para comprar a sua alforria. Era o ganhador que chegava mais cedo no cais da Preguiça. Carregava de tudo com firmeza e com cuidado. Pela qualidade de seu serviço, ganhava muitas gratificações. Certa vez chegou a ganhar cem mil réis por ter carregado toda a louça e cristais para o palacete de uma baronesa, em Santa Clara do Desterro. Carregou até uma pianola para a casa de um judeu que morava perto do convento de Santa Teresa. Todo este dinheirinho era escondido em um pote de barro, enterrado no quintal da casa do senhor, na Rua Direita da Saúde.

O que mais lhe doía no cativeiro era entregar o resultado do seu trabalho ao Major Bandeira, seu senhor. Este era um sujeito miserável. Pertencia a uma raça de traficantes da Costa d' África, gente impiedosa e muito ignorante. O fruto do seu trabalho sustentava a vagabundagem de Zezito, filho único do tal Bandeira, um eterno estudante de Medicina. Era do tipo flautista. Jamais passou do segundo ano. Na Faculdade nunca punha o pé. Sua vida era a flauta, o violão, a cachaça e as francesas da Rua de Baixo. Começou a dar sinais de tísica, o que fez o Bandeira aumentar a pressão sobre Satu. Ele queria sempre mais e mais. Satu, muito esperto, justificava sempre o jornal que entregava ao senhor pelo seu baixo rendimento, devido ao seu defeito físico. Por ser da Costa d' África, aproveitava para falar errado, fingindo ser um boçal11. Assim, nunca entendia direito uma ordem, e quando prestava conta do serviço, falava tão embolado que atrapalhava os ouvidos do senhor.

– Ai sinhô! Nêgo de pouca valia. Nêgo puxa de perna. Tomba prum lado, tomba pro outro, trupica, e lá vai, os carrego cai, quebra as coisa, os povo castiga nêgo. Serviço bom vai pros outro!

– Tá bom nêgo, não tenho tempo para aturar a sua lenga-lenga. Fique certo que estou de olho em você, preto descarado! Se estiver me roubando, vai levar uma surra de cipó-caboclo de tirar o couro!

Seu Bandeira seguia os rastros do Tio Satu, à cata de dinheiro escondido. Era como um gato faminto atrás de um rato.

Quando o pote de Satu, cada dia mais cheio, chegou ao montante de um conto de réis, justamente o valor médio de uma alforria12 de escravo no ganho, arte do cão! o Bandeira achou o pote enterrado no fundo do quintal. Tranquilamente tirou todo o dinheiro. Afinal, dinheiro de escravo era dinheiro do senhor. Enterrou-o de novo, e passou a ostentar um sorriso sacana de vitória.

Satu não sabia o que fazer. Com a cabeça pegando fogo, procurou a Constança e pediu conselho.

– E agora? Não posso pedir satisfação nem queixar na polícia. Que droga, Satu é cativo!

– Parente, dê um ebó13 pra Xangô14, tome um banho de folha15 e esfrie a cabeça.

Constança mesmo fez todos os aviamentos. Preparou um banho de dandá, arruda, vence-tudo, tira­teima, espada de Ogum e água do alevante.

Recuperada a tranquilidade, Satu voltou pra casa com a cara mais abestalhada que conseguiu armar. Procurou o major e foi logo dizendo:

– Sinhô, nêgo muito burro!

– É claro nêgo. Todo nêgo é burro!

– Sinhô, nêgo não saber conta. Sinhô, um conto com mais um conto, bota junto ou bota separado?

- Que história é essa de conto, nêgo? Onde você viu um conto de réis, nêgo?

- Sinhô, nêgo não viu conto, nêgo pergunta: um conto com mais um conto, bota junto ou bota separado? Difíci, difíci pra cabeça de nêgo.

– É claro que é difícil. Vocês da Costa d' África são todos umas bestas quadradas, muito embrutecidos, por isso são escravos!

E sorriu mais uma vez vitorioso. Rapidamente o major pensou com os seus botões: – o Satu devia ter mais um conto de réis escondido em outro lugar e, se não encontrasse o dinheiro que ele havia roubado, não colocaria a outra quantia no mesmo lugar. Ele, sim, era um homem inteligente, um senhor de escravos! Ia ganhar dois contos na maior moleza.

– Nêgo, você é ignorante mesmo. Um conto com mais um conto, bota junto pra virar dois contos, entendeu seu energúmeno!

– Sim sinhô, Deus te ajude. O sinhô tá ensinando nêgo a fazer conta.

Major Bandeira não teve dúvidas. Pegou o conto de réis, devolveu ao pote e enterrou-o no mesmo lugar. No dia seguinte voltaria para lucrar 100%.

Durante a noite, Satu fez o que tinha que fazer. Desenterrou o pote, recuperou o seu conto de réis. Para dar uma resposta ao senhor inteligente, espremeu-se todo e obrou dentro do pote, tampou e enterrou de novo. Fez mais. Chamou toda a turma do Mercado do Ouro para estar atrás do muro dos fundos do quintal da Saúde.

De manhã, bem cedo, como de costume, Bandeira bateu um pratão de feijão16 com fato, bebeu uma caneca de café preto. Da cozinha mesmo tomou o caminho do quintal para recuperar o que acreditava ser seu. Abaixou-se com dificuldade, cavou, cavou, até descobrir a tampa do pote. Destampou-o. Estava tão ávido que nem reparou no conteúdo. Meteu a mão até o fundo e com força. A merda subiu pelo seu braço até quase o ombro!

– Uh, uh!, fiau, fiau! Quá, quá, um conto com mais um conto, quanto é Bandeira?!

A vaia foi monumental. De trás do muro a galera do Mercado do Ouro vibrou. Que inteligência daquele arrogante senhor! E todos se embrenharam pela roça do Hospital Santa Isabel, seguiram pelo Rio das Tripas, até as Sete Portas, onde festejaram com uma talagada o "conto do Satu".

***

A rodinha do mingau exultou. Todos riram muito. Pezão, um capoeira gaiato, chegou a mijar nas calças. Todos tomaram mais uma caneca por conta de Constança. Pé-de-Vento, no entanto, nascido no dia de São Tomé, perguntou incrédulo:

– E ficou nisso só, Bandeira ficou de braços arriados?

– Claro que não, respondeu Constança.

Lá mesmo, nas Sete Portas, Satu passou o dinheiro para a guarda de Constança. Escondeu-se em um dos caçuás17 que esvaziara quiabos na feira, e partiu para o quilombo da Engomadeira. Lá, um filho de Xangô era sempre bem-vindo.

O Sinhô Bandeira ficou virado no Cão. Ainda melado, brandia o cipó-caboclo, em busca do seu escravo para surrá-lo. Chamou a polícia, chamou os vizinhos, ofereceu até 50 mil réis para quem trouxesse o Satu. Não se sabe bem se pelo feijão­com-fato, se pela raiva, ou se por castigo dos orixás, Bandeira sentiu-se mal, ficou todo torto e dormente do lado direito. O povo da rua disse que foi o vento que passou! 18O imprestável do Zezito nem se mexeu. Ficou chorando na cabeceira do pai. Constança não cruzou os braços. Procurou Seu Pânfilo, um homem letrado, da turma dos abolicionistas. Ele seria o advogado de Satu. De boa conversa, ele convenceu o Zezito a aceitar um conto de réis pela alforria de Satu. Afinal, este era um valor muito bom por um escravo velho e capenga. Pai e filho partiram para Feira de Santana, uma vila de bons ares, para o tratamento do derrame de um, e da tísica. E assim Satu pode voltar para seu canto de Preguiça, liberto e altivo.

– Sujeito porreta! – conclui Pé-de-Vento.

 

1Mungunzá – mingau de milho branco, com leite de coco, também chamado de canjica no sul do país.

2Caburé – vasilha de barro para café.

3Tropa de linha – exército. Permanência no vocabulário da organização militar colonial, em que a primeira linha de combate era a tropa regular: a segunda linha eram as tropas de milicianos civis comandados por civis: e a terceira linha, as ordenanças, cumprindo tarefas de polícia.

4Alevante – expressão popular de levante, rebelião, revolta. Os socialmente inferiores e os governos deveriam sempre abaixar a cabeça perante os poderosos. Quando alguém era muito subserviente era chamado de corcunda, pois nunca mais conseguia erguer a cabeça. Quando alguém encarava o superior de frente, era um ato de rebeldia.

5Quilombos – aldeias resistentes de negros que fugiam dos locais de cativeiro.

6Caguete – delator.

7Canto de carregadores – lugares na cidade em que se reuniam os carregadores de ganho. Cada etnia africana tinha seu canto. Cada canto tinha um capitão, que negociava preços e serviços com os fregueses.

8Cacunda – cangote, corcunda. Tipo de transporte urbano individual que usava o homem como montaria. Sobreviveu a expressão popular de alteneria: - Ninguém monta em meu cangote ou na minha cacunda!

9Parente – tratamento usual que os africanos dispensavam entre si, substituindo o pronome da 1ª e 3ª pessoa do singular. Por exemplo: - Como vai parente?, - Cuidado parente!, - Parente vai lhe ajudar.

10Cobrinhos – moedas de cobre, dinheiro miúdo.

11Boçal – africano que não falava português, em oposição a ladino escravo que falava português.

12Alforria – carta de alforria. Documento atestando a libertação de um escravo, obtido mediante compra ou por doação..

13Ebó – oferenda a um Orixá, na tradição ioruba.

14Xangô – orixá da justiça na tradição ioruba. Simboliza a justiça. Historicamente, Xangô foi o quarto rei e organizador do Império de Oió, na Nigéria.

15Banho de folha – banho de purificação com folhas e ervas cozidas, que integra os rituais do Candomblé.

16Bater um prato – comer muito e com avidez.

17Caçuá – grandes cestos de cipó, colocados um de cada lado de um animal, jegue ou burro.

18Passar o vento – derrame cerebral.

(Histórias de Negro, p. 18-31)