Porque houve Cam

o esposo bem-amado

e Eloá

 

porque o deserto

o verde

e os dóceis campos

da terra de Ararat

 

porque bantus

zulus

congos

angolanos

minas

cafres

antigos

agomés

nagôs

gegôs

e tapas e sentys

e hauçás

porque o mar e os tumbeiros

e as parcas

porcas

no porão

a terra verde

a madeira brasa

e aqueles homens alvos

como luas

nuas

 

porque rebenques

argola tronco

e asa fraturada

e grito aprisionado

e os dentes

martelados

e a cirurgia fria

dos alicates

unhas descarnadas

e o arrancar a pele

 

a sangue-frio

a morte entre formigas

assanhadas

a sombra de uma cruz

abençoada

por que houve ladinos

e mães pretas

e virgens

estupradas

ventre alerta

porque houve rosauras

houve isauras

e mestiças

e olhares azougados

e seios mutilados

porque havia cana

e o comércio

dos ingleses

porque houve o ferro

e o fogo e a faca

a lâmina da faca

viva e acesa

e o banzo

 

porque houve outrora um rei

chamado Ganga-Zumba

e o imperador

Zambi

da Tróia Negra

terra escondida

do sabiá perdido

Numância

reino

onde se repartia

e houve amor alimentando

luta

e as mãos unidas

fortes

tanto sangue

porque se plantou carne

e nasceu ouro

porque se plantou gente

e nasceu seiva

de povo

e canto

porque a infante e santa e bem-amada

terra

e a semente

na encosta verde-sonho

braço de bronze ferro aço

e coração

ternura antiga

acalanto

lundus

calango

semba

porque houve a nação

negra

do Quilombo

a raça

é.

Na terra pindorama

espinho e casco

duro

e sobrecarga

e mais-valia

e senzalas

de longa anestesia

a raça

é.

Pingente

doente

sofrente

carente

mas brava

mas forte

mas f!lha do norte

da morte

escrava da música

folclore

e fazenda

de muitos cabtais

e festa do povo

exotismo ano novo

mulata no mapa

pivete na praça

e rei que incomoda

no olímpico estádio

os leões de casaca

e cartola

e a bola

rola

frenética

histérica

o grito

unge o mito

porque há um rei

de coroa

abstrata

e tênue

capa

de papel

cruel

entre sons de violões

e zabumbas

a socos dos pés

a cantiga migalha

nas casas de Baco

e o suor do sovaco

a escorrer sempre mais.

 

Silêncio, Musa!

já não choras mais.

 

A raça dorme

o sábiá não canta

os dedos repartidos

mãos abertas

calos perenes

sangue arrebatado

a vida torta

pesado fardo

asfáltico

ou rural

a espera de uma porta

a veia frágil

o veio fraco,

branco.

 

A raça dorme

tradição de velhos ancestrais

a raça dorme

e já não sonha mais

o rei de outrora

não existe

mais

e Tróia

colina sitiada

agoniza

eterna

ao som

de velhos

carnavais.

(Dionísio Esfacelado, 1984, p. 9-13).