O coletivo Quilombhoje nasceu em 1980, com o objetivo de "discutir e aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura", segundo é informado em seu site. A ideia é, especificamente, incentivar a leitura de autores negros, bem como a produção literária desses autores, difundir conhecimentos e informações; e estimular e desenvolver estudos sobre literatura e cultura negra. Para falar do Quilombhoje, é importante contar a história dos Cadernos Negros.

Em 1978, a partir de sua experiência no Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), localizado no bairro do Bixiga, em São Paulo, e no Jornegro, jornal produzido pela Federação das Entidades Afro-Brasileiras do Estado de São Paulo (FEABESP), Cuti ‒ pseudônimo do ficcionista, poeta, dramaturgo e ensaísta Luiz Silva ‒, idealizou, juntamente com o advogado Hugo Ferreira, os Cadernos Negros. Cuti narra, em entrevista ao Programa Convida1, do Instituto Moreira Salles, que, em conversa com Ferreira, pensaram, a princípio, em elaborar um livro de literatura com textos de pessoas negras ativas no CECAN e de colaboradores do Jornegro. Ferreira teve a ideia, então, de intitular esse livro de “Caderno”, em alusão aos cadernos utilizados por Carolina Maria de Jesus, já que ela havia falecido em 1977. O nome também marcava a vivência dos escritores negros, que utilizavam majoritariamente cadernos para produzir sua literatura, uma vez que muitos não tinham máquina de escrever.

Assim, após Cuti convidar os escritores e reunir diversos poemas, foi organizado e impresso o volume 1 dos Cadernos Negros, com a promessa de que seria preparado o volume 2. Os recursos financeiros para a publicação do volume 1 vieram dos organizadores e autores. Seu lançamento ocorreu em dois momentos distintos: primeiramente, no 1º Festival Comunitário Negro Zumbi (Feconezu), em Araraquara. O segundo foi realizado na livraria Teixeira, dias depois, para um público de 50 pessoas. Desde 1978, os Cadernos Negros vêm sendo publicados ano após ano, ininterruptamente, divulgando, em anos ímpares, poemas e, em anos pares, contos.

No processo de elaboração dos Cadernos, os idealizadores e os autores das edições reuniam-se para tratar dos próprios textos ou de obras de escritores já consagrados, como Lima Barreto ou Solano Trindade. A partir desses encontros, formou-se, em 1980, o grupo Quilombhoje. Sua constituição inicial contava com Cuti, Oswaldo de Camargo, Abelardo Rodrigues, Paulo Colina, entre outros. Já Hugo Ferreira deixou de compor o grupo por ser considerado pelos colegas um panfletário, pois seu desejo era que os Cadernos Negros fossem mais acessíveis ao grande público, não chegando somente aos intelectuais. A ideia do nome “Quilombhoje” veio de Cuti:

Ela é um neologismo que inclui a atualidade do Quilombo, a noção de nossa retomada histórica e também ela inclui a palavra bojo, ou seja, a nossa literatura está no bojo de um movimento maior, que é o Movimento Negro Nacional. (ROWELL; CUTI, 1995, p. 901 apud SILVA, 2021, p. 11)

A princípio, as atividades do Quilombhoje eram separadas do processo de publicação dos Cadernos Negros. Porém, de 1980 a 1983, o grupo recebeu outros integrantes, jovens negros com muita disposição de escrever, que desejavam ajudar na elaboração das edições, como Miriam Alves, Oubi Inaê Kibuko, Jamu Minka, Márcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro (os dois últimos são os responsáveis pelo Quilombhoje e pela coordenação dos Cadernos até os dias atuais).

Em 1983, os antigos integrantes do grupo, favoráveis a um enfoque literário nos textos das publicações, e não em questões de militância ‒ o que os levava a divergir da perspectiva dos novatos ‒, pediram a Cuti que escolhesse entre os velhos e os novos componentes. Cuti, então, decide pela perspectiva ideológica dos novos integrantes, rompendo com os demais, que decidiram deixar o grupo. A partir do número 5 dos Cadernos, em 1982, o Quilombhoje assumiu integralmente sua organização e publicação. Em 1993, Cuti deixa o grupo por questões pessoais e outros integrantes também se retiram do coletivo.

A partir de 1999, restaram, da formação original, apenas Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa, mas outros integrantes chegam para compor a base. Esmeralda é jornalista, pesquisadora da literatura afro-brasileira e escritora. Passou a integrar o Quilombhoje em 1982; além desse coletivo, participa do Flores de Baobá e desenvolve o projeto Afroleituras ‒ Autores e Estudantes na Roda de Conversa. Além disso, tem destacada atuação acadêmica em congressos e com publicações. Márcio também passou a compor o coletivo em 1982, coordenando, juntamente com Esmeralda, o grupo e a publicação dos Cadernos Negros. É organizador de obras como Frente negra brasileira e Jovem afro – Antologia literária.

O surgimento dos Cadernos Negros e do Quilombhoje, como explicitado, teve o objetivo de incentivar a produção, a divulgação e a leitura de autores negros brasileiros. Com a elaboração e o desenvolvimento desses projetos, foi possível inserir no mercado editorial autores que as grandes editoras, balizadas por suas linhas editoriais, não tinham interesse em publicar. Segundo Oliveira e Rodrigues (2016, p. 97), “[p]ara publicar e ser visível, o autor negro, muitas vezes, precisa também construir seus circuitos editorais”, e é nessa perspectiva que os Cadernos Negros e o Quilombhoje atuam. O projeto

foi fundamental para o agrupamento dos produtores da chamada literatura afro-brasileira, possibilitando críticas e discussões no intuito de romper com os valores estéticos vigentes, que tratavam a produção do negro brasileiro como algo menor, resultando no que o autor [Cuti] denomina como “autocensura”. (OLIVEIRA; RODRIGUES, 2016, p. 101)

A publicação de diversos autores, seja como contistas, seja como poetas, colaborou para que muitos deles escrevessem e lançassem obras autorais, inclusive romances, como salientam Oliveira e Rodrigues (2016). Dos escritores publicados, podem-se mencionar

Abelardo Rodrigues, Abílio Ferreira, Ademiro Alves (Sacolinha), Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães, Henrique Cunha Jr., Lande Onawale, Lia Vieira (Eliana Vieira), Miriam Alves, Paulo Colina, Ramatis Jacino e Waldemar Euzébio Pereira (OLIVEIRA; RODRIGUES, 2016, p. 101-102).

Ao longo dos anos, além dos Cadernos Negros, o grupo tem publicado variadas obras, como Reflexões sobre a literatura afro-brasileira (ensaios), Gostando mais de nós mesmos (em parceria com o Instituto AMMA Psique e Negritude), obras infantis, como Orukomi: meu nome (de Esmeralda Ribeiro), biografias, antologia literária e duas edições em inglês dos Cadernos Negros, bem como organizou o videodocumentário Bailes. Também faz parte da atuação do Quilombhoje a estruturação de rodas de poema e do Sarau Afro Mix (idealizado em 2002 por Ribeiro, o projeto busca dialogar com o público, incentivando a participação de leitores e autores comuns, trazendo à cena, além do texto poético, música, dança e minipalestras).

Para se sustentar financeiramente, o grupo conta com recursos próprios, não tendo apoio governamental, patrocínio privado ou subsídio de ONGs, excetuando o auxílio financeiro para projetos pontuais. Os recursos advêm de seus colaboradores e das vendas de suas publicações em sua livraria virtual e em livrarias parceiras em algumas cidades brasileiras e da venda de obras de editoras parceiras na loja virtual do Quilombhoje.

Nota

1https://ims.com.br/convida/cadernos-negros-quilombhoje, acesso em: 28 maio 2023.

Referências

INSTITUTO Moreira Salles. Disponível em: https://ims.com.br/convida/cadernos-negros-quilombhoje. Acesso em: 28 maio 2023.

OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de; RODRIGUES, Fabiane Cristine. Panorama editorial da literatura afro-brasileira através dos gêneros romance e conto. Em Tese, Belo Horizonte, v. 22, n. 3, set./dez. 2016.

QUILOMBHOJE. Disponível em: https://www.quilombhoje.com.br/site/quilombhoje. Acesso em: 26 maio 2023.

ROWELL, Charles H.; CUTI, Luiz Silva. (Cuti) Luiz Silva: uma entrevista. Callaloo, v. 18, n. 4, mar./jun. 1995. p. 901-904.

SILVA, Andressa Marques da. O Quilombhoje, o grupo Negrícia e o debate pioneiro sobre o ensino de literatura afro-brasileira nos anos 1980. Cerrados, Brasília, v. 30, n. 57, dez. 2021. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/39551/32665. Acesso em: 28 maio 2023.

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Fontes de consulta

COSTA, Aline. Um pouco de história de cadernos negros. Disponível em: https://issuu.com/mbantu/docs/historicotresdecadas. Acesso em: 27 maio 2023.

CUTI. In: literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/212-cuti. Acesso em: 27 maio 2023.

ESMERALDA Ribeiro. In: literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/244-esmeralda-ribeiro. Acesso em: 28 maio 2023.

MÁRCIO Barbosa. In: literafro. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/304-marcio-barbosa. Acesso em: 28 maio 2023.

PALMARES Fundação Cultural. Quilombhoje: espírito de quilombo nos dias de hoje. Desde 1980 colocando mais africanidade na literatura brasileira. Disponível em: https://www.palmares.gov.br/?p=53521. Acesso em: 29 maio 2023.

QUILOMBHOJE. Disponível em: https://www.quilombhoje.com.br/site/. Acesso em: 26 maio 2022.

Links

Cadernos Negros: a literatura nacional como difusão de consciência

JORNEGRO: Edições 2,3 e 4

Esmeralda Ribeiro: a vida e a trajetória da autora afro-brasileira

QUILOMBHOJE: Um tambor expressando as vozes literárias negras

Acervo UNICAMP: Esboço de análise dos Cadernos Negros

Site oficial Cuti