Em busca do ser essencial

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Discorrer sobre a relação “Eu-Tu” e a relação “Eu-Isso” é, inevitavelmente, navegar pela construção cognitiva do filósofo-religioso austríaco Martin Buber (1878-1965). A relação sujeito-sujeito, constitui o mundo do “Tu”, e a relação sujeito-objeto constitui o mundo do “Isso”. O mundo do Tu, pode estar exemplificado na relação Eu-Tu e é configurado com o ser inteiro, ao contrário da relação Eu-Isso. O Eu-Isso envolve a relação entre um ser e uma parte ou elemento do outro, enquanto que o Eu-Tu consiste no relacionamento pleno entre os dois seres, englobando em sua amplitude os sentimentos e ideias de ambos. Para Buber, a autenticidade do homem reside em sua inserção na relação eu-tu e não na relação eu-isso. 

A vida verdadeira está no encontro direto e autêntico entre os sujeitos, afinal este encontro capacita-o a tornar-se inteiro. Nesta relação direta não pode se interpor nem pensamentos e nem ideias, mantendo assim a “pureza” entre estes sujeitos. Porém, não significa que seja fácil, pois, muitas vezes, nos relacionamos com o outro despersonalizando-o e retirando deste encontro o que pode acontecer de imprevisto e inusitado. No “Eu-Isso” embora haja uma relação, ou um relacionar-se, o outro é visto e vivenciado como um objeto de manipulação. É negado a ele a chance de ser abordado diretamente como pessoa. Não há permissão de se conectar com a mesma parte da outra pessoa e nem de buscar o aspecto pessoal e especialmente humano desta. O que ocorre é um contatar “Eu-Isso” congelado, que não flui, e nunca poderá caminhar para o “Eu-Tu”.

Em termos de expressão de alteridade, é oportuna a aproximação entre o “Eu-Tu” como poética da relação, assim como é possível compreender o “Eu-Isso” como a política do ego. O poeta mineiro Aciomar de Oliveira, em seu livro Todas as vozes (2014), já oferece no título da referida obra um portal de entrada para versos que destacam a pluralidade como o rico conjunto de interações humanas, sendo elas convergentes ou divergentes, conforme for a vastidão do espectro ideológico e atitudinal. Nesse sentido, destaque especial para o poema “Eus”, no qual a voz poética de Aciomar de Oliveira se remete a uma construção de identidade, marcada por tensões de envolvimento conflitivo. A crise de identidade é a prova dos nove:

“Teu/esse eu condenado/a sair de si/ateu/esse eu cético remorrendo eu/esse eu contraceptivo/esse eu menstruado/fluindo essências de mim/tão mórbidas/minhas estranhas entranhas/repelidas de mim/meu inseto eu/teu refugo de novo sou eu/nós diluídos somos ninguém/somos mais outros e menos eu/mais outros que eu mesmo não sou/teu esse eu remoendo eus”.

À luz dos referidos versos, na atitude “Eu-Tu”, a pessoa entra em relação, deixa-se impactar, deixa-se atravessar pela presença viva do outro, seja este outro uma pessoa, uma situação, uma obra ou um ente qualquer. Há nesse instante uma dimensão intensiva, não mensurável ou redutível à temporalidade, espacialidade e questões objetivas. O mundo do tu não tem coerência no espaço e tempo: é um campo de forças, de presença, de vitalidade. Não pode ser apreendido ou aprisionado em representações: sempre escapa. Não se reduz à percepção: é intenso, vivo, pulsante. Sempre ressurge diferentemente, em contínua transformação.

A atitude “Eu-Isso”, por sua vez, leva a experienciar de forma objetiva as situações. O mundo do isso ou da objetividade ordena o real, transformando-o em habitável e reconhecível. Para Buber, a melancolia do destino humano é que o “Tu” se torna, irremediavelmente, um “Isso”, o que é necessário para a compreensão do processo vivido. Não se consegue manter sempre a atitude “Eu-Tu”, pois o homem é incapaz de habitar permanentemente no encontro. A existência é pautada pela alternância entre as atitudes “Eu-Tu”, “Eu-Isso” e seus desdobramentos. O eu-poético de Aciomar de Oliveira se coloca constantemente na posição que Buber denominava de “estreita aresta”, buscando representar a instabilidade e a insegurança próprias do existir.

Kafkaniano, o poema de Aciomar assume um ar inseticida, fazendo com que o ego presente no texto se enrijeça severamente, conforme demonstra a seguinte passagem poética: “meu inseto eu/teu refugo de novo sou eu/nós diluídos somos ninguém/somos mais outros e menos eu/mais outros que eu mesmo não sou/teu esse eu remoendo eus”. Segundo Alírio de Cerqueira Filho, em Saúde das emoções (2014), “o ego é aquele que não é”. Todos esses sentimentos egoicos “não são”; “estão”, porque são ausência do exercício dos valores essenciais que somos. O “estado” é impermanente, transitório. O orgulho é a ausência do valor do ser humilde. O egoísmo é a ausência de altruísmo. A ansiedade é ausência de serenidade. Quando estamos fixados, tímidos no exercício do “ser”, estamos vivendo o irreal do “não-ser”.

O ego é apenas o “não-movimento” do Ser Essencial. Quando o Ser Essencial “não age”, o ego que não é “se situa”. Utilizando o palavreado de Aciomar de Oliveira, quando o “eu” se encontra condenado a sair de si, o autoconhecimento como operação existencial deixa de ser alimentado. Cabe compreender o autoconhecimento como movimento de discernir, buscando perceber em nós os sentimentos egoicos, tratando-os como emoções transitórias, possíveis de ser controladas e transmutadas por meio do desenvolvimento dos sentimentos permanentes, originados no Ser Essencial. “Nós diluídos somos ninguém”, alerta o poeta mineiro. A densificação do ego e, consequentemente, um bloqueio das energias do Ser Essencial, só prejudicam a identificação com os sentimentos essenciais originários da energia do cuidado como expressão, ao mesmo tempo, sublime e básica da alteridade solidária.

 

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.

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