Sete: diásporas íntimas – livro maduro de Lande Onawale!

Cidinha da Silva*

Escrever textos críticos é sempre um risco, gosto de corrê-lo. Substituo a primeira versão do comentário sobre o livro de contos de Lande Onawale por esta, revista à luz de conversas com o autor, posteriores à leitura (dele) do texto. Notem que em momento algum o intitulei “resenha”, são apenas apontamentos (sentimentos) de uma leitora encantada com uma obra e sua leitura do livro.

Ogun iê! Lande Onawale, artífice da ferramenta-palavra na forja do vivido.

Quando cheguei ao segundo conto de Sete: diásporas íntimas, achei que não conseguiria interromper a leitura por nada, tão arrebatada estava. Mas ao concluir o terceiro texto, parei, pois estava sem fôlego e tinha olhos embaçados. Precisei me refazer. Encontrei um autor maduro, de linguagem apurada, com elasticidade textual definida por muita, muita poesia. Mas isso não deveria ser surpresa. Os filhos de Roji que conheço, parecem ter dois corações. Desbordam amor por onde passam e nos levam na correnteza. Lande não é diferente. É um guerreiro do amor quem se apresenta nesses textos.

“A bailarina”, conto de abertura, dói profundamente. Mas a narrativa proporciona tempo e espaço para que o leitor processe a dor e a indignação, gerados por expediente racista tão corriqueiro. Os incautos, especialmente, têm tempo narrativo para compreender a discriminação racial sofrida pela bailarina.

“Por sobre as estações” começa assim: “No banco da praça, Jorge ancorou a sua nova manhã de angústias. Seus brios de homem, porém, eram donos dos ares, aves agourentas de asas cortantes que atravessam o tempo e os séculos.” Eu lia e imaginava o pássaro sombrio de Iyami sobrevoando a cabeça de Jorge. À frente, no texto, Jorge rememora o dia em que ele e Regina se conheceram dentro de uma chuva de confetes. São apenas as primeiras das belas imagens que darão contorno ao texto até que ele exploda em tensão e violência do ciúme machista, da posse e do desespero. As pistas do que está por vir estão no primeiro parágrafo, mas é um conto bom que nos engana e o autor nos surpreende.

“A partida” inicia falando de trens e de seu antigo movimento, enferrujado pelo progresso, até introduzir a partida de um membro de família enraizada no campo, que iria para um grande centro, em busca de vida melhor. Até chegar à definição da partida do filho que se aventura, feita pela mãe: “Ademais, isso de ver filho partir é como parir; perdemos tanto da gente, pro pouco que o mundo ganha... O mundo não dá valor...” Aos poucos, o sentimento de Justino vai aparecendo, enquanto a compreensão da responsabilidade aumenta. Lembranças das palavras do pai, falecido durante a infância: “– Não é só a terra que compramos dos brancos que a gente tem que honrar e fazer crescer mais do que eles fizeram. O sobrenome que pegamos deles também...” Notem bem, não herdamos, pegamos. O autor visita o amadurecimento forçado de Justino diante da perda do pai. E isso pesa no momento do ritual de passagem para o grande centro. Na hora de mergulhar definitivamente no mundo adulto, Justino volta a ser criança. A criança que não pôde ser: “E ele foi ficando mais moço, mais novo a cada passo e, na soleira da porta, desabou num choro repentino e incontido, que deixou os irmãos atônitos. Com um gesto, a irmã barrou os outros ainda na varanda e Justino foi sozinho, se apoiar nos ombros da mãe.”

Não é assim que a vida nos pega? Sabemos que somos capazes, mas crescer dói tanto. Por que é que tem que ser assim? Não sabemos, mas é assim que é! Justino nos dá uma lição singular que talvez não seja percebida como merece: ele sabe ser amado! Só os que sabem sê-lo, permitem, em momentos cruciais, a exposição de fragilidades. Notem bem, fragilidade não é sinônimo de fraqueza. Fragilidade é o desvelamento daqueles sentimentos preciosos e delicados que doem dentro da gente, resguardamos por máscaras e muros. Só os fortes se permitem a fragilidade.

E será que os homens negros apreenderam as lições do amor recebido de maneira mais eficaz do que nós, mulheres negras? É possível que sim. Eles são amados ao longo da vida (por nós, pelo menos), enquanto nós recebemos doses tão diminutas de amor, que não nos acostumamos a ser amadas. Damos e acolhemos de maneira desmesurada e quando o amor se nos apresenta, não sabemos o que fazer, às vezes, sequer o reconhecemos.

É animador observar um autor fora dos padrões heteronormativos abordando a sensibilidade masculina e isso, mais uma vez, se vê no conto “Veridiana.” O amor não é aquela coisa sublime e inalcançável inventada pelo romantismo. O amor é a oitava superior de um dia duro de trabalho na roça de Veridiana e Romão. O amor é estremecer com o toque daquela mão calejada e áspera no seio, porque aquela é a mão desejada do homem amado. O homem que trabalha por amor à família e isso dá tesão. O amor é encher a casa de flores e fazer vingar a inteireza do perfume, mesmo que o amado esteja em dia de jumento. Explico: recordação de Sueli Carneiro citando Arnaldo Xavier “carinho de jumento é coice.” A história de Veridiana e Romão tem muito desta verdade.

“Mukondo” é o retrato da delicadeza e do respeito (próprios de quem vive a energia do N’kice) para tratar da guerra impura contra as religiões de matrizes africanas e seus praticantes. É mostra da sensibilidade do autor, sabedor de que, em Mukondo, não cabem as palavras de ordem do manifesto. Que a linguagem para lidar com os católicos enlutados da história precisa ser diferente daquela que utilizamos no embate político com líderes de igrejas eletrônicas e caça-níqueis, com lobos-pastores de ovelhas, que desrespeitam e agridem, diuturnamente, aqueles que simplesmente mantêm a fé viva em seus N’kices, Voduns e Orixás, por meio do oferecimento de comida, pelo canto e pela dança, num cenário de paz e alegria. Taata de N’kice que é, Lande apreendeu de maneira perfeita o que sentem os rodantes nos momentos que antecedem o transe, quando o N’kice avisa: “Vá dormir, que eu vou dançar.”

“Um amor na diagonal” é uma história muito boa, mas tem um ou outro deslize-clichê, frases que uma leitura crítica detida retiraria da pena do poeta: “para essa tarefa prazerosa” ou “tão absorta estava Kinda em seus cálculos.” O texto apresenta certa irregularidade, começa morno, mas, quando engrena torna-se delicioso, como os demais. Exemplo disso é o impagável diálogo de Kinda e Adalberto sobre o cabelo de ambos: “Sempre encantado por Kinda, ele comenta sobre o cabelo dela, antes tímidos e alisados, em contraste com o pixaim que orgulhosamente ostentava. – Já você... – diz ela, notando a ausência de seu enorme Black Power. Ele passa mão pela cabeça. – Pois é... Nessa atividade é bom ser discreto.” Entretanto, a tensão do final da história cai com um músculo que estoura. Não é que seja mal arrematado, como a gente vê inúmeros contos por aí, mas o processo poderia ter sido outro.

“A liberdade contra o peito” é o texto mais fraco do livro, não tem a mesma maestria dos outros para explorar a ideia central, neste caso, a de que os livros e o conhecimento são armas letais contra a ignorância, preconceitos e estigmas.

Sete: diásporas íntimas é do tamanho que deveria ter, nem maior, nem menor. São 8 contos aplicados na Aorta, diretamente. Sete é livro de escritor maduro. De um homem maduro, acima de tudo. A cada dia me convenço mais de que a arte sem vivência é mais pobre, em que pese a consciência de que a legitimidade para abordar determinados temas, não nos torne bons escritores e escritoras por via de consequência. Lande tem legitimidade, criatividade, apuro técnico e o tempero do tempo. Dádiva de quem faz o caminho da sabedoria. Se antes, eu o achava um soldado oguniado, premido pela necessidade de mostrar uma literatura militante em moldes clássicos (e repetitivos), agora o vejo como Roji, comandante do exército interior de personagens e paisagens várias, como estrategista de uma tropa que confia plenamente em seu general. 

Ogun iê! Lande!

Onde você for “que o mal se esconda e não saia do lugar, pois você tem Ogun de Ronda no clarão do seu olhar!”


* Cronista e ficcionista, Cidinha da Silva é uma das mais destacadas intelectuais de sua geração. Publicou, entre outros, Cada tridente em seu lugar (2 ed., 2007), Você me deixe, viu? Eu vou tocar meu tambor (2008), Os nove pentes d´África (2009), Oh, margem! Reinventa os rios (2011) e Racismo no Brasil e afetos correlatos (2013).

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