A Cor Da Pele1

Silviano Santiago

Adão Ventura, poeta negro mineiro, acaba de publicar uma coleção de poemas sob o título de A Cor da Pele. À primeira vista, o livro escapa à tradição modernista da poesia negra, pois nele não encontramos referências concretas e precisas a elementos de cultos africanos ou afro-brasileiros, como ainda nele não lemos transcrições fonéticas um pouco ridículas do que seria o falar "estropiado" do negro. Basta uma leitura rápida dos poemas negros de um Jorge de Lima, ou de um Raul Bopp, para de imediato percebermos que a poesia de Adão Ventura é também negra, mas de outra estirpe.

Adão Ventura filia-se ao que se poderia, chamar – insistindo ao máximo no paradoxo - a tradição ocidental da poesia negra, tradição esta elevada à condição soberana por um Cruz e Souza em pleno movimento simbolista. Isto quer dizer que Cruz e Souza e Adão fazem legítima poesia ao mesmo tempo que fazem excelente poesia negra. Isto porque o elemento negro no poema não é produto de ornamentação vocabular, o que apenas denotaria certo exotismo tão ao gosto de poetas de linha romântica. O negro como produto de ornamentação vocabular acaba por dar origem a uma poesia, como diria Oswald de Andrade comentando o farisaísmo folclórico de Cassiano Ricardo, que é "macumba pra turista". O elemento negro, na poesia de Cruz e Souza e nestes curtos poemas de Adão, advém do drama negro que é refletido pela poesia e que o poema (sem cor vocabular) carrega de alta tensão emocional. O elemento negro no poema, íntimo ou histórico, social ou racial, é antes sujeito ou objeto de reflexão do que arabesco de decoração. Enquanto reflexão, apela para a consciência crítica do leitor e para a revolta contra o estado passado e presente.

Para o poeta negro a cor do vocabulário não tem importância, não tem a importância que a ela lhe emprestam os "estudiosos brancos" da questão negra nos trópicos. A originalidade da poesia de Adão advém do sentimento da cor da pele. A cor da pele: algo de pessoal e intransferível, e ao mesmo tempo algo de coletivo e histórico. O homem se descobre negro na tessitura da pele, e nesta vê as marcas da escravidão e do degredo, e sente os sofrimentos e a Mãe-África. Vale dizer: descobre a história da escravidão e a comunidade dos escravos. Diz o poema:

em negro
teceram-me a pele
enormes correntes
amarram-me ao tronco
de uma Nova África

A cor do vocabulário importa para o folclorista, o antropólogo e o poeta branco. São estes que visam a preservar, através de um discurso condescendente e piedoso, científico e reparador, os crimes e injustiças cometidos pelos próprios brancos contra os negros, e acrescentemos: contra os índios. São eles que insistem em guardar as relíquias da destruição, num desejo de preservação póstuma por parte da cultura branca dominante.

O poeta negro sabe mais do que a cor das palavras e o valor das relíquias póstumas. Pode dedicar, como Adão o faz, o livro para os "90 anos da abolição da escravatura no Brasil", assinalando aí o débito do negro à elite branca da época, ou aos negros que dela se aproximaram. No entanto algo de mais profundo ainda permanece na cor da pele. Nomear a abolição da escravatura no pórtico do livro é - não tenhamos ilusão - pactuar com o que ela NÃO fez, com o que está por fazer. Diz o poema "Negro forro":

minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.

Ou como diz "O Negro-Escravo (Uma versão para o século XX)":

o negro-escravo
- e seus dentes cariados

A cor da pele é marca indelével que não se apaga com os bons sentimentos humanitários ou patrióticos, nem com a política paternalista dos governantes ou populista de oposição. Por isso é que o elemento negro não é relíquia ou simples vocábulo para Adão. É algo de presente e premente. O negro é confluência de corpo e pele; o negro é lugar e tempo de ação. Ação difícil, quase impossível, pois a raça perdeu o seu horizonte histórico com o degredo e a escravidão, encontrando-se murada num país que não é e não pode ser o seu. É desta forma que compreendemos a recorrência das palavras "muro", "parede", "curral", nos poemas de Adão. Vejamos:

Carrego comigo
a sombra de longos muros
tentando impedir
que meus pés
cheguem ao final
dos caminhos.

Se com as novas fronteiras nacionais existe um ganho de nacionalidade (o negro é brasileiro), com elas se perde a condição histórica (o negro abandona a Mãe-África). As fronteiras impostas pela escravidão passam a ser o verdadeiro muro para o negro, aquele que não o deixa vislumbrar nem o caminho histórico da raça no seu continente, nem o caminho do retorno. As fronteiras foram o alpiste do colonizador e hoje são o alçapão do colonizado. Com o substantivo Brasil e com o adjetivo brasileiro (curiosamente só mencionados sob a forma de topônimos regionais), construiu-se para o negro nos trópicos um muro - confortável para alguns, como veremos - de que o negro lúcido de hoje não consegue desvencilhar-se. Resta-lhe este viver emparedado no presente, que transparece no poema "Faça sol ou faça tempestade":

faça sol ou faça tempestade
meu corpo é cercado
por estes muros altos,
- currais
onde ainda se coagula
              o sangue dos escravos

Este sentido de prisão, de enclausuramento, lhe é dado pela cor da pele, pelo sentimento na cor da pele:

faça sol
ou faça tempestade
meu corpo é fechado
por esta pele negra

As referências culturais são vagas e apagadas para o negro no Brasil, ao contrário do que acreditam os nossos cientistas sociais, imbuídos da teoria do mulato tropical. "Sua voz falida / pelas portas adentro”.Tão vagas e apagadas são, que elas apenas servem para constituir o "preto de alma branca". Em poema terrível e extraordinário, apaixonante, Adão levanta "ligeiras conceituações" sobre o preto de alma branca, que não deixam dúvida quanto à proveniência da expressão. Ela só pode ser elogiosa pelo seu lado branco. Do outro lado, diz o poema:

o preto de alma branca
e a sua cor de camaleão

o preto de alma branca
e o seu sujar na entrada

o preto de alma branca
e o seu cagar na saída

o preto de alma branca
e o seu sangue de barata

Constituído para não-ser, o negro teve de incorporar os valores brancos, dados como positivos, para poder aparecer socioeconomicamente. A alma branca é a aparência que resguarda o negro da violência e do anonimato e que baliza as suas ações comedidas e mesquinhas, controladas. Combatendo as falsas aparências, Adão insiste para com que o preto assuma a sua alma negra e vire o que é na pele, um negro, buscando assim uma identidade que escapa às pressões da sociedade cordial. Para desacreditar as falsas aparências, é preciso ir fundo, não temendo dizer a verdade da violência que se manifestou na escravidão:

levar um negro ao tronco
e cuspir-lhe na cara

levar um negro ao tronco
e fazê-lo comer bosta

Com estes versos, Adão não procura simplesmente "rebaixar" o negro, como pode parecer numa leitura menos cuidadosa. Nomear o aviltamento do negro pela escravidão é a única maneira de poder reconstituir o negro como não-ser no passado e como identidade social a ser construída no presente. Tudo isso sem as peias da ideologia da cordialidade. O "rebaixamento" constitui historicamente o negro no Brasil e constitui a sua identidade política hoje. É através dele que pode surgir uma voz menos adocicada e um corpo com menos ginga, mas com uma ação mais eficiente e poderosa. Fazer de conta que não houve escravidão no Brasil é o caminho mais fácil para se chegar ao preto de alma branca. Adão sabe que

para um negro a
cor da pele
é uma faca
que atinge
muito mais em cheio
o coração.

1 In: Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-sociais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

 

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