Memória e experiência na produção literária de Abílio Ferreira

Giovanna Soalheiro Pinheiroi

Mas, a quem não fará sonhar a rua? A sua influência é
fatal na palheta dos pintores, na alma dos poetas, no cérebro
das multidões. Quem criou o reclamo? A rua! Quem
inventou a caricatura? A rua! Onde a expansão de todos os
sentimentos da cidade? Na rua!
A alma encantadora das ruas

No carnaval, esperança
Que gente longe
viva na lembrança
Que gente triste
possa entrar na dança.
Que gente grande
saiba ser criança

“Sonho de um Carnaval”

Compreender a escritura de Abílio Ferreira é penetrar em uma obra inegavelmente afro-brasileira que, não raro, está repleta de magia e mistério pela densidade alegórica que a construção literária carrega em si. Na realidade é uma escritura da experiência, mais precisamente da experiência observada, e de certa maneira, vivenciada pelo sujeito empírico do autor. “Onde há experiência no sentido estrito do termo, entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo” (Walter Benjamin, obras escolhidas III, p. 107.) Tal proposição de Benjamin esclarece, em grande medida, a construção novelística do escritor negro aqui analisado, tendo em vista o conjunto de sua obra que, em menor ou maior grau, arquiteta-se pelos sublimes caminhos da memória. Além disso, a verve artística de Ferreira oscila entre o seu ofício de jornalista, ao denunciar, com profunda racionalidade e de forma concisa, as mazelas e vícios da nossa sociedade, mas ao mesmo tempo reverbera o lirismo de um flâneur, mostrando-se um sensível apaixonado pelo espaço povoado pelas “multidões”.

O escritor é um dos integrantes do grupo Quilombhoje, tendo publicado os seus contos e poesias nos Cadernos Negros, série de inegável importância para a expressão de uma literatura que se distingue dos parâmetros estéticos apregoados pelo Cânone Ocidental, uma vez que põe em evidência os conflitos étnicos e sociais que permeiam a vida do negro brasileiro. No ano de 1989, é publicada a sua antologia de contos e poesia, Fogo do olhar, pela Mazza edições, e em 1995 a novela de formação Antes do carnaval, pela editora Selinunte. Antes de partirmos para um breve estudo da composição literária de Abílio é imprescindível ressaltar que a sua escrita propala, antes de tudo, o isolamento e a solidão do sujeito moderno, referindo-se ao desespero e à miséria balizada na pele da gente negra. Nesse sentido, torna-se manifesta a menção à literatura de Lima Barreto e João do Rio, especialmente no que tange à densidade para observar “os anônimos heróis” e o mundo povoado pela desventura da exclusão social e pelo preconceito. Tais escritores depositaram nas malhas das letras todo um conjunto de pensamentos antagônicos em torno da realidade nacional, posto que, por meio de suas experiências, desenharam um painel vivo e, ao mesmo tempo trágico, dos fundamentos éticos e sociais responsáveis pela formação histórica da Nação Brasileira.

O narrador das cidades e das “multidões”: o flâneur

Um dos temas de destaque presente na escritura de Abílio Ferreira, que marca as narrativas tidas como modernas e pós-modernas, é o olhar diferenciado sobre os espaços urbanos e sobre os indivíduos que neles habitam. Trata-se de um modelo específico de narrador, o qual faz das ruas a sua própria moradia, desenhando-a com os seus vícios, mazelas e encantos; observando os seus detalhes íntimos e todo o contorno das avenidas e dos viadutos. Tal observador é o flâneur, ou ainda, “O homem das multidões”, tendo este, como finalidade maior, captar as marcas profundas presentes no corpo da cidade. (In Walter Benjamin, OE. III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, p 45).

O narrador da novela Antes do carnaval pinta as ruas com a expressividade das palavras, fazendo-as singulares, à medida que põe as imagens no próprio tecido narrativo:

Às cinco horas da tarde, o Viaduto do chá, ponte de ligação entre o centro velho e o centro novo da cidade, começava a ficar cheio de negros. Rodinhas se formavam nas esquinas da direita com a São Bento e da Barão de Itapetininga com a Conselheiro Crispiniano. Era o momento do rush – um corre-corre em busca de condução para casa, uma massa de ar cinzenta escondendo o pico dos edifícios, descendo sobre as arvorezinhas das praças, pairando sobre as cabeças, envolvendo as multidões apressadas. O trânsito parado, buzinas ensurdecedoras sobrepondo-se aos outros ruídos da cidade; de dentro dos arranha-céus, elevadores despejando gente nas ruas, num vômito incontido. (Antes do carnaval, p.84)

No fragmento acima, bem como em uma parte considerável da narrativa, observa-se a cidade e o seu conjunto de elementos como uma das personagens da novela. Os bailes no Viaduto do Chá e as luzes dos edifícios; o movimento das danças; as praças, e os “rapazes com os black powers redondos e brilhantes apontados para o sol” (AC. P.85) são, a bem dizer, símbolos que representam a força e a união daquela gente que tinha, nas ruas, o seu principal ponto de encontro. Abílio, em Antes do carnaval, soube apreender a essência da “alma encantada das ruasii” e traduzir os sons, as imagens e as tradições negras que, em grande medida, fazem da praça uma Encruzilhada de Néon.

A cidade deve, claramente, ser tomada como um conjunto arquitetônico universal, mas em se tratando de uma obra que agrega as concepções de cultura afro-brasileira, não é possível deixar de mencionar os espaços que, em sua grande maioria, são habitados pela gente negra. Nesse sentido, as praças, os viadutos, e até mesmo o mar, tornam-se símbolos da coletividade afro-brasileira, construindo o fio que enlaça as identidades dispersas.

Antes do carnaval: um novo bildungsroman da identidade afro-brasileira

Assim como Conceição Evaristo, em seu sublime bildungsroman afro-brasileiro Ponciá Vicêncio, Abílio, do mesmo modo, percorreu os caminhos do Romance de formação.Trata-se, na realidade, de uma sucinta novela, porém de expressiva densidade narrativa, na medida em que incorpora as experiências de duas personagens, as quais terão suas vidas entrelaçadas pelo destino, à consciência crítica sobre o que é SER NEGRO. A escritura que se apresenta em Antes do carnaval é, ao mesmo tempo, múltipla, digressiva e coesa, pois é a montagem da narrativa, construída ao fim e ao cabo pelo leitor, que formará o sentido do texto. A trama é “dividida” em três partes: a primeira relacionada ao mundo de Clara, uma das protagonistas da novela; a segunda pautada nas vivências de Marcelo, este também essencial para a constituição do enredo; e a última refere-se à posição e às ponderações, repletas de lirismo, feitas pelo narrador em torno do espaço que norteia a grande cidade de São Paulo.

Clara e Marcelo são seres marcados por um destino comum, ou seja, desde a infância, precisam afrontar as desventuras impostas pela sociedade que se deseja puramente branca, no sentido mais amplo do termo. É o universo de Clara, uma menina negra, que inicialmente é descrito pelo narrador, desde a adolescência, assinalada pelos conflitos e pela exclusão que permeiam a sua família, até o seu envolvimento com pessoas que não faziam parte do seu contexto socioeconômico e cultural. À medida que os anos passaram, a menina transformou-se em uma jovem consciente dos conflitos e das tradições inerentes ao seu mundo. Em muitos momentos na narrativa é possível perceber, ainda que de forma simplesmente alusiva, as reminiscências de um passado que se pereniza nas sublimes vozes negras, presentificadas na história, na literatura e na música:

A porta do apartamento estava entreaberta. Lá de dentro fluía um som – Billie Holliday cantava uma música que estranhamente não despertou nela um sentimento novo. Ao contrário, era um sentimento antigo, longínquo, vivido em algum momento que ela não lembrava.

Clara parou diante da mesa de som revestida de aço inoxidável, com luzes coloridas piscando. O fato de a porta estar aberta, a sala vazia e o aparelho de som ligado não lhe chamou a atenção. Ela estava envolvida apenas por uma preocupação: no meio daquele cheiro de novo que emanava do carpete, dos estofados, dos quadros, destacava-se aquela música pungente. Havia ali, sem dúvida, dois corpos estranhos – Clara e a música. Mas por quê? (Antes do carnaval, p. 62).

A música é a evocação de um tempo outro, não essencialmente do experimentado pela personagem Clara, mas de um tempo/espaço eterno, arraigado na memória afro-descendente. O jazz imortal de Billie Holliday remete não somente à ancestralidade africana e à história da escravidão, mas, sobretudo, às relembranças de um passado miserável de exploração, intrínseco também à própria vida da cantora. Nesse sentido, a música torna-se, ao mesmo tempo, um instrumento de tomada de consciência – posto que possibilita o bradar das vozes em relação aos conflitos étnicos e sociais – e um nobre componente da memória cultural desses povos. Não é sem motivo que o escritor negro Du Bois, no capítulo final de As almas da gente negra, constrói um belo ensaio sobre as Sorrow Songs, isto é, as Canções da Dor que evidenciam a vida de angústia e o sofrimento dos negros norte-americanos.

Quando Clara se depara com o som tocado, o narrador tece o seguinte comentário a respeito das impressões que a música lhe havia deixado: “era um sentimento antigo, longínquo, vivido em algum momento que ela não lembrava”. A música parece ter desencadeado em Clara uma memória involuntária, (Walter Benjamin, OE. III), que a fez reconhecer-se na letra da canção. A existência da personagem, assim como a de Marcelo, está indelevelmente vinculada à lembrança da escravidão, não vivenciada por eles, mas presente, de uma outra maneira, nos conflitos que conduzem a sociedade atual.

Este personagem, também negro, vivenciou fortes momentos de amargura e solidão: foi abandonado pela mãe e adotado por uma senhora, Dona Alexandrina, que não pôde lutar contra os infortúnios que, inevitavelmente, atormentariam a existência de Marcelo. Percebeu que, da mesma forma que ela, o filho teria um destino comum aos de muitos do seu bairro: não faria faculdade, não passaria do primeiro grau, viveria solitário, por algum tempo, pelos caminhos tortuosos da existência.

Enquanto esteve doente, sabendo que não duraria muito, Dona Alexandrina sofreu só de pensar em como Marcelo viveria sem ela. Porque ela conhecia muito bem a história dos rapazes muito jovens que trabalhavam como cavalos, com remuneração baixíssima, cansados, mal alimentados demais para aproveitar os estudo e desistindo por falta de dinheiro ou por problemas de saúde na família. E, mesmo quando conseguiam terminar o segundo grau, não suportavam pagar um curso pré-vestibular e muito menos um curso superior, quando conseguiam entrar na faculdade. (Antes do Carnaval, p. 72).

Na realidade, as experiências de Marcelo contribuíram positivamente para que ele modificasse a vida, não apenas pré-desenhada por sua mãe, mas também resultado dos antagonismos socioeconômicos inerentes à realidade brasileira. No começo de sua formação chegou a negar, por influência dos amigos de escola, a sua própria identidade, uma vez que retirou todo o cabelo crespo e passou a crer que, a partir daquele momento, a sua vida teria outros contornos. Marcelo, do mesmo modo que Clara, teve a sua consciência moldada pela música que, aliás, é motivo recorrente na novela. “O tempo do soul marcou época”, afirma o narrador, e é por meio dele que teremos acesso ao verdadeiro universo cultural do personagem:

Toda semana em cada quarteirão de cada bairro da periferia, surgia uma nova equipe de música mecânica, imitando as grandes equipes que faziam os bailes de soul do centro da cidade. (Antes do carnaval, p. 93).

Marcelo e Clara foram impulsionados pelos ritmos da memória, foram levados ao mar involuntariamente para que pudessem ligar-se pelos fragmentos de suas recordações e experiências. Ao final da narrativa é descrito, de forma quase transcendental, o encontro especial das duas personagens no mar, sendo este, na escritura de Ferreira, o fio que conduz a herança, além de permitir uma profunda viagem às reminiscências do passado.

O Bildungsroman enquanto gênero específico

A novela Antes do carnaval pode ser apreendida como uma narrativa literária de caráter exemplar, uma vez que sua estrutura encontra ressonância nas tradições da memória e da formação, cujo narrador exerce, o que chamo, de uma onisciência solidária: não há uma participação, em primeira pessoa, deste no texto, mas há um denso olhar solidário a uma existência coletiva e cenas observadas. Antes do carnaval está centrado “nos anos de formação e aprendizado” de dois jovens negros, tendo em vista uma sucessiva aproximação com as tradições socioculturais afro-brasileiras. Lukács, em A Teoria do Romance, expõe sua concepção sobre o Romance de Formação que, em alguns pontos, aproxima-se da composição literária de Abílio Ferreira:

A humanidade, como escopo fundamental desse tipo de configuração, requer um equilíbrio entre atividade e contemplação, entre vontade de intervir no mundo e capacidade receptiva em relação a ele. Chamou-se essa forma de romance de educação. Com acerto, pois sua ação tem de ser um processo consciente, conduzindo e direcionado por um determinado objetivo: o desenvolvimento de qualidades humanas que jamais florescem sem uma tal intervenção ativa dos homens e felizes acasos; pois o que se alcança desse modo é algo por si próprio edificante e encorajador aos demais, por si só próprio um meio de educação. A ação definida por esse objetivo tem algo da tranquilidade da segurança. Mas não se trata da tranquilidade apriorística de um mundo rematado; é a vontade de formação. (Lukács, 2000, p. 141).

Após a leitura dessa narrativa, permanece uma indagação inevitável: trata-se de um clássico bildungsroman europeu, nos quais os desfechos são quase sempre plenos de beleza e felicidade? Na realidade, não é possível definir o futuro das personagens, pois, a meu ver, o texto de Ferreira permanece como uma esfinge a ser decifrado por nós, leitores. Há, sem a menor dúvida, ao final da narrativa, uma consciência crítica formada pelas experiências vividas, mas ao mesmo tempo percebe-se, de forma indireta, uma existência mutilada pela memória histórica das catástrofes vivenciadas pela população escrava no Brasil. O olhar do narrador desenha um jogo dialético entre passado/presente e presente/futuro, posto que, ao retratar a forma de escravidão atual – a doença profunda da desigualdade social – confirma um processo que deverá ser combatido, ato contínuo. Nota-se, dessa maneira, que a formação destoa de um gênero universalizante, já que a promessa de felicidade vindoura depende igualmente de uma análise perspicaz em torno dos conflitos que estão no cerne da sociedade brasileira e de um olhar culturalmente diferenciado. Assim como o romance de Conceição Evaristo, Antes do carnaval tem como desígnio maior não somente idealizar a formação inerente à própria tradição dos povos de origem africana, mas especialmente desmistificar uma democracia racial historicamente construída. Seguindo a concepção de Florentina da Silva e Souza, nessa escritura, nomeadamente afro-brasileira, há um grande desejo por parte do narrador de agir sobre a vida do leitor, de maneira a conscientizá-lo em relação à vida política e sociocultural do seu povo. A ideia contida no bildungsroman afro-brasileiro passa, sem a menor dúvida, pela educação/formação, mas sem deixar de enfatizar as dolorosas reminiscências da diáspora negra.

Por meio do que foi exposto acima, não é difícil notar que a existência coletiva é o ponto referencial, a partir do qual o leitor pode situar-se e interferir no assunto narrado, contribuindo na apreensão do significado do texto. Nesse sentido, a literatura produzida por escritores afro-brasileiros passa a ter uma missão muita bem delineada: a de edificar mundos, não apenas verossímeis, mas motivados, de maneira especial, pelas experiências centradas na barbárie cometida contra os negros e que, ainda hoje, deixa profundas marcas na civilização brasileira.

A alegoria: O carnaval

O carnaval, já apresentado no título da novela, não é um simples ornamento literário, mas é, sobretudo, uma alegoria para os possíveis encontros e desencontros no destino da gente negra. Roberto DaMatta, em Carnavais, malandros e heróis, faz um esboço das relações sociais que se estabelecem e que se dissolvem durante tais festividades no Brasil. Na concepção do autor, essas comemorações são marcadas pelo relacionamento entre o Homem e Deus, possuindo, por essa razão, um sentido mais universal e transcendente. Sendo assim, trata-se de um período de intensa renovação, no qual vida e morte tentam se equilibrar nas cordas vacilantes do destino. Em Antes do carnaval, é necessário compreender que tudo tem início exatamente com o “Banho da Dorotéia”: segundo o narrador, trata-se de uma festa misteriosa, já que a maior parte das pessoas não sabia quem era Dorotéia ou a real acepção desse ritual. O Banho era visto como uma prefiguração do carnaval – acontecia uma semana antes dele – sendo que o seu sentido maior era o mergulho coletivo no mar. Tal banho, a meu ver, é o fio condutor do destino de Clara e Marcelo, já que é, por meio dele, que o primeiro encontro ocorrerá entre as duas personagens. O caráter enigmático da narrativa nos faz apenas sugerir um sentido, mas devemos caminhar pela própria ordem das coisas. As águas do mar refletem, simbolicamente, ao começo de tudo, ao batismo e, por que não, ao renascimento da vida. Observa-se, de tal modo, que é nessas águas que teremos a efetivação do processo de formação e a gênese de uma legítima consciência étnica.

O mar

O poder mais admirável que envolve a narrativa carnavalescaiii de Abílio é a emergência desse símbolo – O MAR – ao mesmo tempo profano e sagrado, permitindo a purificação do corpo e do espírito e, especialmente, fazendo insurgir crenças, valores e as mais profundas raízes ancestrais. O narrador da novela estabelece quase que um ritual ascético, ao personificá-lo por seu alento coletivo:

No verão, em certos fins de semana, muita gente era expulsa pela cidade em direção ao mar. Ele, sim, era mais sincero: nunca escondera o seu fascínio e o seu perigo. Seus humores, seu temperamento impulsivo, tudo nela era verdadeiro e simples. A superfície refletia o interior, de modo que ninguém se atrevia a desafiá-lo quando se mostrava irado. E ele próprio tinha o habito de avisar a todos a sua disposição em receber visitas. Nessas ocasiões, mostrava-se dócil, oferecendo a todos os que o amavam o seu abraço solidário e reconfortante. (Antes do carnaval, p. 100).

O mar é fundamental em relação ao entendimento da escritura do autor aqui estudado, a bem dizer no que tange à sua construção poética. Tal símbolo e quase que um leitmotiv da obra de Ferreira e expressa a dinâmica da existência; a imagem da vida e da morte; a ambivalência entre o ser e o não ser. Como fica manifesto no fragmento acima, é a partir dele, e ao mesmo tempo do encontro de Clara e Marcelo nesse mesmo ambiente, que as transformações começam a se processar.

Em um outro sentido – tomando como referência a história coletiva – o mar possui ainda uma função figurativa, referindo-se à viagem percorrida pelo Atlântico Negro, e, especialmente, reverberando as vozes memoriais que perenizam, nas profundezas dessas águas, a dor, a humilhação e, do mesmo modo, a tradição e a riqueza ancestral dos negros no Brasil.

A escritura de Abílio mostra, antes de tudo, a sensibilidade de um prosador-poeta, este sempre presente naquele. Além de sua singular obra poética, não raro, encontramos em seus contos e novelas, folhas preenchidas com algumas doses lirismo. A consciência étnica, por sua vez, não se faz presente em forma de um grito aberto, mas por meio de conflitos socioculturais que estão do cerne de suas páginas escritas. O autor soube unir, à sua condição de sujeito negro, a memória coletiva da essência africana e, ao mesmo tempo, soube registrar a formação de uma identidade afro-brasileira.

Referências:

BAKHTHIN, Mikhail. Problemas de poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro, Forense, 1981.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1989.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Editora Mazza, 2005.

FERREIRA, Abílio. Antes do Carnaval. São Paulo: Editora Selinunte, 1995.

HOLLANDA, Chico Buarque de. “Sonho De Um Carnaval”. Chico Buarque de Hollanda [Compositor]. In: ─ Chico Buarque de Hollanda: os primeiros anos. São Paulo, Som Livre, 2006.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2000.

SELIGMAN-SILVA, Márcio (Org.), História, Memória, Literatura. O Testemunho na Era das Catástrofes: Campinas: Editora Unicamp, 2003.

SEVCENKO, Nicolau Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na I República. São Paulo: Brasiliense, 1983.

SOUZA, FLORENTINA DA SILVA. Afro-descendência em cadernos negros e jornal do MNU [Movimento Negro Unificado]. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

 

i Graduanda em Letras pela UFMG.

ii O título em itálico refere-se a uma das produções literárias do escritor João do Rio, que magistralmente soube registrar, com seu olhar de flâneur, as multidões jogadas à deriva e, ainda, o espaço urbanizado das grandes cidades. Nesse aspecto, a composição de Abílio Ferreira assemelha-se às crônicas e contos do autor de A alma encantada das ruas.

iii O termo “carnavalesco” não se refere ao tipo de Literatura carnavalizada, e sim à simbologia das comemorações festivas em torno de tal evento. Tomo Bakhtin como referência, uma vez que em sua obra há, antes de tudo, a descrição do processo do Carnaval, o qual dá origem à Carnavalização da Literatura. Percebe-se, portanto, que a construção de Abílio retoma alegoricamente alguns elementos do carnaval, mas sem provocar o riso destronante inerente à carnavalização.