Nana & Nilo: um resgate literário e filosófico

 

Rafaela Pereirai

 

 O campo da literatura infantojuvenil afro-brasileira vem se desenvolvendo com constantes publicações voltadas para a temática. Protagonistas negros(as) e interessados em saber e informar sobre a cultura de seu povo são criados com a missão de repassar, sob outro olhar, como foi historicamente a participação do negro e como retratar algumas destas situações em uma narrativa com personagens mirins. Estes se tornam um referencial para a reconstrução histórica e para a afirmação de identidade. Fruto de um projeto idealizado pelo filósofo, professor e escritor Renato Noguera, Nana e Nilo protagonizam uma série de aventuras exaltando ludicidade e modos positivos de convivência, além de buscarem – e encontrarem – respostas para questionamentos próprios da infância. Nana e Nilo são irmãos gêmeos que passeiam pelo tempo para se divertirem e conhecerem hábitos de povos africanos e, para isso, vivenciam duas aventuras: uma no Egito e outra em Burundi. Para tanto, têm a ajuda de Gino, o pássaro falante, e de Mulemba – uma árvore mágica personificada num baobá que voa e fala.

Em Nana & Nilo, aprendendo a dividir (2012), os irmãos gêmeos passam por uma situação em que vão refletir sobre a importância dos limites e da necessidade de respeitar e compartilhar. Laila, prima de ambos, resolve brincar com uma das bonecas de Nana, que se incomoda e não quer permitir. Laila puxa o brinquedo e acaba arrancando a perna da boneca. Em seguida, pede desculpas a Nana, mas esta ignora e continua a chorar. Gino pergunta a razão de tudo aquilo e conta o fato para Mulemba.

A árvore mágica propõe então um passeio às crianças, que sobem em seus galhos e seguem para Kemet em uma época de cinco mil anos atrás. Lá a turma encontra crianças brincando de cabo de guerra, jogando mankala, entre outras brincadeiras. O casal de gêmeos e Laila vão se divertir com as outras crianças enquanto Gino e Mulemba observam. Os personagens desembarcam num outro mundo, tanto física, quanto culturalmente, mas cheio de semelhanças com o nosso. E a identificação é reforçada quando, antes de “embarcarem” de volta, Tié, uma das garotas egípcias, presenteia Nana e Laila com uma boneca para as duas... Ao voltarem para a casa e, inspiradas pelo que viram em Kemet, as primas consertam a boneca e passam a compartilhar o brinquedo.

Em Nana & Nilo, que jogo é esse (2012), o garoto volta para casa cabisbaixo após se divertir com os amigos, mas brigar com um deles depois de uma brincadeira. Chateia-se também por perceber que, de acordo com os jogos que conhecia, havia sempre alguém que perdia. É consolado por Gino e Nana e vão até Mulemba contar o que aconteceu. Mulemba, então, resolve levá-los a um lugar onde as crianças jogavam e não havia perdedores. Nana, Nilo e Gino sobem nos galhos de Mulemba e seguem para a comunidade de Batwa, na África. Lá se depararam com várias crianças alegres vestindo roupas coloridas. Mulemba explica que Nilo gostaria de aprender um jogo em que não houvesse perdedor. Uma das crianças, Batu, traz um saco e propõe uma corrida. Chama outras crianças e Nana e Nilo se juntam a eles para participarem da brincadeira. Como todos participaram da corrida no mesmo saco não houve perdedor. Depois, foram brincar de cabo de guerra em que colocariam muitas frutas em uma sacola e eles teriam que puxar até que ela se rebentasse e as frutas caíssem dentro do círculo, o que permitia que todas as crianças vencessem ao mesmo tempo e depois apreciariam as frutas com satisfação. Ao voltarem para a casa eles adotam as brincadeiras aprendidas e compartilham com outros amigos as possibilidades de se divertirem sem que haja perdedores.

Descritos como crianças alegres, inteligentes, curiosas, Nana e Nilo operam a quebra de estereótipos comuns em narrativas com a participação de personagens negros, pois ainda persistem no imaginário social os estigmas oriundos da escravidão. Noguera não inscreve a criança negra como ser subalterno e sofrido. Opta por uma representação da África a partir de uma perspectiva construtiva, que destaca tradições milenares, com todo um repertório de saberes resguardado pela oralidade.

Outro aspecto relevante na coleção é a abordagem dessa tradição africana através de Mulemba, um baobá personificado que tem um desenvolvimento importante na história, pois é através dela que o leitor tem a oportunidade de viajar juntamente com Nana e Nilo para outros períodos históricos da África. Uma das plantas mais antigas do mundo, o baobá apareceu na literatura infantil do século XX, através da obra O Pequeno Príncipe (1943), de Antoine de Saint-Exupéry. Nesta história o baobá é retratado de forma negativa, como algo maligno, danoso que precisava ser eliminado por causa do seu tamanho, como pode ser observado na seguinte passagem:

 

De fato, no planeta do pequeno príncipe havia, como em todos os outros planetas, ervas boas e más. Consequentemente, sementes boas, de ervas boas; sementes más, de ervas más. Mas as sementes são invisíveis. [...] Mas quando percebemos que se trata de uma planta ruim, é preciso que a arranquemos imediatamente. Ora, havia sementes terríveis no planeta do pequeno príncipe: as sementes de baobá... O solo do planeta estava infestado. E quando não se descobre que aquela plantinha é um baobá, nunca mais a gente consegue se livrar dele, pois suas raízes penetram o planeta todo, atravancando-o. E se o planeta é pequeno e os baobás numerosos, o planeta acaba rachando. (SAINT-EXUPÉRY, 2006, p. 22-23).

 

Porém, o “conhecimento” restrito em relação ao baobá deixa de fora uma série de informações. Em Nana & Nilo isso é resgatado de forma otimista na personagem Mulemba. Um dos símbolos fundamentais da cultura africana, o baobá é considerado a árvore da vida e está relacionado com a memória e esquecimento. Sempre que o casal de gêmeos passava por uma situação que os intrigava, Mulemba resgata em sua memória histórica elementos culturais para demonstrar o quanto se pode aprender com outras etnias. Ela é assim descrita:

 

É uma árvore com mais de 1000 anos, nascida no continente africano, se mudou para o Brasil em 1800, acompanha a família dos gêmeos desde então, dotada de grande sabedoria e poderes mágicos, a árvore voadora sempre encontra uma maneira de ajudar as crianças a descobrirem horizontes desconhecidos e ampliar o conhecimento. (2012).1

 

Na figura de Mulemba é possível também remeter à diáspora negra nas Américas, pois ela nasceu no continente africano e veio para o Brasil no século XIX, acompanhando a família dos gêmeos desde então. Logo, o baobá é também o símbolo da ancestralidade e é ele quem guarda na memória a história da família de Nana e Nilo. Fica patente na coleção o intuito formador – para que as crianças possam apre(e)nder, através da literatura, formas positivas de convivência. Considerando as propriedades inerentes ao público alvo, seja no meio social ou escolar, dar acesso a obras que abordam o universo cultural de matriz africana sob outra perspectiva torna-se algo valioso.

Deste modo, Nana & Nilo oferecem aos seus leitores acesso a conhecimentos pouco difundidos, até mesmo nos materiais didáticos. O autor cruza o Atlântico Negro a fim de mergulhar no multifacetado universo cultural africano, que surge para o leitor iniciante através de narrativas das origens de brincadeiras hoje comuns entre as crianças. Tudo isto sempre destacando o protagonismo infantil, que possibilita a identificação com os personagens e suas atitudes. Renato Noguera parte de um diálogo entre filosofia e literatura para remeter ao saber africano presente não só na diáspora, mas intrinsecamente ligado à formação do povo brasileiro. De forma lúdica, seus livros abrem novas possibilidades para o estudo e o conhecimento da África como lugar de civilização e da história e da cultura afro-brasileiras.

Referências

NOGUERA, Renato. Nana & Nilo: que jogo é esse. Ilustrações de Sandro Lopes. Rio de Janeiro: Hexis, 2012.

­­­­NOGUERA, Renato. Nana & Nilo: aprendendo a dividir. Ilustrações de Sandro Lopes. Rio de Janeiro: Hexis, 2012.

NOGUERA, Renato. “A personagem Mulemba”. Disponível em: <http//nanaenilo.com.br/personagens_mulemba>. Acesso em: 30 set. 2015.

SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O Pequeno Príncipe. 48. ed. Tradução de Dom Marcos Barbosa. Rio de Janeiro: Agir, 2006.

 

i Rafaela Pereira é Graduada em Letras pela UFMG e professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.