Em busca do Eldorado

Para Araty Peroni

– Deixa estar, velha. – Disse sem despregar os olhos do caminho que ia terminar a mais de 600 metros do alpendre, lá na estrada – Deixa estar. É coisa da vida.

Com as mãos grossas por calos, afastou de maneira suave a cabeça da mulher que, devido aos soluços, dava sacudidelas em seus ombros.

A velha carregou os soluços para o quarto e ele foi, mecanicamente, sentar-se no banco de madeira da varanda, sem contudo desviar a vista do caminho. Neste, podia-se ver pelas costas um casal caminhando de mãos dadas, mergulhados no cinza da tarde.

O homem, com um boné sobre os cabelos negros, terno escuro – o paletó deixando à mostra o colarinho da camisa amarela-antes-branca, dava a impressão de haver pertencido a um sujeito duas vezes mais gordo que ele; a calça terminava feito uma sanfona no sapato de solas gastas e saltos tortos – e um saco encardido, semelhante a uma cebola, nos ombros, guiava com passos firmes a mulher.

Ela, com o crânio inclinado um pouco para trás, cabelos e o vestido vermelho dançando ao vento, acompanhava o marido, sentindo as pedras do caminho nas plantas dos pés. Um saco menor mas tão encardido quanto o outro, também dançava em suas costas ao compasso dos passos.

Da varanda, o velho perseguia-os com os olhos apertados. Por momentos, mordia os dentes com tamanha força que profundas crateras surgiam na fronte morena e em cada lado da face magra, brotavam dois pequenos montes entre a barba branca por fazer. As mãos massageando os braços entrelaçados. Nem ao menos piscava, acompanhando os vultos em vermelho e preto. Até que a vista se turvou.

Só então trouxe o olhar para as flores que escoltavam a escada, para as roseiras que se derramavam sobre a sacada e para a varanda. E pela primeira vez na vida sentiu a presença de ninguém, ali sentada com ele naquele banco onde caberiam mais quatro pessoas com folga. Uma presença inquietante que lhe abria a camisa e apertava o tórax ossudo com força, para dentro, como se tentasse transformar o peito em uma pelota de papel. Ali, naquela varanda onde antigamente, nas festas, colocava-se mais cinco bancos iguais àquele encostados na parede. As salas repletas sob a luz dos lampiões e ao som da harmônica e do pandeiro; que bons tocadores sempre existiram e ainda existem por aquelas bandas. Só não se faz mais festas porque os tempos são outros. Sem tanta fartura. Todavia, tem-se teto e alimento garantidos no sítio.

O nariz apontou para o assoalho e o velho fez uma leve pressão sobre o chapéu de palha. Quantos pés já pisaram nestas tábuas, agora cheia de buracos e fendas, carcomidas pelos cupins. Bem que ele andara pensando em reformar o assoalho, trocar o forro de sapé do alpendre que já deixava à mostra, aqui e ali, suas costelas de troncos finos de eucaliptos. Mesmo uma pintura nas paredes sujas de barro. Mas pra quê, agora?

Tornou a andar com os olhos pelo caminho e alcançou o casal já na estrada, que feito uma cobra ia afinar o rabo nas colinas, que se fundiam no horizonte.

Não entendia porque a maior parte dos jovens desprezavam o lugar que os vira nascer pela cidade grande. Deixar a terra, as criações, o plantio, em busca do quê? Ouviriam na cidade grande os passarinhos em algazarra ao amanhecer e ao cair da tarde, cantando o dia inteiro entre as folhas do pé de pêssegos, do laranjal, da jabuticabeira? Os grilos, o coaxar das rãs à noite? Teriam a oportunidade de ajudar um bezerrinho vir à luz, na cidade grande? Poderiam sentir o cheiro da terra molhada e das flores, pressentir ainda a tempestade, lá para onde iam? E seus filhos? Ao virem ao mundo, saberiam o significado de tudo isso? “... Ah, meu Deus! Por que? Pra que, meu Deus?!”

Os soluços da velha furaram a escuridão e o silêncio da casa, indo cravar-se em seus ouvidos. A pobre mulher custaria muito para acostumar-se com a ausência da filha e do genro.

O casal era agora somente dois pontos coloridos na poeira da estrada, que pouco a pouco se enterrava na noite.

E o velho sentiu, naquele instante, que era preciso matar a espera; assassinar a esperança de, ao menos, conhecer um neto; a necessidade de transformar-se em mármore.

Com a palha e o rolo de fumo-de-corda guardados no bolso traseiro, fez um cigarro que os dedos e as veias saltadas levaram à boca. Acendeu-o e tragou fundo, aspirando longa e lentamente a fumaça, de olhos fechados. Depois, foi soltando-a sem pressa e ainda de olhos fechados, pensou: “Deixa estar, velha. Deixa estar. É coisa da vida”.

(Fogo cruzado, p. 62-64)