Fogo cruzado

Mas, ovelha negra
me desgarrei
o meu pastor não sabe
que eu sei
da arma oculta
na sua mão.

Agnus Sei
João Bosco e Aldir Blanc

Ele sabia que ali era o fim da linha; o último refúgio. Desde o dia em que eles chegaram de surpresa em seu barraco e ele conseguiu fugir pela janela do quarto, tinha ido para todos os lugares que considerava seguros, porém, eles sempre o encontravam. É certo que não tinham conseguido agarrá-lo ainda, mas sempre o descobriam.

Um mês de sobressaltos, vigilâncias, tiros e fugas. Um mês sem dormir e comer direito. Um mês de raríssimas cachaças, poucos cigarros. Um mês sem mulher. Agora, o último esconderijo. E também a certeza de que eles o encontrariam de novo: tinham todo o serviço. Só podiam ter todo o serviço para saber com tamanha precisão onde ele havia se ocultado anteriormente. “E quem deu com a língua-nos-dentes foi o Boneco, ninguém mais”.

Quando conseguiu fugir deles pela primeira vez, a única coisa em que pensou foi pegar o dedo-duro e acabar com a raça dele. Um dia depois, quando invadiu o barraco do Boneco, de madrugada, um trinta e oito e uma ponto-meia-cinco nas mãos, só encontrou Nica.

A negra assustou-se, tremia muito, mesmo à luz da vela, ele pode ver seus olhos inchados e cor de sangue, duas ilhas cercadas por manchas roxas. Informou que o Carlinhos Pif-Paf tinha chegado todo sem jeito no barraco, querendo falar com o Boneco. Ela disse que não o via desde a manhã do dia anterior, quando ele saiu de casa. Então, o Carlinhos respirou fundo e, olhando para o teto, disse que havia lido num jornal pregado numa banca que a polícia tinha descoberto um presunto todo esculachado e sem documentos nas quebradas de um subúrbio qualquer. A foto do sujeito não era muito boa, mas ele achava que o tal do desconhecido se parecia com o Boneco. Ela nem pensou duas vezes. Foi correndo para o IML.

No Médico Legal, abriram a geladeira e colocaram o corpo na mesa. Os dedos pisados e sem unhas. A boca inchada só com os cacos de dentes podres inteiros. Nariz estourado. Testículos também. Marcas profundas de algemas nos pulsos. Sinais de pontas de cigarro por todo o corpo perfurado de balas. Mas era ele. Era o Boneco mesmo.

Então, um profundo sentimento de pena foi substituindo na garganta o gosto amargo do ódio que sentiu pelo companheiro.

De lá pra cá foi isso: pulando de um lado para o outro; sempre com eles no calcanhar. E, finalmente, aquele reduto imundo, fedorento e abandonado. O proprietário, Cana-Brava, há muito tinha saído de circulação.

O dia arrastou-se quente, abafado. Ele rezou para não chover, pois o barulho dos pingos contra as latas e o zinco do telhado bloquearia a vigilância de seus ouvidos. Contou os buracos do teto, as fendas nas paredes. Andando de quatro, juntou e fez um monte com as pedrinhas espalhadas pelo chão. À medida que o sol caminhava pelo azul doído do céu, o ar dentro do barraco ia se tornando mais e mais pesado, e ele começou a ter a impressão de que mãos invisíveis iam pouco a pouco introduzindo tampões em suas narinas. Sentou-se em um canto qualquer, com a camisa totalmente aberta. Durante algum tempo, ficou brincando com a ponto-meia-cinco: tirando e introduzindo o pente, até que o tédio fez com que a jogasse em cima de uma mesa toda desconjuntada, feita de caixotes de madeira. Depois, só de cuecas, caçou pulgas na camisa e calça sujas. Procurou pensar em diversas coisas: mulher, futebol, besteira que fosse; mas eles sempre na mente. A boca seca. Vez por outra, recolhia com a língua algumas gotas de suor que lhe escorriam pela face. O que não daria por um cigarro!

Com a noite, vieram os vampiros: mosquitos e pernilongos bem-criados que picavam dolorido e produziam coceiras e calombos em todas as partes desprotegidas do corpo. Uma vontade louca de matá-los a tiros; de sair correndo dali. E as horas carregando pedras que pesavam toneladas.

De repente um barulho esquisito lá fora, no mato. A mão apertou tanto o cabo do trinta e oito que o sangue fugiu da ponta dos dedos. Tudo quieto. Nem os pernilongos barulhando. Súbito, uma voz furou o silêncio:

– Tinhaço, te entrega. Sai daí de mãos pra cima que não te acontece nada. Você tá cercado. Não adianta resistir.

No mesmo instante, pensou no Boneco todo fodido. Sabia muito bem o que esperava, se ele se entregasse. Mas não deduraria ninguém. Mesmo porque não tinha quem entregar. Só que eles não acreditariam.

– Nós sabemos que você taí. – o sujeito insistiu – Não tente nenhuma manha. É besteira. Nós somos em dez. Melhor você vir por bem.

Mordeu o lábio inferior até sentir o gosto do sangue.

Então, alguém jogou algo dentro do barraco por uma brecha na janela. Ele não teve tempo pra nada, pois o objeto explodiu ao tocar no solo. Uma explosão seca. E aí, a fumaça. Fechou os olhos, mas a fumaça ardia, queimava a cara. Começou a sufocar. Veio um acesso de tosse. Abriu os olho por um segundo para localizar a ponto-meia-cinco em cima daquilo que considerava uma mesa. Encheram-se de lágrimas. Com a voz rouca, mas forte, entrecortada, gritou:

– Tá legal... eu m’intrego... num atirem... eu m’intrego.

Lá fora, a voz ordenou:

– Sai devagar, de braços erguidos.

Inutilmente, esfregou os olhos com as costas das mãos, sem contudo largar as armas. A vista submersa vermelha, semi-cerrada. Através de um pequeno filamento horizontal, conseguiu visualizar a porta, que caiu com o ponta-pé. Correu atirando à esmo feito mil fuzileiros e por poucos segundos ainda foi capaz de ouvir e sentir o fogo cruzado.

(Fogo cruzado, p. 13-16)