Como num passe de mágica, a parede da sala desaparece e a imagem do barco atracado no cais ganha proporções reais e tridimensionalidade. Caminhando pelo píer, o pai, o menino e outro homem parecem estar a passeio.

– Meu inseparável amigo Luiz Cândido Quintela, minha dívida contigo já não tem mais dimensão!

– Que isso, meu caro? Você já vendeu seu sobrado para pagar dívidas de jogo. Queimou a herança de sua tia. Eu te aceito como hóspede em minha casa até que saia dessa situação. Apenas te peço uma coisa: não entre mais em minha casa de tavolagem.

– Por que me faz esse pedido?

– Porque uma casa de jogos não é ambiente para um viciado como você.

– Você pode ter razão. Mas eu sinto que a sorte se aproxima. Preciso só de um pequeno capital para reverter essa situação.

– Não posso lhe emprestar mais nada.

– E nem precisa. Tive uma ideia que vai resolver definitivamente meu problema. Me aguarde aqui que vou conversar com uma pessoa ali naquele veleiro e já volto.

– Certo. Preciso cobrar uma dívida de jogo de um estivador e depois nos encontramos.

Ambos se afastam e o pai continua a caminhada de mãos dadas com o filho, agora com 10 anos. Passando por um escritório do porto, o menino vê um calendário numa das paredes. Apesar de nunca ter frequentado escola, guarda os números correspondentes àquela data: 10/11/1840.

– Luiz, me aguarde aqui. Vou conversar com o barqueiro e já volto.

– Vamos ao Rio de Janeiro procurar minha mãe, pai?

– Estou pensando nisso.

– Pode ir conversar que eu espero.

De onde está não consegue acompanhar a conversa, mas percebe a insistência do pai, que volta e meia aponta para ele. Se estivesse mais perto, ouviria o barqueiro perguntar:

– Mas tem certeza de que o menino é escravo?

– Sim. Filho de escrava, escravo é. Eu o herdei de uma tia. Preciso desse dinheiro para salvar uma dívida.

– Está bem. Apesar de franzino, ele me parece bem vivaz. Posso conseguir um bom dinheiro por ele lá na Corte.

– Só te peço que não revele que o vendi. Ele é muito afeiçoado a mim. Diga apenas que lhe pedi para levá-lo ao Rio de Janeiro. Peço ainda que não o maltrate. Também me afeiçoei a ele. Não fosse essa dívida...

– Tudo bem. Tome a quantia que me pediu. Quanto ao tratamento quem decide sou eu. Agora ele me pertence.

Os olhos marejados de cada um do grupo não lhes permitem ver com nitidez a tristeza e o ar assustado do pequeno infante, ao entrar no veleiro. Menino vendido pelo pai falido, viciado em jogo, herdeiro perdulário de uma fortuna. Criança de olhar assustado, nascida livre, mas escravizada por conveniência e mentira.

A bordo do patacho Saraiva, seu coração palpita dividido o entre o temor do futuro incerto e a esperança de encontrar a mãe, assim como ele, levada para o Rio de Janeiro.

As lágrimas, que lhe escorrem pela face, não o impedem de ver o cais do porto de São Salvador, cada vez mais distante, onde ainda avista o vulto do pai de costas.

(A luz de Luiz, p. 42-44)