Absurdo de minha vida!

Minha vida seria muito diferente se eu não tivesse, quando pequeno, aprendido tocar oboé.

Criança preta, pais apanhadores de café, absurdo que, com sete anos, sempre descalço, vadiando na fazenda Cristiana – em uma região hoje chamada Vale dos Castelos –, havendo me aproximado do notável instrumento logo alcançasse habilidade e inexplicável brilho.

Absurdo também eu, por volta dos seis anos, trazer às vezes no corpo cheiro de sabonete alemão – (Seife) – em circunstâncias que retive de narração até hoje, e só vou contar ao doutor porque vejo que já estou demais vergado debaixo da idade – 86, cheios, à meia-noite – e saber isso é muito importante para que desvende o que luziu e o que foi escuro nesta minha intricada existência.

O oboé na minha vida se deveu à alemanzinha Liddy Anne, uma entre os vinte e cinco emigrantes que aportaram a Cristiana, herdade antiga de Sinhazinha, na primeira leva que chegou, em 1934, para espanto e susto dos simplórios camaradas, gente preta, a maior parte.

Eu tinha seis anos. Absurdo eu ali, naquele ano em que vieram os alemães. Minha mãe apanhava café e não me levava mais com ela; meu pai tinha sido escolhido para o trabalho de separador de grãos; com uma vassoura juntava as sementes, depois tirava as que não prestavam. Minha achava mais digno eu ficar com meu pai – a mesma coisa que estar ao léu na fazenda, na barroca, solto, pois ele andava sempre, enquanto vassourava, distraído com imaginar alguma cantoria para apresentar nas festas em Pretéu, povoado adjacente a Cristiana. Meu pai inventava música, longe de pauta, sustenidos e bemóis, mas inventava bastante.

Absurdo esta minha vida!

Às vezes chego até a pensar que Deus, para se divertir, mas me estimando muito, resolveu que eu estivesse na fazenda da Sinhazinha naquele ano em que os alemães, descendo até o Vale, terminaram sua viagem; resolveu deixar o paiol ali escondidinho atrás do casarão, deixar que Liddy Anne tivesse doze anos e iniciação de corpo.

Absurdo!

Sou assim, por isso, um tanto “desnegrado” – dizem que pouco ligo para a minha raça – mas, anote: é que às vezes me desocupo de mim mesmo e volto àqueles anos. Pra quê? Para revolver-me no paiol antigo, à busca de alegria; mas sou triste.

Como, doutor, escapar de toda essa desavença?

Veja: sou hoje um homem desbotado, mas tive a minha cor. O oboé mostrou minha cor, de preto que se alçou e, então, foi notado; eu luzi, brilhei por cinquenta anos, na fazenda de Sinhazinha, em Pretéu, Vila Morena, em Mundéu, Tuim, aqui no triste dia do enterro do Antoninho que perdeu a vida pela mão do mestre por ter matado o pavão dele; depois na capital.

Quando os alemães chegaram, vindos de uma região perto de Zwickau – Saxônia –, mudou tudo na fazenda.

De repente, os apanhadores de café, empregados – meu pai, um deles –, perceberam a paisagem extraordinária que eram os teutos saindo cedo para examinar a terra, quase todos grandões, sorrindo, sem saber palavra da nossa fala, oferecendo chocolate pros molequinhos – exclamando So shöne schwarze Kinder! (Que lindas crianças pretas!), e os camaradas rindo da prosa deles.

E eles sorriam, cor de sol, cabelos lambuzados de ouro.

Seis anos, e a mãe de Liddy Anne me ouviu cantarolando alguma coisa, sentado no primeiro degrau da escada do casarão de Sinhazinha. Na certeza, estropiação de alguma toada caipira, invenção de meu pai. Talvez assim – (vou tentar tirar da memória, que já está muito gasta):

 

Me vingo dessa tristeza,

cantando só alegria;

vingo sim, oi lá!

 

Parou diante de mim, tentou chegar mais perto de minha face e acariciar-me o pixaim de molequinho; corri. Ela exclamou algumas palavras lá na língua dela, creio que lamentando, mas eu corri pra casa, que reunia dois recintos – paredes barro; cobertura, folhas de zinco. Para espantar pulgas, minha mãe borrifava no chão com mistura de água e estrume de vaca, e espalhava com vassoura urdida com galhinhos de alecrim-do-mato. Na comida, dava às vezes mingau de fubá com folhas de taioba. Mas eu estava pensando na mãe de Liddy Anne, o cheiro perfumoso dela e a mão alva, sem nenhum calo.

Demais vivida com gente alemoa esta minha existência, doutor; difícil limpar. Mas tudo abrindo caminho para o oboé, que eu iria conhecer com sete anos. Sem os alemães, não saberia de oboé. Sem eles, eu nunca estaria no salão da casa imensa de Sinhazinha, com ocasião para assistir ao despropósito que era viver no meio de tanta beleza, móveis de gente nobre, piano vistoso num dos cantos, luminárias muitas encimando peanhas lindas de metal dourado. Só mesmo por eu tocar oboé; mas, quando sucedeu isso de eu ser chamado pela Sinhazinha pra tocar no casarão dela, eu já ia nos meus doze anos, e um tanto sofrido, porque ninguém lá nem ligava para a música que meu pai inventava, só mesmo em Pretéu, nas festas como a de São Benedito ou na comemoração do passamento do Beato Nego Vito. E eu queria que ligassem.

(Oboé p. 37-40)