É o Frio, Irmãozinhos, É o Frio!

 

Provo a quem quiser a existência do frio

 

NINGUÉM SABIA DONDE VIERA DO FRIO.

Para uns, ele já se havia instalado, há muitíssimo tempo, no País e engordara, sem que as autoridades percebessem. Achavam outros que os dirigentes do País não viam razão para deter o frio de que alguns negros se queixavam, vez ou outra, em páginas de jornais ou em depoimentos aos estudiosos que pesquisavam os efeitos do friíssimo bafo. 

Existia o frio?

Muitos duvidavam; outros queriam provas. No geral, contudo, a maioria se mostrava indiferente ante essa pergunta. O frio, se existente, teria, quando muito, a importância da sarna que se pega nos bancos da escola  primária. Coça um bocado, sim, mas não mata.

Por isso, quando Zé Antunes apareceu na cidade, afirmando que no País soprava um frio que só os negros sentiam e que, tinha certeza, tal frialdade já matara e continuava matando um incalculável número deles, quase todos os que souberam de tal descoberta riram muito com a notícia e do seu divulgador.

Zé Antunes, porém, não recuou, mas respondeu, num desafio:

– Provo a quem quiser a existência do frio!

Zé Antunes teria uns vinte e três anos quando começou a bradar a presença do frio. Um negro magro, alto, pixaim embaraçado por onde nunca andava pente. Um jovem solitário, de pais desconhecidos, que de repente apareceu na cidade, apresentando-se nas entidades negras, nos bares mais frequentados por afro-brasileiros, em suas reuniões de rua às noites de sextas-feiras.

Tal afirmação, no entanto, só começou a perturbar quando ele a levou ao Malungo1, o barzinho afro dos menos endinheirados. Muitos se sentavam junto do Zé Antunes, para ouvi-lo falar do frio, da “ameaça”, como alguns passaram a chamar o velho sopro que ninguém sabia  de onde tinha chegado.

– Já fez sumir muita gente – insistia –, continua fazendo.

No bar e restaurante Toca das Ocaias2, porém, preferência dos que se achavam em melhor situação financeira, Zé Antunes raramente entrava, pois ao tentar pela primeira vez tocar no assunto, diante de um grupo que ouvia o poeta Batista Jordão, intelectual de prestígio na coletividade, a maioria dos presentes não o levou a sério.  Disseram, sem dó, que o anunciador do frio, de escassas leituras, desembarcara recentemente do “Navio negreiro” do Castro Alves, trazendo no lombo um baú cheio de estranhas e absurdas conclusões.

Batista Jordão, o comentado autor de Várzea da mansidão, no entanto, não se rira do Zé Antunes.  Pediu que prosseguisse falando a respeito do frio, mas Zé Antunes, magoado, recusou o convite do poeta.

Todos sabiam que Jordão, publicitário, mulato de olhos grandes, unhas manicuradas, era o amante, tímido, de Ana Rosália, a dona e responsável pelo barzinho afro, cujos frequentadores, vindo no geral da periferia, por lá demoravam algumas horas. Abasteciam-se ali com as novidades, pegavam panfletos da raça quando houvesse ou tão só se aqueciam com o sentimento de que finalmente um “rumor negro” estava agitando a mesmice da cidade.

Ana Rosália era bonita, chegava, sem desgaste, aos quarenta anos, tinha um filho de treze, de um marido desaparecido no mundo quatro meses após o nascimento da criança.  Sozinha, pôs-se a enfrentar da maneira mais prática a nova situação: fez-se quituteira.

Juntou-se, depois, a duas primas chegadas do interior, abriu uma pensão; mais tarde, com a venda da pensão, comprou o Recanto do Bem-te-vi, que, por sugestão de Laudino da Silva, seu primo universitário, passou a ser chamado Malungo.

Quando Zé Antunes começou a denunciar o frio, houve apenas perplexidade. Que frio? Que evidência havia de tal absurdo? Doidice! O negro delira!

Alguns da Toca das Ocaias foram duros, ou mesmo cruéis, na avaliação da anunciada descoberta, envolvendo o frio com o mais prazeroso hábito do Zé Antunes:

– O frio de que ele tanto fala, ao contrário, deve ter vindo do bafo de conhaque, de que, convenhamos, Zé Antunes anda abusando.

Noticiou-se, no entanto, um caso concreto da glacial “ameaça”. Difícil de aceitar, mas afirmaram ter visto.

Se o crioulinho Josué Estevão montou tal cena, era gênio, pois impossível sofrer tanto, apenas para se mostrar, sem cachê, sem nada.

Coruca, Batista e Romário, uns garotos ginasianos, haviam marcado encontro com Laudino na praça Lundaré, perto do Bar Malungo. Algumas entidades negras, após discussões, apresentação de dezenas de projetos e, por fim, uma demorada angariação de fundos, tinham feito erguer na Lundaré uma estátua de Zumbi dos Palmares. Foi difícil deixá-la ali, mas, conseguida a permissão da Prefeitura, o pessoal se reunia, à noitinha, para dizer poemas afros, mostrar textos novos inspirados pela Afro-brasilitude ou, como queria Laudino, Africanitude:

– Os pés nessa miséria, o coração com a mãe África! Quem ainda nos dá forças? Houve falência e liquidação. Se o coração, sem que soubéssemos, não pulsasse distante, na tribo, ai de nós!

Reunidos em torno das ideias de Afro-brasilitude ou Africanitude, alguns jovens, então, formaram um grupo: o Grupo Malungo.  Coruca iniciava seus escritos e queria mostrá-los a Laudino. Batista e Romário, fascinados pelo ruído em torno de algo a que jamais haviam assistido e que jamais poderiam imaginar em sua vida na periferia, chegavam para conhecer os intelectuais do recém-fundado movimento literário negro, de que jornais e revistas andavam falando.

[...]

– Poesia não tem fronteiras... Olha, que é aquilo?

E voltaram-se todos para Josué Estêvão.

Aproximava-se do bando, batendo os queixos, um ruído seco que se ouvia a distância de metros. Retalhos de flanela enrolavam-lhe as mãos, a cabeça achava-se coberta com três gorros grosseiros de lã amarela, porém, o mais extraordinário: saíam-lhe dos tênis várias tiras de couro de gato, imitando canos de botas.  Subiam até a barriga das pernas de Josué. Magro, desajeitado, avançava com dificuldade, a cabeça pendida.  Algo absurdo, algo inimaginável sob o calor de setembro. Via-se, grudada no rosto, brutal, a vergonha de se achar em tão esquisito molestamento.

E, de fato, alguém gritou, já de longe, como farejando a gravidade do ocorrido:

– O neguinho está perdido!  Isso é  mais que gripe; é Sibéria...

Nesse instante, o idealizador do Grupo Malungo expunha aos companheiros o primeiro verso do seu poema “Eles verão!”

O despropósito das vestes, o treque-treque dos dentes, toda a figura de Josué inutilizaram o verso e Laudino, saído aos poucos da estupefação, pôs-se a mirar atentamente o friorento.

Os garotos ginasianos aproximaram-se, temerosos.  E Josué chegou: nos olhos, mais do que no frio, havia algo muito, muitíssimo estranho.

Laudino dobrou o papel com o poema que estivera a ler.  E, a voz rouca, aos berros, anunciou o impossível, a quase lenda, o fato suprainsólito que arrastaria a comunidade à beira da treva:

– É o frio!  É o frio, irmãozinhos, é o frio!

(A descoberta do frio p. 23-28)