Civilização

Oswaldo de Camargo

 

Aos "malungos" Odacir, Aristides,
Thereza Santos e Dalmo.


Subi na "Neurotic's House", porque Fred foi com a minha cara. Foi, pousou a mão no meu ombro, fa­lou logo:

— Gostei de você, preto, gostei mesmo...

O mundo bravo comigo, o desencanto reinava na minha vida. Exemplo: o maestro Borino, que me alu­gara o quarto, me enxotou e largou nos meus ouvidos umas palavras, com jeito sofrido, mas largou:

— Assim não dá, Paulinho, a gente quer ajudar, mas vocês...

Aí está, vocês, pretos, pessoal de cor... Se traiu o maestro, claro, se traiu. Vocês... ou seria: vocês, músicos, artistas? Não! O maestro Borino não me aguentou, claro, na sua sala deslumbrante. Alguém lembrou a ele o destôo, o desequilíbrio no ambiente... é claro.

Peguei, então, minha mala, e da estante da sala re­tirei os meus poucos livros, com um raspão, como re­colhendo faíscas pra meu começo de briga.

— A gente quer ajudar, mas vocês...

Parti, então, para um hotel, depois de examinar o cheque de cem cruzeiros, assinado por Borino, pelas lições de Harmonia que eu dera em seu lugar. Quase cuspi no cheque. Dormi então muito mal, levantei-me três vezes pra urinar. Palpando as paredes sebentas do hotel, senti que minha vida mudava. Senti mesmo que minha existência ia apodrecer, se eu não cuidasse dela, se eu não gostasse um pouquinho mais de mim... Minha vida começava a apodrecer. Minha vida ia apo­drecer, como uma fruta machucada, rolada pra debaixo da cama, por alguma criança. De costas, na cama, acom­panhei o vôo da barata, ziiimmm, tão breve. Minha vida também vai ter um vôo breve, pensei, seria bom se eu morresse. Sou um sujeito feio, fendido por com­plexos, sou um preto fodido, isso, fodido...

Dona Aída, a mulher do maestro Borino, falou que eu precisava gostar mais de mim. Bolas... Eu gostava era dela, mas com pureza, por Deus! Que olhos boni­tos que ela tem, que dentes, e que riso de semi-Gioconda... Eu gostava era dela, com pureza, e nisso nunca fui sacana, por Deus! Podia ser minha mãe...

Às vezes uma treva me assaltava e eu ficava mais escuro. Tenho fases dessas: sou um sujeito espontâ­neo na multidão, dou meus gritos contra o ar e cumpri­mento as coisas; súbito fico preto, no sentido defeituoso: sou um sem irmão, solitário entre o povo, na rua que gera tumultos, sou um moço desgraçado...

Então, muitas vezes dona Aída chegava com a chávena de prata (tanto luxo comigo pra quê?) e me trazia um chá, um comprimido. Eu quase chorava de sentimento, mas ela fazia que não enxergava e pedia que eu tocasse “As lembranças do castelo antigo”. Meus olhos úmidos, minhas finas mãos, meus braços tornavam-se asas de anjo, se ousassem tocar em dona Aída. Nada de sacanagem, nada de pensamento sujo. Podia não gostar de mim, mas de dona Aída eu gostava. Gostava dela, sim, e me comprazia comigo mesmo na cama, evitando pousar a imaginação sobre ela. Sou um sujeito confuso. Mas me resta no pensamento a imagem de dona Aída, sem respingo, sem jaça no meu coração.

Então eu tocava “As Lembranças do Castelo Antigo” e meus dedos, nos sons graves, arrebanhavam trevas, dragões e fossos. Dona Aída não se movia. Meus dedos ressuscitavam febres de princesas, paredes nuas e frias de masmorras. Mas o amor, ao fim, fremia sobre as teclas e ia, triunfante, subindo aos sons agudos, para a peroração gloriosa.

— Que coisa linda, Paulinho!

— Dona Aída, sou o seu músico. Essas lembran­ças "tuas são".

E eu ria pelas "tuas são", palavras de cavaleiro medievo cortejando dama. Mas, comigo, nada de corte. Ela podia ser minha mãe e eu a amava, talvez, como a mãe que me morreu muito cedo. Outra coisa: eu era casto e dona Aída sabia. E se aproximava de mim, às vezes, com os olhos batidos e tristes, Borino bebia e passava a noite fora. Eu ficava demente de medo, pois era o meu fim, pois não podia ser assim: Borino nas boites e eu na casa, sob o mesmo teto com Dona Aída. E eu pedia a Deus que Borino se comportasse, que aqui­lo não ia dar certo. Pedia que Borino voltasse a ser o sujeito tranquilo que conheci nos "Concertos Mati­nais", os cabelos levemente prateados, indicando juízo, o riso bondoso comigo e com os outros rapazes, o peito largo onde cabia muita compreensão.

— Moço, você tem talento, poxa... E está se per­dendo nessas liçõezinhas bestas... Vem comigo, rapaz.

Fui. Era maio. Treze de Maio levei-o a uma con­ferência sobre "Negritude na Modinha", pelo Eduardo Embondeiro, nome de guerra, que o verdadeiro era José da Silva. Borino fungou muito durante a confe­rência, balançou a cabeça e coçou a testa enrugada como a destrinçar enigmas.

— "Negritude"... Você vai sair de "Negritudes" e outras bobas atitudes. Vai morar comigo... Você se perdeu, rapaz, você está perdido nesse chão. Desse jeito você não chega a ser nada, ouviu? Nada!

— Mas eu sou negro e isso me diz respeito...

— Não reparei que você era negro... É, interes­sante, você é negro...

E ironia, como uma clava, me fendeu a resistên­cia. E ele me levou pelo braço e alugou o quarto vazio de sua casa e de manhã perguntou: — Como é, gos­tou? E sua mulher, dona Aída, trouxe o café pra nós dois e se sentou também, mas isso como num sonho, porque tudo passou e hoje ando com outros passos. Hoje respiro o ar de loucura na "Neurotic's House".

*Mas não posso deixar de voltar a dona Aída. É como uma flor que pende sobre o meu sono e roça-me a face na hora do pesadelo. Guardo daquilo uma in­descritível tristeza, eu, por natureza um debochado, pois o deboche tornou-se-me arma poderosa e fêz-me subir, com modos de gigante, na "Neurotic's House". Aprendi a rir do mundo e de mim mesmo. Mas há um momen­to em que meu coração cresce pra abrigar a imagem dela. Há um momento em que invento castidades nessa casa onde se encontram aleijões morais disfarçados co­mo bolinhas de barro cobertas de açúcar. Dá pro ga­roto, ele pensa que é bombom e, clack!, comeu barro e a garotada ri dele: Comeu barro! Comeu barro! E ele é bobo, bobão. Eu fui esse bobo... Evoluí modos de comportar-me. Agigantei-me no meu domínio. Casto e duro comigo, meus olhos cor de aço roíam, ao baterem nelas, as crostas das sujeiras do mundo. Eu, o rapaz de aço. Eu, o negro que se desejou paradigma e foi chamado de fresco e outras amenidades que os párias mentais armam contra o sujeito que se contém e não avança o sinal...

Mas, hoje, estou sentindo o bafo da loucura na mi­nha cara, hoje minha carapuça é de desânimo, nojo. Sou um sujeito gretado e me defendo entre muitas sa­fadezas. Procuro espécimes raros de desastres. Cata­logo-os para Fred, o doido, que me acha imprescindível e me paga salário muito alto.

Subi na "Neurotic's House", porque sou um preto inteligente e agudo (opinião de Fred) e também de­samparado, após tentar a beatitude. Fred leu meu livrinho de versos, “Um homem tenta ser anjo”, riu alto, gargalhou até ficar roxo, perguntou:

Você foi isso? Piada! Ah, ah, ah, piada! Pi-a-da! Mas eu subi, tenho dinheiro, graças a esse louco rico e desatento à minha esperteza.

Saí de manhã, picado de pulgas e com o nariz entu­pido de mofo.

— Vocês, pessoal de cor...

É isso: me levou com ele, fez que me deu a mão, mas por dentro se remordia de ter avançado o passo sem avaliar minudências... Não viu que eu não cabia naquele quarto, naquela sala, não viu que um preto ocupa muito lugar, se o deixam livre e ele é um sujeito que aprendeu a "golpear", isto é, educado, brunido de fi­nezas, coberto de ouro, que é a educação, sim senhor. Preto é um sujeito muito danado, se descobre o engonço do êxito e trabalha na sombra, acobertado por "sim, se­nhor", "o senhor é muito bondoso comigo", "nem tanto, minha senhora" e reverências que empinam o traseiro, mas empurram o carro do êxito pra frente.

Saí, pois, de manhã, sentei-me num banco da Pça. da República, onde conversei com o José do Patrocínio (Pa­trocínio, sim senhor, que sarro!, o cara nem sabe ler, be­be como um porco, fede a catinga e os engraxates cha­mam ele de José do Patrocínio, oh José do Patrocínio!).

Abri meu Cruz e Sousa, aquela edição de papel mendigo, do Zelio Valverde, li dois poemas, não buliram comigo. Eu estranhei: se Cruz e Sousa não bole comigo é porque estou bem ruinzinho, estou começando a ficar podre e um sujeito podre precisa ganhar dinheiro, se não fede, descasca, fica gretado e todo mundo fala: aquele é um sem eira nem beira e, se é um preto: é um preto "Tu" e não um preto "sim senhor". Desculpem de eu falar assim, mas estou amargurado, amargurado mesmo. Prouvesse a Deus que eu me desgovernasse feito um idiota, mas no fundo abissal me encontrasse como um homem, um homem cutucando o chão do abis­mo, catando caramujo, mas um Homem, entendeu o senhor?, um Homem!

Esses pensamentos de ser idiota, etc., me aflora­ram ao me sentir surripiado do cheque do Borino. Na Pça. da República. O José do Patrocínio não podia ser, pois eu lhe acabara de contar as peripécias do seu xará ilustre:

— Olha aqui, um negro aprumado, comprou um carro, já naquele tempo, tribuno (outro dia te explico o que é tribuno), beijou a mão da Princesa... Você, por acaso, não encontrou um cheque?

Sentei-me então noutro banco, desanimado. Peguei o livro de Cruz e Sousa, mirei a dona que passava, linda (ó Formas alvas, Formas brancas, Formas claras) e percebi que eu estava "emparedado”. Percebi que os “miseráveis, os rotos, são as flores dos esgotos", percebi que eu apodre­cera naquela manhã e que algo me ia acontecer, naquele instante, algo que me ia entortar o focinho da vida pra outro lado.

*

Era um sujeito de uns cinquenta anos. Cabelos loiros, olhos azuis, lábios finos e nariz fino, a testa larga, revelando inteligência muito alta. Homem bo­nito. Percebi, sem esforço, que era um branco. Parou na minha frente, a bengala de junco na mão, alçou o chapéu com uma inclinação graciosa:

— O senhor lê...

— Leio.

Adiantou alguns passos, um sorriso malicioso nos lábios:

— O senhor é um desocupado. O senhor lê... Em que trabalha? se me perdoa a indiscrição...

— Professor de Piano e Harmonia, respiro um pou­quinho pra recomeçar.

Fixou-me alguns segundos e nos seus olhos azuis eu vi meu rosto preto, úmido de águas do Reno...

— O senhor é músico. O senhor lê... Então, que acha de Bach?

— Bach? — e fiz uma cara de mui complexa aná­lise — Bach devia ser Mar e não bach = riacho. Es­creveu o Antigo Testamento da Música. A música deve tanto a ele como uma religião a seu fundador. O "kantor" de Sto. Tomaz continua sendo, ainda, o maior dos compositores...

Aí me falhou a memória e as ideias catadas breve­mente em Kurt Fahlen, Schumann e mesmo Caldeira Filho se misturaram ao meu desânimo, de modo que eu não sabia mais nada de Bach.

Olhei, então, a manhã que caminhava rumo à tar­de, os edifícios com suas barrigas planas de concreto, onde o sol batia feito um borrão amarelo, olhei a Praça da República. No banco, perto do coreto, o José do Patrocínio roncava.

— Bach é Bach, meu senhor.

— Eu gostaria de lhe falar... em outro local. Gos­tei de você, preto, gostei mesmo — e me pousou no joelho a mão peluda.

— Meu cartão, o cartão de Pred. Já ouviu falar na "Neurotic's House"? Pois me procure, então, me pro­cure...

Estendeu-me a mão, inclinando-se. E eu senti um cheiro áspero de colônia e seus cabelos, fixos como por goma, pareciam uma carapuça de ouro. E já a alguns metros de mim, repetia:

— Gostei de você, preto, gostei mesmo...

Hoje estou na "Neurotic's House" e Fred me apre­cia. Chego de manhã e minha função, além de bater as cartas e tocar piano, no almoço, é conversar com os frequentadores. Conversar oficialmente e sofismar, também oficialmente. Devo ainda aprender citações em várias línguas, ler a "Enciclopédia", pelo menos duas horas, e tocar em Klavarskribo, esse método para instru­mento de tecla, revolucionário, inventado pelo holan­dês C. Pott.

Em resumo, Fred me exibe como fruto de seu des­velo, cria sua. "Pegou-me pequeno a uma preta bêbeda, tuberculosa e sem marido, mas não me pôs em colégios, nada disso. Me levou com ele, me deu roupinhas bran­cas e, arrostando a fúria da família, ergueu-me às fi­nuras da educação, como filho seu muito querido, mui­to amado".

Meu ofício, então, é contar aos frequentadores da "Neurotic's House" o meu caminho amargo, o meu início, como um garotinho preto e ranhento, calça ver­melha, com um remendo verde no traseiro (verde = es­perança!) e pixaim ignorante de pente.

— "Nasci, minha senhora, a bem dizer por nascer. Meu destino surgiu furado, cercado de zeros, um des­tino zarolho, turvo e besta, minha senhora. Depois Fred me encontrou na gélida madrugada, eu vendia rosas diante de uma boate e cantarolava "God save the King", estropiado, mas muito engraçadinho. Minha mãe apren­deu o "God save" na casa de uma madame inglesa, onde trabalhou antes de ficar doente, bêbeda, tuberculosa e sem marido... Meu destino surgiu furado, madame, mas eu o consertei com a ajuda de "papai" Fred."

Quando minha ouvinte ria eu ficava satisfeito de minhas "verdades" e ela, por seu turno, feliz de se dei­xar levar...

*

Subi na "Neurotic's House", porque Fred foi com a minha cara, foi e ainda vai:

— Gosto de você, preto, você provou que um preto pode livrar-se de sua carga... Gosto de você, preto, gosto mesmo...

E ele me ajeita o nó da gravata, sorrindo, muito loiro, muito fino e bonito, como um branco.

É sua mão, no meu ombro, me belisca a carne até o osso, testando a resistência...

— Gosto de você, preto, gosto mesmo...

*

Um odor áspero, de colônia, me envolve, como nuvens de Civilização.

(In: O carro do êxito, p. 63 - 71)