Maralinga

Oswaldo de Camargo

De manhã, ainda a cidade escura, meu pai me acordou. Trouxe o meu peniquinho, pediu que eu mijasse depressa e me lavasse ainda mais depressa, que a casa do Dr. era longe e eu não podia atrasar, senão ficava mostrado que a gente não se interessou. Então engoli meu café, peguei o saco com minha roupa, os dois boizinhos de sabugo e, atrás de meu pai, saímos de casa, que ficou solitária dentro da neblina matinal e entre as três mangueiras desfolhadas pela geada do mês. Não me esqueço que meu pai trouxe o peniquinho, ato desusado, delicadeza de quem tinha desamparos por dentro e muita coisa doendo, por me deixar ir tão pequeno e magrelo ao povoado do Dr., lá servir e tentar ser alguém em Maralinga.

Então olhei os sobrados, os terraços, a matriz de São Gonçalo, com sua barriga de azulejo azul, a praça, que os jeremins tentavam atapetar com a floração amarela, após o bravo frio que desrespeitara os jardins e as latinhas com gerânios nas janelas. Olhei os sobrados, então olhei a praça e o coreto, olhei as ladeiras, enquanto meu pai recolhia o seu desgosto ao coração, que naturalmente sofria de me deixar. Minha mãe morrera na Semana Santa passada, na quarta-feira, e eu, quando vi tudo escuro, as velhas trajando panos de crepe e as moças conversando d'olhos baixos, os meninos com cara de susto, vi que haviam acontecido no mundo coisas muito sérias. Até o sol, pareceu-me, brilhava menos, os passarinhos dormiam cedo e eu pensei que fosse por causa de mamãe...

Mas meu pai caminhava quieto e eu ouvia nossos sapatos na pedra como saudações ao chão que deixávamos naquela manhã que até hoje me espanta, tão notória está na relembrança, tão nítida e confrangedora, tão única e desamparada na minha vida. Hoje meus olhos descem à ladeira que subimos pra galgar a saída de Rosana, cheia de rosas murchas nos jardins, cheia de coisas doendo, onde brinquei, briguei e defendi-me dos sustos que a vida prega às crianças sem parada, cuisarruins, infernais, mas que sentem, se o pai pega o seu braço e fala brabo: Vamos, doutor espera, tá chorando, menino?

Hoje estou me observando lá.

Dona Miquelina me desejou boa sorte, porque sabia que eu passaria ali, na rua Fortuna, em frente à sua casa decadente onde havia um piano belo e sonoroso nas tardes. O capitão, de camiseta, riu pra mim, fumando o seu cachimbo na janela e falou palavras de animação e tranquilizantes na emergência de eu ir de vez pra Maralinga.

Andamos mais de horas, o sol já estava na carapuça das montanhas, quando a brancura das casas anunciou Maralinga, povoado antigo, onde eu ia tentar me arrancar do desamparo e, se desse certo, prosseguir depois como homem mesmo e não ficar feito o primo Zequinha na fazenda, cultivando bicho-do-pé na sola, e pondo no mundo uns negrinhos mirrados, brincando ali na barroca, até que arranjassem, na oficina da necessidade, uma enxada e um talhão de café pra existência toda, sem termo, pros séculos seculorum, sem amém de anjo jubiloso, porque isso é desgraça e Deus não quer mas deixa. Foi dali, de Maralinga, que eu parti pra hoje.

O doutor era velho e tinha olhos azuis, pequenos e úmidos, debaixo dos óculos de aros dourados. O doutor chamava-se Ricardo, era dono daquilo, de Maralinga, e dos corações dos habitantes, pois era famoso de bom e eu me senti contente quando ele falou:

– Pois este é o menino, João? É pequenino...

E ele me pôs a mão na cabeça, me olhou lá de cima, pensativo, e depois, pra meu pai:

– Então, João, está resignado?

Meu pai parece que não 'entendeu o que era resignado, mas sorriu, pegou minha mão e respondeu ao homem rico:

– Pois é, doutor.

Doutor Ricardo me olhou de novo, gritou uma ordem rumo à casa branca maior e comentou pra ele mesmo, baixo, como quem admira pensamentos:

– O menino é pequenino, não imaginei... – mas, voltando-se a meu pai:

– Volta a Rosana, João?

– Volto hoje – respondeu meu pai – e vi que ele catava reforço difícil no coração, pra me deixar ali sem tremer sem molhar os olhos mansos que eram os dele.

– O menino então fica, doutor. É bom menino, o senhor pediu, eu trouxe ele. O que o senhor fizer...

E meu pai susteve a palavra, pôs a mão na minha cabeça, pegou o saco com minhas coisas:

– O menino é bom, sem luxo de mãe...

Pegou os meus boizinhos:

– Brinca pouco, pode usar ele, doutor.

Então o doutor Ricardo pegou também meus dois boizinhos, meu saco com as coisas e, em cima do meu espanto:

– O menino fica feito filho, João.

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Meu pai, na estrada, tremia o corpo, de tanto chorar.

(In: O carro do êxito, 1972, p. 21-4)