Parte da crônica

Contem, costas D´África,
a história do que eram
 
nas florestas e savanas
pássaros num céu
azul sem obstáculos...
 
- É a história dos que tinham
o direito de ter
seu ninho, seu bando e horizontes
para suas asas de ébano.
 
Conta, Oceano Atlântico,
a história dos traídos
a história dos que partiram
em navios de jamais...
 
- Arrepios de frio?
vestes de chibata.
Sede e muita fome?
quando chegar come.
E grilhões nos pés
para não andar
para não nadar
para não voltar.
E algema nas mãos
para não erguer
para não dizer
adeus.
 
Conta Oceano Atlântico,
a história dos roubados
a história dos que foram
em barcos de não mais...
 
- Negro no porão
branco no convés.
Branco no porão
de chicote na mão.
E negro no convés
(a morte
a doença
a peste)
para descer ao âmago das águas
do mar que lava e acolhe
qual uma placenta.
 
Conta, Oceano Atlântico,
a história dos que sem-onde
num sem-fim balanço
de mar sem-mais-fim...
 
- É a história dos que sem-bússula
dos que sem-sol-nascente
dos que sem-uma-estrela.
É a história dos que só-noite
como sua pele noturna.
 
Conta, Mississipi,
rio de terra má,
Tudo que sabes dos desamparados...
 
- Ao balanço do barco
sonhavam estar embalados
no seio de Deus
e de olhar espichado
a deslizar em minhas águas longas
entoavam cantos compridos
como um rio sem fim.
 
Contem, cais de porto, logradouros,
a história dos vendidos...
 
- Escravo forte e são
para todo trabalho de mão.
- Escrava preta-tição
para acender patrão.
- Preto velho de muita ciência
conhece lavoura e doença.
- Esta, hábil e maternal,
para mãe-preta ou cozinhar.
 
Contem, lavouras ianques
antilhanas
brasileiras,
a história dos rurais...
 
- Ninguém se lembrou de que
poderiam manchar o algodão
com sua presença escura.
Que poderiam sujar o açúcar
estragá-lo
com sua vida amarga.
Ou corromper o verde milharal
com seu viver sem esperança.
Isto porque suas mãos
eram um ouro áureo de carvão.

  

(obra reunida, p. 245).