The walk talk man

Entrei no shopping pela porta da frente
Lá estava ele como sempre: fechado e bem fardado
Fora dali, lá na área, no baba do pagode outra pessoa
Agora era o homem do rádio transmissor – The Walk Talk Man
Sente mesmo um certo orgulho de si aquele irmão bem colocado
Se encaixa como limo no mármore entre samambaias
         e as cascatas
Eu vi quando ele passou um rádio lá tentando se ocultar
         nas dobras da parede
E ele se duplica fixo firme múltiplo presente e premente – sentinela
Em cada etapa de meu passeio pelo campo minado de inimigo
Eu prevejo um tiro de morteiro uma bala devidamente perdida
Mas passo ante as vitrines que me espelham de corpo inteiro
         de cabeça erguida
Embora eu invadindo aquele espaço mais pareça
         o cristão lançando às feras
O terrível contrassenso daquela bela paisagem romana
Algo que se faz bárbaro na ostentação daquele templo ariano
Em cada canto uma câmara oculta enquadrando classificando
          o meu corpo
Pesquisando espreitando esquadrinhando mirando destacando
          me pedindo um sorriso
Não entendia muito bem a causa que envolvia a minha pessoa
Afinal de contas já acreditei que todos eram irmãos
          neste país de miscigenados
Tudo sempre e tanto correria como manda o figurino
Eu realmente acreditava
O culpado maior de minha intranquilidade foi este mulatinho
         Isaías Caminha
A rebeldia de Lima Barreto botou fogo na minha consciência perdida
Eu também era uma vítima alheia aos atos e sentimentos
         sem causa explicada
E me sentia como um estrangeiro naquela que diziam a minha terra
As plumas os chapéus os ternos os sapatos dos que desfilam nesta casa de horrores
Parecem povoar de animais vorazes a grande floresta
         em que me encontro
Mas esta mata não é ponto de chegada
É passagem no trajeto de nossa permanência
Porque é nosso o mistério de caminhar descalços
sobre as brasas acesas da fogueira de Xangô
E para o coração de cada irmão sempre sério e bem fardado
The Walk Talk Man
Há uma flecha redentora de Oxóssi
          e Ossain queimando a erva da memória.

(Gramática da ira, p. 86-87)