Estrangeirismo

Quando pequeno
Meus ouvidos mirins já captavam falácias
Pretinho incomodado
Esperava ser escolhido por eles
para as brincadeiras
deles

Nas festas da escola
Deles
Eu sempre de par de dança da minha irmãzinha
Lucinha

Já me alertavam de inúmeras formas sobre a diferença
do povo lá de casa
Mesmo assim, também cobicei na adolescência
a pele rosada
das menininhas mais cobiçadas do colégio
deles

E também acompanhei dos concursos de misses
eles
pela tevê
deles...
e me iniciei nas revistinhas dinamarquesas, francesas, suecas
deles
Sonhava e mais nada
Minha aparência não sustentava as expectativas
Minhas

A escrita de Abdias
chegou antes que o fogo do ferro forjasse os cabelos - meus
E o movimento pela união e consciência – nossa
foi meu primeiro templo

Na redescoberta de mim mesmo
desinteressou-me de vez
as princesinhas nórdicas
deles

Aos poucos fui entendendo que
só poderia ser Luiz Gama o poeta dos meus avós
dos pais dos meus avós
meu 

Só no pretérito
e distante espaço
Reconstruiríamos um pouco de orgulho e sentido 

Reconheci bem o lugar
que esta terra gigante reservou para mim
na sua diversidade
Situando nas quebras da comiseração ou intolerância – deles
Eu
a sempre grande estranheza

Passei a dizer todos os dias
Mesmo com certa dúvida no início:
eu sou um homem forte sábio e bonito
às vezes ria de mim mesmo
(como eles fazem)
Depois acreditei de fato
Aprendi esta sisudez de mano irmão brother
(que os apavora)

Agora acredito
Sem o vigor em pele carne e osso
Aquele que sabe das nossas coisas
(e das deles...)
Sei que sou belo
(e em que consiste a beleza deles)
Já não desejo participar das brincadeiras
que não sejam de minha infância reencontrada
depois que aprendi a olhar sem receio para o que há de íntegro
por entre as quebras de nossas lembranças

Depois de Abdias:
Garvey, Cèsaire, King, Malcom, Fanon, Kwame Nkrumah,
Florestan, Carlos Moore...
Para o homem violentamente transplantado
não pode haver a solidão da pátria ou fronteira nacional
O involuntário êxodo da nossa irmandade
fundou o sentido de nosso êxito transnacional
O filho solto no mundo de uma mãe
que agora mais do que nunca
sabe bem onde encontrá-la
múltipla mas preservada
Matriarca

agora mais do que nunca
sabe de sua unidade sagrada
Orixalá

Percebi o valor da minha cara
Recusei a imitação das máscaras deles 

O discurso da mistura é apenas a capa da rede de negócios
Para conter nossa Ira
Para a permanência e exuberância
Deles!

(Gramática da ira, p. 72-75)