Filhinha

-para Lúcia e Luiza

Noites e noites acordado passo horas a fio observando minha filhinha
                  dormindo
Após noite a fio acordado durmo o sono de pai para vê-la logo
                 ao raiar do dia
Digo para ela todos os dias o quanto ela é linda e pergunto quem é
                a minha pretinha
Suas pernas crescem seus braços crescem seus cabelos crescem
                sua curiosidade cresce
O seu cabelo cresce e não nega a raça de quem nasceu para ser
                a deusa do ébano
O seu cabelo cresce e não nega a graça de quem saberá ser a
                muzenbela
O seu cabelo cresce e não passa de graça pelo olhar da cidade adversa
A minha filhinha crescida já vai para a escola se espanta se anima
                se rebela se aborrece
A minha filhinha parece que já nasceu cantando e dançando
                as músicas de que gosta
Preta preta pretinha eu vivo o tempo todo pensando nela
                pretinha que me faz um navegador
Ao fim do dia, nossa constante lição, falo dos nossos avós
                E de nossa antiga casa
Os seus traços definidos deflagrarão o inevitável dia
                de seu inevitável teste
Os seus traços definidos lembram a mim a cada dia
                minha paternal tarefa
No playground e na classe chegará o dia de seus traços entrarem
                em choque antitético
No bairro e na escola chegará de seus trajes entrarem
                em choque estético
No corpo e na alma chegará o dia de seus gestos entrarem
                em choque étnico
Enquanto isso insisto nos sons cores palavras móveis
                dos palácios antigos
Por ora apenas seu cabelo cresce enquanto a sua volta tecem
                diversos comentários
Por ora apenas vagam na cabeçada vizinhança certos conceitos graves
O cabelo que em sua cabeça cresce incomoda justamente por ser
                a sua própria graça
O cabelo que em sua cabeça cresce livre cresce sem a violência do ferro
O cabelo que em sua cabeça cresce ela já percebe é o elo
                 que nos agrega
Dentro da cabeça, que seu cabelo cresce, cresce também o sentido
                 de pertencimento
(Não será feito dela o que quase foi feito de mim, Bombril, cabelo duro, ruim)
Em seus aniversários percebi passo a passo os sentidos dos ritos
                 de confraternização
No seu último aniversário minha filhinha ganhou
                 mais uma boneca bárbie
Minha menininha gosta tanto delas em seus traços excessivamente
                  familiares
Os cabelos longos louros e lisos da boneca fazem o delírio
                  da meninada
Os cabelos longos louros e lisos da boneca fazem o delírio
                  da minha filha
Os cabelos longos louros e lisos da boneca urdem as malhas
                 que o modelo prega
Virá a inevitável angústia adolescente do “eu queria tanto ser assim”?
Virão como sempre vêm, com choro, os maus tratos na escola?
Virá o fogo que nos assola esticar-lhe os fios capilares
                 de sua nossa história?
Estarei eu, novamente, diante de mim, pretinho incomodado no
                  meu sono de justo
Xingarei brancos e embranquecidos e odiarei por dentro,
                 novamente, este país nojento
Depois ecoará no vazio do meu peito um verso irônico
                 para Silvio Romero e Gilberto Freyre
Depois falarei da Musa da Guiné de Luiz Gama
                 e da Clara dos Anjos de Lima Barreto
Depois falarei da Mãe Stella do Axé Opô Afonjá
                 e da Makota Valdina do Tanuri Junçara
Riremos juntos nesta terra que também é nossa mas que precisa
                 de uma faxina
Sei que estarei bem e que a Ira nunca será barbarismo na rebeldia
                 de nossa família
Estarei feliz por saber que nunca deixei de dizer a verdade
                 para a minha criancinha

(Gramática da ira, p. 52-54)