Instinto de negridade

“Não há dúvida que uma literatura, sobretudo literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é o certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos, no tempo e no espaço.”

Machado de Assis

Não há dúvida que a revolta de um povo massacrado
Sobretudo um povo sacrificado na sala de espetáculos da casa grande
Entre móveis de jacarandá, castiçais de prata e cortinas de seda
Deve alimentar-se primeiramente das estocadas que ainda lhe ferem a alma

Não há dúvida que o meu verso é também o meu quilombo ardente
Atento às doutrinas absolutas que me querem escapelar o pixaim
Queimar na fogueira do esquecimento meus sentimentos íntimos
Alisar minha língua no ferro do feitor que mantém acesa a fogueira
Conformar meu silêncio na pasta quente para esticar meus gestos

O que devo exigir de mim mesmo e do meu estilo antes de tudo
É certo sentimento íntimo que me faz ciente do conflito que trago na cor da pele
O que me torna um antipatriota convicto em conflito com o teu país e a tua cor
É ser um aliciador dos corações curtidos no limão e no alho que lhes tempera
Porque meu verso é levante ainda quando distante no tempo
no espaço na composição do sangue.

(Gramática da ira, p. 152-153)