SANTUGRI

NÃO É NADA, não é nada, a roda. Se o vazio ou o traço? Bom, do vazio Deus fez este mundão todo. Não é nada o traço? Mas a criatura só existe quando deixa marca, traça. Para mim, o traço, o vazio, a roda é tudo. Não é na­da, não é nada, é tudo. Gosto, sirn, sabe por quê? Porque, seu moço, a roda não tem começo nem fim. Começo, fim, a mesma coisa, é nada e tudo. Gosto, moço. Nela, meu corpo é meu parece que nele nem corre sangue, corre mel. O meu corpo, meu corpo/foi Deus quem me deu/na roda da capoeira/Rarrá!/ Grande e pequeno sou eu.

Meu nome é Santugri, moço. Posso dizer que o nome está ligado a meu segredo. Muito mais não posso contar, nem se quisesse, porque eu mesmo não sei. Mas posso di­zer, isto sim, posso, que este meu nome foi causa de mudança.

E que antes, veja só, eu me chamava Heraclo. Home­ro, meu pai, gostava desse nome, dizem, e insistiu com o homem do cartório para me registrar assim. Eu jamais gos­tei, meus amigos não gostavam, ninguém gostava, era di­fícil de chamar — Heraclo. Pior: não combinava com meu gosto pela brincadeira. Onde já se viu um homem chama­do Heraclo em roda de capoeira?

Mas foi assim mesmo, com essa graça desditosa, que me criei. Aqui, no Acupe. Isto aqui mudou pouco, moço: a mesma areia na rua, as casas de palha, o caranguejo no mangue. Só não tem mais escravo. Pois é, conheci mui­tos, sim. Meu pai? Não, era negro forro. Mas o velho Quinquim, que me ensinou as artes da brincadeira, era escravo. Jamais tomou conhecimento dessa tal de Áurea, de Abolição, essas coisas, porque tinha gosto em se chamar escravo. Se mudasse, dizia, podia perder a revolta, deixar escapar a ironia.

Pois foi Quinquim o meu mestre. Me levava pra mata, pró Alto da Campina, que hoje querem queimar para fazer indústria, trocar ar fresco por dinheiro, e ali praticava comigo. Às vezes virava pião no jogo e eu uma folha seca, que só de roçar o giro louco daquele corpo era lançado pra trás de cara e tudo no chão. Mas aprendi assim, e como até a me sentir bicho. Como esquecer? Era de noite, à beira do poço, a gente ouvia a zoada do sapo-boi, quando Quinquim me mandou tomar postura de sapo. E depois, arregalar os olhos, deixar a pele arrepiar e pensar que nem sapo. Por um instante fui sapo e enxerguei longe, com a maior clareza, no escuro da mata.

Graças ao velho, entrei no jogo, me fiz mestre na arte do chapéu. Conhece não? O chapéu apara a faca e depois vai direitinho no ouvido do outro. É, sim, surra de chapéu, minha marca, meu traço. Mas também fazia bonito na dança, pois a roda comporta tudo. Muitas, muitas vezes, dia de festa de São Benedito, bem lá na frente da capela, Quinquim formava a roda, com cavaquinho, ataba-que e ganzá. Berimbau não havia, o velho não gostava. Juntava gente pra ver, sim senhor, e eu ia ao chão manhoso, lento, acompanhando Quinquim. Era assim jogo em dia de São Benedito — coisa devagar, sentida, de voto, devoção. Coisa muito religiosa, com a gente murmurando "eh! eh! Camaradinho, camará!".

Assim, assim, moço, eu me enchi de mundo. Dei pra falar pouco. Céu fala alguma coisa? Falar pra quê, para espantar a minha alma, pra não ver o natural da terra? Precisava não, bastava me acender de grandeza. Mas ainda faltava. Quinquim me explicou: o nome. Heraclo não encaixava, era como passo em falso, era como pedra no meio da roda. Isso era lá nome de capoeira? Isto me desgostava.

Um dia, o destino — coisa poderosa, o destino — ajeitou as coisas. Estava num fundo de armazém lá no jebe-jebe das peneiras, tomando caninha com Quinquim, o farmacêutico e um gringo que passava férias no Acupe, quando tive de exemplar um valentinho. Coisa de poucos tabefes, ele se acalmou. Pelo meãos foi o que achei na primeira hora. Pois o desinfeliz voltou, azul de raiva, esírovenga na mão, pra me dividir a cabeça, como se faz com coco em beira de estrada. Entretido na prosa e na cana, nem dei pelo molecoíe, que chegou sonso pelas minhas costas.

O berro do gringo me salvou a vida: caí nas molas, vendo passar por cima o fio da morte, e botei o valentinho no chão, com uma meia-lua em cima da orelha. Dizem que ficou lerdo pra sempre. Azar. Se conto a história é porque foi importante o grito salvador. Disse o farmacêutico que o gringo chamou pelo Santo Cristo em língua de gringo. Mas Quinquim ouviu "Santugri", e assim ficou. Passou a ser o meu nome daí em diante. Santugri pra cá, Santugri pra lá — gostei. Ninguém era besta agora de me chamar de Heraclo. Não nasci outra vez? Pois tinha direito a nome novo.

Foi minha sorte, moço, pois o som dessa palavra casava fácil com meu corpo, repercutia bem na roda. Santugri. Quando Quinquim morreu, Santugri ocupou seu posto de mestre no jogo. Faz parte de mim, queira eu ou não. Passarinho não canta por gosto, canta por obrigação. Eu jogo capoeira por cerimónia, por destino. É minha sina, minha sorte. Morrendo, moço, não quero ir pra lugar nenhum — a roda já é meu paraíso.

(Santugri)