PURIFICAÇÃO

Deitado sob os escombros do barraco de madei­ra, João podia ouvir as vozes lá fora. Já duravam uma semana as operações de remoção das favelas, mas só na noite anterior tinha havido bombardeio. Helicópteros ofi­ciais e particulares despejaram centenas de artefatos explosivos, arrasando habitações e matando moradores. Alegava o governo que dera prazo suficiente para que to­dos abandonassem o Morro, mas devido à resistência feroz não restara outro jeito senão a força extrema.

Força purificadora, diziam os evangélicos. Após anos de expansões e proselitismo, uma diversidade crescente de seitas protestantes espalhava-se pelo país. Recentemen­te haviam se agrupado em torno de uma organização política, o Partido Evangélico, que tinha maioria no Con­gresso Nacional. Concorriam eleitoralmente com os católicos-carismáticos, também em ascensão, mas faziam consenso no culto ao Espírito Santo. Não mais Deus-Filho, nem Deus-Pai, e sim a terceira pessoa da Trindade, a ponta do triângulo que operava feitos miraculosos e leva­ra os crentes a falarem línguas estranhas.

A palavra de ordem era purificação. Casas de diversão e cultura eram compradas e transformadas em templos. A rede evangélica de televisão cobria o território nacional com men­sagens de regeneração dos costumes e das crenças de toda espécie. Os pregadores eram todos especialistas em marketing e técnicas de motivação coletiva. A network carismática, por sua vez, promovia a maior parte dos espetáculos para a ju­ventude. Cada banda musical portava o nome de um apóstolo.

Os movimentos religiosos cabiam como uma luva no tipo novo de mão que passara a segurar as rédeas do mando. Mandava-se agora cortar quaisquer vínculos com quem esti­vesse à margem das regras do pacto entre Deus e o Mercado. A pretexto de combater o narcotráfico no Morro, o governo queria apagar os traços do velho povo, gente sem recursos, sem qualificação escolar, inassimilável pela Nova Ordem. Es­timulavam-se ligas de higiene social, os ideais de pureza global eram incompatíveis com a sujeira popular.

Os evangélicos em especial queriam apagar todas as marcas consideradas negras. Por isso, havia agora ritos de apagamento. Um lugar com sinais de culto afro-brasileiro era perseguido, eventualmente arrasado a fogo e purificado com sal. Todos os negros que no início haviam aderido às seitas evangélicas terminaram sendo considerados suspeitos e fi­nalmente expulsos.

Fora grande a resistência nos morros e favelas do Rio de Janeiro. E de repente, as autoridades decidiram-se pelo exter­mínio puro e simples. As casas eram primeiro bombardeadas, depois invadidas por uma Guarda Cívico-Evangélica, que usava uniforme cinza semelhante ao da polícia militar con­vencional. A Guarda aprisionava ou, às vezes, atirava nos sobreviventes. Nada disso era considerado excessivo, ao con­trário, perfeitamente funcional, porque as pequenas unidades médicas que faziam a retaguarda dos exterminadores retira­vam dos corpos em boas condições órgãos para transplante cirúrgico em doentes abastados, integrantes da atual esfera produtiva da sociedade.

— Veja se há alguém se mexendo ali! — comandou uma voz.

João imobilizou-se na posição em que se achava e co­meçou a suar muito. Sabia que grande parte dos membros da Guarda era composta por jovens dos condomínios de classe média da Zona Sul do Asfalto, treinados em técnicas de es­trangulamento e tiro ao alvo. Muitos fingiam ser religiosos apenas para ter a chance legalizada de bater e matar.

Ouviu os passos bem próximos e as exclamações satisfeitas:

— Achei! Achei!

Era noite, mas através da fresta penetrava a luz de uma lanterna que deixava João perceber o vulto de um rapaz bran­co, forte e careca ajoelhado perto de alguém. Sorte, sorte, não tinha sido descoberto. Haviam encontrado um vizinho, já idoso, dono da birosca onde João costumava beber com amigos. Tinha o rosto congestionado pelo medo e implorava que o deixassem em paz.

O rapaz pareceu aquiescer, mas subitamente cavalgou o peito do outro, fazendo um gesto rápido e preciso com as duas mãos para o lado. O pescoço do velho quebrou-se com um ruído surdo.

Aterrorizado, João sentia que não deveria sequer respi­rar e permaneceu onde estava, imóvel como uma pedra. Uma pedra que no entanto parecia derreter-se ao fogo. Ele suava profusamente, encharcando o macacão abóbora de lixeiro da Limpeza Pública, que ainda envergava.

Havia mulheres na Guarda. João ouvira falar que algu­mas delas eram também impiedosas, mas a maioria limitava-se a assistir aos espancamentos e assassinatos, fazendo orações em seguida, vira justamente uma moça que agora aparecia por trás do careca e, ajoelhando-se ao lado do morto, come­çava a rezar. Manuseava um terço virtual: um contador digital de bolinhas que simulava um terço e facilitava ao militante católico rezar a qualquer hora, em qualquer lugar. A princípio símbolo de status, o pequeno objeto acabara tornando-se muito popular. A tarja magnética servia ao mesmo tempo para fazer saques de dinheiro em caixas automáticos de bancos e depo­sitar a doação nos templos.

A moça era muito jovem, mas obesa, cabelos longos e cor-de-milho, que emolduravam olhos muito azuis e um ros­to quase angelical. Devia ser "católica-carismática", pensou João, atentando para o terço. Além do mais, os carismáticos divergiam dos evangélicos pelo aspecto físico: homens e mu­lheres pintavam de cor-de-milho os cabelos para se assemelharem a adolescentes norte-americanos. Como fazia parte dos novos ideais de pureza social a aparência branco-anglo-saxônico-puritana, copiava-se aqui tudo, literalmente tudo, que viesse do Centro do Império.

A moça devia também trabalhar em banco ou em shopping center, deduziu, observando os detalhes da blusa cinza que passara a caracterizar os atendentes em serviços de muito contato com a classe abastada. Sob a alegação de se evitar tumultos, gente muito pobre, identificada como cida­dão não-consumidor, era proibida de entrar em shoppings e em bancos.

Ele próprio trabalhara muito tempo num banco como técnico em manutenção de equipamentos eletrônicos, até o dia em que veio a ordem de se demitirem todas as pessoas de pele escura. Os empregos típicos da classe média eram cada vez mais escassos, e agora dava-se preferência aberta a gente de pele clara, como sugeriam as televisões e os estrategistas de marketing. João terminou achando um lugar na Limpeza Pública e mudando-se do Asfalto para o Morro.

Os lábios da moça moviam-se rapidamente, no mesmo ritmo dos pequenos gestos que fazia com o dedo indicador sobre a superfície do eletro-terço, enquanto que os olhos, estranhamente cada vez mais azuis, pareciam perscrutar os arredores. Talvez ela estivesse tentando localizar sobreviven­tes, imaginou João. Isso não o preocupava tanto quanto os latidos que ressoavam ao longe. Poderiam estar chegando os pitbulls ou coisa pior.

Essa suspeita lhe acrescentou calafrios ao suor abun­dante. Um pitbull podia arrancar com as mandíbulas, durante o salto, um prego enorme encravado pela metade na parede. Na caça a favelados, haviam-se revelado mutiladores perfei­tos. Mas, com o tempo, descobriu-se um preparado que lhes desnorteava o faro, e isso vinha salvando mãos e dedos.

Havia o pior, entretanto: os evangélicos estavam impor­tando uma raça de cães do sul dos Estados Unidos, inteiramente brancos e treinados para atacar apenas negros. Resistentes aos bloqueios químicos do faro, visavam princi­palmente o pescoço da vítima, e já se dizia que poriam fora de moda os pitbulls. Desfilavam nas ruas com grandes coleiras prateadas, com nomes como Himmler, Eichmann e Pinochet.

A moça agora movia freneticamente os lábios. "Boca-mole", pensou João, tão nova e já uma boca-mole. Assim chamava-se no Morro um certo tipo de gente do Asfalto. Aos poucos, o povo empobrecido foi se dando conta de que na sociedade oficial falava-se muito por não se ter nada a dizer. Jornais, rádios e televisões falavam o tempo todo sem querer dizer realmente coisa alguma. Nos intervalos, canções repetitivas, intermináveis, destinadas a fazer os mais jovens mexerem toscamente os corpos num arremedo de dança.

Governantes e políticos vociferavam frases incompre­ensíveis para eles próprios. E as pessoas dos shoppings, dos condomínios fechados e seguros, frequentavam cada vez mais consultórios terapêuticos e encontros de autocrítica carismática, de onde saíam falando sem parar sobre si mes­mos. Quanto mais se explicavam, menos se entendiam.

Tornara-se costume de muitos descer o Morro aos do­mingos para contemplar, do lado de fora dos condomínios, a gente que falava interminavelmente nos jardins. A distância, por trás das grades, às vezes de enormes vidraças à prova de choques, o movimento compulsivo das bocas no falario lem­brava o dos peixes no aquário. Assim surgiu a designação de "boca-mole", que logo se estendeu a políticos, jornalistas, artistas e pregadores religiosos.

Num certo momento, João bem se lembrava, quando parecia iminente o colapso total do entendimento no As­falto, os fundamentalistas do Espírito Santo ganharam força inédita e começaram a dominar as cidades. Não era preciso entender mais nada, bastava declarar-se fiel e se­guir os preceitos bíblicos, interpretados por pastores ou padres carismáticos.

Depois de algum tempo, não era preciso sequer escutar o que diziam. Bastava antenar-se com o movimento espas­módico dos lábios e balançar ritmadamente o corpo, quando havia música. Os eleitores passaram a votar em bocas-moles, fantoches maquiados para a televisão e apoiados por religio­sos. Os verdadeiros senhores eram financistas, industriais e representantes de organismos estrangeiros.

A moça rezava cada vez mais ruidosamente, mas João sabia que não havia sequer palavras, tudo era uma massa so­nora confusa, inteligível apenas a quem fosse tomado pelo Espírito Santo. Pela fresta dava para perceber que a moça estava agora sozinha. Os outros membros da Guarda tinham se afastado dali.

Persistiam no entanto, mais próximos, os latidos. E os olhos da moça continuavam estranha e intensamente azuis, como se não fossem reais as pupilas, como se sugerissem uma espécie de aparelho eletrônico capaz de furar a espessura da noite em busca de vítimas.

De repente, João soube por que ela continuava ali, à espera, rezando. De algum modo ela já o havia localizado há tempo e orava por ele mesmo, a próxima vítima. Toma­do de imenso terror, ensopado de suor, ele ainda pôde se dizer que se tratava de uma jovem sozinha, fácil de se do­minar. Sairia dali, correndo, antes que voltasse a Guarda. Pez então um esforço para sair de debaixo do destroço da parede de madeira onde julgara estar a salvo, ergueu a ca­beça e deparou com o olhar translúcido da moça, que o verrumava como um feixe de laser. Ao lado dela, uma ma­tilha de cães absolutamente brancos.

Juntos, saltaram sobre ele.

Grito — doído, cantado ou ofensivo, João sabia, sempre foi recurso de negro.

Sufocado, de olhos fechados para evitar a visão terroiifica, ele conseguiu mesmo assim soltar um grito lancinante. De repente, a mão de uma pessoa estranha à cena lhe pegou pela cabeça, obrigando-o a levantar-se, e ele viu Joana, sua mulher, ainda o sacudindo e abanando a cabeça com ar de reprovação.

— Nisso é o que dá beber numa segunda-feira, depois de um domingo em que não se fez outra coisa — ralhou ela. — uma vergonha ficar assim escornado, de boca mole, baban­do... Ainda mais quando se tem obrigação a fazer, como a sua!

Trémulo, mal conseguindo refazer-se do pesadelo, João levantou-se nos poucos da cama encharcada de suor. Piscan­do muito, passeou o olhar pelo barraco, certificou-se de que tudo ainda estava em seu lugar e lembrou-se de que, às sete horas da noite, no retorno do trabalho na Limpeza Pública, havia parado na birosca para tomar com amigos um gole de pinga. Não tinha sido grande coisa, ele aguentava bem a be­bida, porém Joana estava certa: foi pesada a farra no domingo, ele deveria dar-se um tempo no dia seguinte.

Mas o problema mesmo era outro. Aquela era uma se­gunda-feira em que ele tinha obrigação de Exu. No canto do quarto, os materiais do ebó — a farofa de dendê, a ca­chaça, os charutos, as velas — estavam prontos, à espera. Ele havia bebido antes, certamente desgostando o Com­padre. Daí, o cochilo imprevisto, daí aquele sonho horrível, que até agora lhe parecia tão real.

Ainda estava em tempo, porém. Calçou rapidamente as sandálias de borracha, enfiou o ebó num saco plástico de supermercado e, sem mais dar ouvido à rezinga da mu­lher, saiu de casa. Iria à procura de uma boa encruzilhada no Asfalto, como sempre fazia. Exu gosta de quinas per­feitas, senão de sopé de árvore frondosa.

Antes de descer o Morro, parou no início de uma rue­la que sempre usava como atalho e contemplou por um instante o céu. Nuvens escuras, carregadas, prenunciavam chuva. Baixando o olhar, avistou ao longe os movimentos sorrateiros de um grupo que começava a subir a ladeira principal da favela. Vestidos de cinza, os homens carrega­vam rifles e metralhadoras. À frente, controlados por coleiras, pitbulls excitados.