Viagem a Ititioca

Afagando com o olhar as pernas grossas, seios fartos, jeito de gata vadia, Neco cantarolou mentalmente, assim como quem não quer nada, “ela disse-me assim / tenha pena de mim/ vá embora...”. Lupiscínio, filosofia pura. Roxinha de tal quilate merecia castigo, desses que macho competente inflinge na cama. Merecia e acabaria pedindo, sim, contrita, “tenha pena de mim”.

Mas não era tempo de ir embora. Pelo contrário, era ainda preciso chegar à casa dela. Aquele ermo esquisito.

Ititioca, Odete?

- Ititioca, amor – pra lá de Pendotiba.

Amor...O que o fez estremecer, arrepiado na nuca, súbito consciente do roçar do colarinho no pescoço.

Amor... Compensava o fato de que Ititioca é fim do mundo, onde o vento faz a curva. Só podia compen­sar... E por isso ele suprimiu o pensamento de que melhor seria aquietar-se, voltar sozinho para casa.

Deve ser coisa de idade. Desde que entrara nos sessenta, vinha-lhe às vezes, na véspera da farra, o tormento da dúvida. Sua casa não era lá essas coisas, certo, um barraco em São Gonçalo, beira-rio. Riozinho sacana, parido em Tribobó: um dia fez do barraco leito forçado de sua cheia, e lá se foram o aparelho de televisão, a vitrola, os discos, a cama, os papéis.

Mas era. O fogão funcionava, a cama nova lhe adulava o corpo, o rio agora corria calmo, tantos os presentes que a macumba entregara às águas. Chegada a noite, era só limpar a posta do robalo, mergulhar na panela a trouxinha de pano cheia de temperos suspen­sa sobre o fogão, gargarejar um cálice de pinga, comer, dormir. Era, a casa, não era, às vezes sim.

Ali, agora, Odete era mais. Sentada a seu lado no ônibus, permitia que a barra da saia avançasse para além da metade das coxas e, acompanhando o balanço do veículo, movimentava-se com graça. Cada solavan­co era pretexto para elevar acima do esperado uma das pernas, dando a ver, no instante da passagem entre a coxa e outra, a cena fugaz, mas persistente nas retinas, de uma calcinha de bolas vermelhas.

— Falta muito, Odete?

— Tenha paciência, bem...

"Bem". Adorava a inflexão que ela dava à palavra. Bem, amor... Tom lânguido o bastante para que ele começasse a sentir-se embalado e, assim, ajudado pelo ronco do motor nas passagens de marcha, visse elevar-se ligeiramente o pano da calça na altura da pelvis. Sem esforço, tão súbito! Depois dos sessenta, espontaneidades tais são pequenos milagres, razões de se dar graças a Deus. Trauteou: "Ela disse-me assim..."

— Neco... Como você canta bem! Mais alto, amor!

Não era o lugar próprio. Não nesse ônibus aos pedaços, a caminho de um ermo chamado Ititioca. Depois, Odete não viu nada... Seria preciso ter estado com ele muitos anos atrás, quando o gogó era firme e claro nas serestas. Aí então se podia fazer honras a Lupiscínio, que compositor, que filósofo... "Ela disse-me assim / tenha pena de mim / vá embora..." Lindos eram os passeios a Paquetá, cercado de amigos, moças, violão. As noites, intensas, eternas. A voz era cheia, sim, e não havia os claros que o tempo foi abrindo na roda de parceiros. Agora apenas cantarolava, Odete.

Não era mais hora de melodia. O ônibus havia parado num ponto final. Neco achou que finalmente houvessem chegado, mas era só o início de outro percurso. Tinham de tomar outro ônibus até Ititioca.

— Daqui a pouco estaremos em casa, bem.

Da janela, a cidade parecia entristecer à medida que avançava o ônibus. Iam sumindo o asfalto das ruas, os jardins eventuais, a impressão de estabilidade das ca­sas. Certo, onde ele morava havia também a ameaça do rio, mas tristeza não tinha mandato. E Odete mos­trava-se alegre quando anunciou:

— Chegamos, amor.

Chegar não era exatamente a palavra. Havia um bom pedaço a ser vencido a pé até a casa. No caminho um arremedo de padaria onde Neco comprou, por sugestão dela, um frango assado, um pacote de pães e uma garrafa de vinho doce.

A rua agora inclinava-se para cima, transformando-se em ruela, com restos de lixo, urzes e tocos. Ruma­vam, Neco percebeu, para o alto de um morro. E naquele início de noite era preciso cuidado com os trechos deslizantes e as pedras. Odete, fagueira, à frente. O hábito é tudo, ele pensou, convocando ener­gias para continuar. Molhado de suor, acalentava a esperança de um banho fresco para depois entregar-se ao frango, aos pães, ao vinho e, claro, a Odete. "Tenha pena de mim..."

— É aqui mesmo!

Era voz estranha. Mas Neco fixou-se primeiro na pequena casa de alvenaria no alto do barranco, ladea­da por outras, a maioria de pranchas de madeira, folhas de flandre e mesmo de materiais indefiníveis àquela hora. Só depois reparou no rapaz que se esco­rava na parede junto à porta. Tinha seus vinte anos, vestia um jeans apertadíssimo e usava brinco nas duas orelhas. Voz zombateira, em falsete:

— É aqui mesmo, dona Odete... Isso são horas de chegar?

— Mas cheguei, não é mesmo, neguinho? — res­pondeu

 

Odete, no mesmo tom —. Neco, este é meu filho, José.

 

Ele sabia dos três filhos, mas não que um deles fosse efeminado. E isso ficava mais do que evidente nos trejeitos e na voz do rapaz. Que avaliou Neco com olhar longo, estendeu-lhe a mão de modo como faria a dama ao cavalheiro num salão elegante, reapresentando-se:

— Encantado, sou Josefa.

Uma bichona, meu Deus, pensou Neco, enquanto transpunha a porta de entrada. Odete parecia não ter escutado a deixa do filho. Dentro da casa, uma desor­dem exemplar: mesa de jantar aos pedaços, poltrona com o forro estragado, nenhuma cadeira à vista. Tro­peçava-se em frangalhos de jornais e revistas. Além da saleta, havia uma cozinha minúscula e dois pequenos quartos de dormir. De um deles saiu um garoto de seus dez anos, logo apresentado por Odete:

— Este é Francisquinho.

O menino, macilento e triste, olhou esperançosa­mente para o visitante. Ou melhor, para as mãos dele, que ainda seguravam os pacotes e a garrafa. Simpatia é quase amor, há quem diga, mas também quase um raio, tal a rapidez com que chega. Neco simpatizou de cara com Francisquinho, apiedou-se do olhar supli­cante e esperançoso. Prometeu:

— Vamos traçar este franguinho, amigão. Mas antes quero tirar o suor do corpo.

Não havia água corrente. Mas numa bacia apoiada num tonel de lata, ele pôde lavar o rosto e as axilas. Enxugou-se com o ar noturno, observando as luzes ao longe. De repente, uma voz alta e provocante:

— A vagabunda continua trazendo homem da rua para dentro de casa!

Sobressaltado, Neco virou-se, percebendo que o insulto partia de um barraco de tábuas situado num ponto acima da casa de alvenaria. Não avistou nin­guém, apenas uma luz acesa, mas continuava ouvindo espaçadamente a palavra "vagabunda" em tom monocórdio. Da porta dos fundos, Odete chamou-o, aflita, sussurrando:

— Não dê atenção. É meu filho mais velho, João, que mora ali em cima. Me odeia, não sei por quê. Vive com uma vagabunda e, ainda por cima, bebe o dia inteiro.

Neco registrou que "bem" e "amor" haviam sumi­do do vocabulário de Odete desde que chegaram à casa. Ele podia entender que o ambiente doméstico atrapalhasse a sedução, mas foi ela mesmo a dona do convite. Uma canseira, para se chegar até ali; água, para banho de verdade, não havia; e agora aquele bêbado, certamente violento, gritando insultos... Me­lhor entrar e recomeçar pelo farnel que trouxera.

Na saleta, descobriu que não o haviam esperado para jantar. Na verdade, praticamente não havia mais frango assado, José e Francisco tinham se apoderado das coxas, o peito não estava à vista; sobravam asas, pescoço, pedaços de pele. Odete banhou-o com uma mirada terna e cúmplice, enquanto lhe estendia uma laranja e faca.

— Para sobremesa, depois...

Neco detestava pele de galinha. Chupou asas, ossinhos, comeu pão com laranja e buscou a garrafa de vinho. Sem encontrá-la, questionou Odete com o olhar, mimetizando com as mãos o ato de beber. O mesmo ar cúmplice de antes, modificado por leve inflexão reprobatória, ela sussurrou:

— O José, você sabe...

Josefa. Josefa! Ele mesmo tinha se apresentado assim. A mãe podia fingir que não ouviu, mas Neco escutara muito bem e sabia que tinha pela frente uma bicha desvairada, dessas que fazem ponto perto da estação das barcas, em Niterói, à sombra da estátua do índio Araribóia, com seus imensos colhões de bronze. Pois bem, a bichona estava agora refestelada no des­troço de poltrona, bebendo vinho pelo gargalo. Pare­cia já estar de porre, mas estendeu a garrafa em direção a Neco, fingindo etiqueta:

— Posso lhe servir?

Era demais. Neco estava zangado, ia engrossar, quando Odete pegou-lhe sedutoramente a mão, le­vou-o até a frente da casa e lá fora entoou a cantilena de sua vida difícil, com filhos de pais diferentes e remotos, um bêbado que a odiava, outro que... bem... tinhas suas manias...

— Mania.,. Mania, Odete?

Ele começou a replicar, indignado com a cegueira daquela mãe, mas ela roçou-lhe a virilha com a mão, ao mesmo tempo em que lhe cravava um olhar de promessas. Voltou a chamá-lo de "bem". Sempre sus­surrando, explicou que faria uma cama para ele no quarto dos filhos, por causa do menor de idade, um santinho, para manter as aparências, et coetera e tal. José ia sair, Francisquinho dormia cedo, et coetera e tal.

Retornava o espírito que o arrastara até Ititioca. Ainda ficou algum tempo, contando estrelas, depois que ela se afastou. Ao entrar no quarto, José dava os retoques finais no cabelo, cantando e saracoteando em frente a um espelho. Depois, retirou de uma gaveta uma revista de nu masculino, folheou-a cuidadosa­mente e, dando risadinhas, partiu. Ficou no ar um cheiro forte de lavanda.

Aquela ausência deveria tornar as coisas mais leves. Francisquinho jazia sonolento sobre a cama. Neco despiu-se, mantendo a cueca, para se acomodar no catre que lhe foi reservado. Odete pôs ali, à guisa de cobertor, o lençol que ele vira antes na cama de José. Neco afastou-o com a ponta dos dedos: nada desse mundo o faria cobrir-se com pano usado por aquele sujeitinho.

Depois, não era bem questão de dormir. Tinha de manter-se pronto para o instante em que Odete viria, pé ante pé, convocá-lo para o amor. Esticou o corpo, enroscando-se; o desejo é uma serpente. Mas do quar­to de Odete partia um ronco abafado, e Neco começou a imaginar se não seria melhor acordá-la imediatamen­te. Poderia estar cansada, talvez devesse ser estimula­da. E por que não? Conferiu o sono de Francisquinho, levantou-se, foi até a porta do outro quarto. Estava fechado a chave.

Retornava a irritação da hora do jantar. Além disso, uma vazio persistente na boca do estômago reacendia a consciência do quase-jejum. Nem banho, nem jantar, até agora, nada de Odete. De onde se achava, lobrigou pequena geladeira na cozinha. Enferrujada, com algumas caixas de papelão por cima — por isso não tinha podido percebê-la antes. Dentro, havia gar­rafas de água, algumas verduras e, embrulhado em papel laminado, o peito de frango assado que compra­ra. Frio demais, àquela altura, para mitigar uma fome. De volta ao catre, ainda achava que Odete pudesse surpreendê-lo a qualquer momento. Pernilongos mantiveram-no acordado durante algum tempo, mas o cansaço foi mais forte. Sonhou coisas confusas, angus­tiantes, às vezes despertando por instantes e lamentando não estar em sua própria cama, em sua própria casa, ouvindo o barulhinho do rio. Ter saudade daquelas águas, quem diria.

Levantou-se com os primeiros raios de sol. José não havia voltado para casa, a noite devia ter-lhe sido favorável. Francisquinho adormecido, plácido, irra­diava simpatia. De Odete, nem sinal.

Neco abriu a porta da casa, bateu depois o trinco e preparou-se para a jornada de volta. Inspecionou de­moradamente com o olhar os arredores. No varal ao lado da casa estendia-se, vistosa, a calcinha de bolas vermelhas de Odete.

Do barraco de João, alguém o espreitava pelas frestas das tábuas. "Vagabundos!" Ouviu o insulto abafado, mas não estava nem aí, era homem de paz, só queria agora ver Ititioca pelas costas. "Tenha pena de mim..." A letra da canção, por que secreto motivo, lhe doía na cabeça. Puta que o pariu, Lupiscínio.

(Rio).