Mané Garrincha de Lima Barreto

Muitos acreditam que a mentira só deixa de ser imoral na excelência dos escribas, já no futebol a mentira é camisa dez. Há tempos, decide, dita o ritmo da peleja, no vai-não-vai, fez­que-foi-mas-não-foi, no da vaca, na pedalada, no chapéu, na paradinha, no rolinho. Se você aprecia literatura e futebol ou uma das duas artes, sabe que tem um bom gosto por mentiras.

Não há nada mais mentiroso que um drible, o momento mais poesia da bola. O drible é um concreto fingimento, uma enganação. Todo driblador é imoral, cafajeste, sangue frio, não tem piedade de quem mal conhece, como fazia Mané Garrincha com seus Joões.

Na literatura, a mentira também é tempero essencial. Mesmo quando os livros nos envolvem em fatos reais, o escritor – malicioso como um atacante –, nos transporta ao seu mundo pela mentira.

Acreditamos em suas palavras, imagens, cores e rostos criados pela mágica da engabelação; ou será que Castelo seria contratado como professor de javanês, pelo Barão de Jacuecanga, se não fosse pelo 171 perspicaz de Lima Barreto?

O que dizer do pandemônio que virou a pacata Tubiacanga, uma cidade revirando defuntos para desvendar o segredo do ouro de Raimundo Flamel? Esse é um dos maiores dribles da literatura brasileira, como a jogada clássica de Mané na ponta direita, que desnorteou os gringos na Copa de 62, uma história canônica, como é A Nova Califórnia.

Na bola e na página a mentira é uma entidade, sobrenatural. Para deixar de ser o humilde Manuel Francisco e se tornar o eterno Mané Garrincha, ir de um simples Afonso Henriques a um célebre Lima Barreto, é preciso, antes de tudo, ser um mentiroso de alma.

Na bola e na página a mentira não requer só técnica, senão os melhores mentirosos viriam das escolinhas de futebol ou dos cursos de criação literária. Para ser um mentiroso imortal, é preciso poetar com bola, é preciso driblar com a caneta.

Na página, o leitor é como um torcedor fanático, e deve estar de poros abertos para sentir as mentiras que os escritores pregam, pois todo torcedor e todo leitor gostam mesmo é de sentir mentiras que valem a pena, daquelas que depois de um gol ou ao final de um romance, dizemos: “Essa sim é uma verdadeira mentira!”.

Ninguém gosta daquele zero a zero truncado, sem chute a gol, com uma falta a cada dez segundos, dá sono. É como um livro mal escrito, que a gente larga no meio e deixa esquecido, o jogo se apaga da memória e o livro se cobre de poeira em um canto qualquer.

Os boleiros, assim como os escritores, aplicam sua magia com a caneta, um debaixo das pernas de um João, o outro costurando palavras como num gol antológico, em ambos os casos é preciso fôlego e uma boa estratégia.

Os mais experientes ensinam que, nas pelejas, quem corre não é o jogador, é a bola, e nas letras as histórias fluem com vida própria, não se deve aprisioná-Ias.

Lima era um prosador ousado como um ponta, craque com as letras. Garrincha mal sabia ler, assinou até contrato em branco, mas escrevia poesias com as pernas tortas. Mané, provavelmente, não gostava de literatura, assim como Lima odiava football. Mané foi o Lima da bola e Lima o Garrincha da página. Tornaram-se imortais, por serem sacerdotes de mentiras sagradas. Por pouco não foram contemporâneos. Uma pena! Se os dois se encontrassem para tomar um trago, é certo que fariam uma boa tabelinha.

(Crônicas de um peladeiro, p. 56-58).